DOM CLEMENTE ISNARD - REVELAÇÕES DE UM BISPO

Crítico de práticas e dogmas da Igreja Católica, o veterano bispo Clemente Isnard lança livro com teses progressistas

Aos 91 anos de idade, era de se esperar que D.Clemente Isnard fosse um religioso dos mais conservadores. Com praticamente toda a vida dedicada ao serviço religioso, ele exerceu cargos dos mais importantes, como a vice-presidência da Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB) nos anos 1980, além do comando das dioceses de Nova Friburgo e Duque de Caxias, importantes cidades fluminenses. Mas o que diferencia o bispo Isnard de seus colegas de clero na Igreja Católica Apostólica Romana são suas idéias nem um pouco ortodoxas, conflitantes com assuntos considerados como tabus pelo Vaticano. Entre eles, o fim de celibato obrigatório para os padres, maior autonomia para as mulheres com vocação sacerdotal – incluindo o direito de celebrar missas – e até o uso de preservativos como forma de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis.

E as idéias avançadas de Isnard não param por aí: o revolucionário propõe ainda uma revisão na política de escolha de novos bispos que, na sua opinião, deveria ser feita por eleições, com a participação de todos os membros das dioceses, incluindo as freiras. As propostas estão em seu livro Reflexões de um Bispo (Editora Olho dÁgua) que, segundo ele próprio, quase não chegou a ser publicado por sugestão de companheiros de batina. D.Clemente Isnard, que atualmente está jubilado e vive no tradicional Mosteiro de São Bento, no centro do Rio, age como uma espécie de porta-voz de outros bispos que pensam de modo semelhante – que, na ativa, não podem se dar ao luxo de bater de frente com a Igreja. Com a confiança e a sensatez de tantas décadas de serviço eclesiástico, o veterano religioso sente-se na obrigação de expressar o sentimento de, segundo ele, uma parcela cada vez maior dos católicos brasileiros que anseiam por reformas.

D.Clemente concedeu a seguinte entrevista:

JDM - O que levou o senhor, nessa essa altura da vida e depois de tantas décadas de sacerdócio, a escrever o livro Reflexões de um Bispo?

D.CLEMENTE ISNARD – O que me levou a falar sobre esse assunto foi a minha reflexão, quarenta anos depois de tomar parte do Concílio Ecumênico Vaticano II [1962-1965]. Acredito que ali foram traçadas todas as reformas necessárias à Igreja, especialmente na liturgia: poder celebrá-la na língua nativa de cada povo foi um grande avanço. Todo Concílio de reforma produz um movimