Sobre a Arte da Medicina OU Reflexões sobre uma magnífica série de televisão

"HOUSE M.D."

"House, M.D." é certamente a melhor série de tv jamais realizada sobre o meio médico. Principalmente porque não se resume à recente "desmistificação" da profissão médica que veio na esteira do interesse e sucesso do malfadado "E.R." ("Só existe uma coisa mais chata do que 'E.R. - Plantão Médico', são os médicos que gostam de discutir o programa", my quote), onde a "autopsia" dos procedimentos, da farmacologia, do aprendizado e de eventuais erros médicos era repetido ad nauseum sem nunca jamais sair do raso no questionamento dos (des)caminhos da profissão.

Que é exatamente o que "House, M.D." faz.

Misto de sátira de costumes e reflexão filosófica, a série que venceu 2 Emmy 2004 (incluindo melhor ator para o sensacional Hugh Laurie - pelo papel-título) poderia ser ambientada em qualquer outro tipo de habitat profissional; toca em questões relevantes a respeito das relações interpessoais, questiona não só o modus operandi dos profissionais de saúde (incluindo o papel de médicos e enfermeiros, mas indo a fundo no desenrolar das funções exercidas por administradores e donos de hospitais); revela personagens ricos a cada momento (e qual melhor lugar para se obter um pequeno painel de uma sociedade que um grande hospital e seus freqüentadores?); tem diálogos curtos, diretos, incisivos, provocativos e inteligentes.

Para completar, a cereja do bolo: Gregory House. Um personagem moderno, verdadeiro "Monk" M.D. (if u know what I mean) - rebelde, detestável e adorável a um só tempo, ambíguo e amargurado, que coloca em cheque (por vezes mate) toda a filosofia cartesiana que rege a moderna Medicina; sem abrir mão dos recursos tecnológicos mais modernos ou tampouco de uma visão "holística", aristotélica meio às avessas, que nos remete a um tempo em que a Arte de Curar era exercida mais com o cérebro e as mãos que com protocolos tipo receita-de-bolo ou ensaios clínicos.

Dr. House erra (e muito!), luta muito por suas idéias, repele um falso humanismo ensinado na faculdade (empatia?) e não verdadeiramente existente no âmago da maioria de nós profissionais da área de saúde. E se é assim lá, lá na Meca da Medicina moderna - os EUA - que dirá aqui, nesta terra brasilis onde viramos meros executores de serviços médicos, humilhados pela subremuneração e pela conseqüente automatização da prática diária, espremidos entre um emprego e outro, eternamente atrasados e esgotados pelo acúmulo de funções e responsabilidades?

Vale a pena, como complemento à série, (re)ler alguns dos diálogos memoráveis publicados no dite do Internet Movie Database.

"THREE STORIES"

Brilhante, arrepiante, acachapante o penúltimo episódio da primeira temporada de "HOUSE, MD" exibido no Brasil pelo Universal Channel há poucos minutos atrás. Nada menos que perfeito, deixando no ar a quase improbabilidade do fechamento da temporada conseguir superá-lo em termos de técnica e emoção.

Usando uma narrativa hiperbólica e circular, o capítulo denominado "Three Stories" liga as pontas soltas ao longo da série com maestria, coloca Greg House na incômoda (ex)posição de professor substituto no exato momento em que revê sua ex-mulher, a pessoa que lsalvou e desgraçou sua vida a um só tempo. Introspectivo, acuado, no limite de suas emoções, House usa a platéia de estudantes para exorcisar, em seqüência, os mitos da "Medicina Moderna" (com maiúsculas, aspas e abordagem tão cartesiana quanto científica), da infalibilidade profissional da classe e, por fim, seus próprios fantasmas.

É com espanto que acompanhamos o crescente desenrolar dos três casos clínicos narrados pelo professor até descobrirmos, sem nos dar conta exatamente em que momento, que um deles é o próprio House. Hugh Laurie nos brinda com uma verdadeira "aula" de interpretação; a edição é alternadamente realista e alucinada; o clímax com a presença de seus auxiliares e da diretora do hospital, brindado com a percepção súbita de que o tempo passou por mais 20 minutos do que o necessário, leva-nos à conscientização de que também nós nos perdemos, enredados num novelo de ficção tão magistralmente elaborado que não vimos o tempo passar. Mudados pela catarse, como House, já não somos os mesmos.

De quebra, the greatest quote of all, ao colocar secamente em frente aos estúpidos moleques esforçados e tipicamente arrogantes que se encontra em qualquer classe de escola médica, a verdade destinada a estar sempre lá fora, longe de nossos pensamentos: "Vocês estão condenados a matar pessoas. Pelo menos uma ou algumas vezes, vocês vão estar errados e arruinarão tudo. Ou vocês se conscientizam disto ou é melhor procurarem outra profissão."

Palmas para meu tio Aramis, médico como eu, que numa conversa noturna num plantão de CTI, certa vez fez o mesmo tipo de questionamento rápido usado por House, "as fast as only death can be", a respeito de um tamponamento cardíaco em um paciente imaginário, quebrando toda a tosca figura de médico que eu vinha lentamente produzindo ao longo do internato, mostrando-me que há certos casos para os quais não há tempo para pensar, certas coisas em um médico que devem ser automáticas, tão entronizadas em seu ser como uma segunda pele, desencadeando imediatamente mecanismos que o levem a agir. Foi em cima desses escombros de realidade pura, ao longo de mais de 13 anos de profissão, que venho lentamente juntando as peças do quebra-cabeças médico que eu e todos nós confrontamos diariamente.

Bravo para "House, MD"! Bravo pela coragem, clareza de espírito, profundidade filosófica e propriedade das argumentações expostas num programa de tão alto nível que catapulta a televisão a um status de pura Arte. Bravíssimo!

"ACEITAÇÃO"

Prometo não contar nada! Esta é só para deixar os fãs brasileiros (se desplugados) com água na boca...

"Acceptance" é o primeiro capítulo da segunda temporada de "House MD", a premiada série que vem subvertendo noções filosóficas sobre vida, morte e medicina pela Fox americana. Nele o roteirista David Shore mostra mais uma vez que não acredita no mote de seu personagem principal: "everybody lies".

Lado a lado com os dramas humanos está a fina ironia de Greg House, o humanismo doce da Dra. Cameron, a insegurança do boa-praça ex-ladrão-de-carros (Dr. Foreman), a vivência do oncologista (interpretado com "punch" por Robert Sean Leonard) ilustrando os mais jovens, e surpreendentemente um Dr. Chase (o "australiano traidor" da primeira temporada) quase calado. Mas o fato é que o episódio transborda VERDADE, apesar do protagonista mais uma vez empurrar os limites da ética e da responsabilidade além dos limites convencionais; e deixa na boca mais uma vez um gostinho de "quero mais" ao nos emocionar com a resolução clara, simples e profundamente honesta não só dos casos clínicos como dos conflitos pessoais.

Eu disse que não iria contar nada lá no topo do texto? Well, todo mundo mente...

"When a good person dies, there should be an impact on the world. Somebody should notice. Somebody should be upset."

"Quando uma boa pessoa morre, isso deveria causar um impacto no mundo. Alguém deveria notar. Alguém deveria ficar chateado."

(Dra. Allison Cameron, a.k.a. David Shore, roteirista).

***

Na verdade acho que só coloquei este último review para ter um motivo de postar estas belas e necessárias palavras.

"AUTOPSY / DISSECÇÃO"

"House" é um vício. E escrever sobre House, começa a ser um vício também.

Quando eu penso que já chega, vamos deixar para fazer uma grande resenha no final da nova temporada que ora se inicia; David Shore nos brinda com mais um motivo para crer que as séries televisivas jamais serão as mesmas depois da impressionante série sobre a "freak medicine" de Gregory House e seus pupilos.

"Autopsy" é House "pushing the limits once again" , com uma seringa alucinógena em uma das mãos e o golpe mais certeiro a ser aplicado numa história médica na outra: a menininha com câncer.

Terminei de assistir lavado em lágrimas, numa homenagem involuntária a cada uma dessas bravas crianças, amadurecidas precocemente e certamente especiais, que a doença devasta e que se perfilaram, uma a uma representadas pela carequinha de Andy, a protagonista da história.

House mexe com o perigo, mexe com as emoções de nós médicos de uma forma cruel e violenta, mas transforma o amargo em doce ao nos darmos conta de que é mesmo o médico - pelo menos o médico minimamente capacitado e dedicado - o bravo e a vítima simultâneos, a percorrer este longo caminho que escolhemos, capaz de levar-nos tão somente a dois destinos: a loucura ou a indiferença. House abraça a segunda, mas vive a primeira, sua doce alma blindada em busca de algo que julga que lhe foi tomado pela profissão e pela vida.

Lentamente David Shore começa a nos mostrar o longo caminho de volta, onde Dr. House já entrevê que somente ela, a Medicina, pode ser capaz de lhe devolver o que é seu e de todo ser humano: a vontade de viver.

(textos publicados originalmente em http://renatovwbach.multiply.com)

Renato van Wilpe Bach
Enviado por Renato van Wilpe Bach em 09/12/2005
Reeditado em 18/07/2008
Código do texto: T83232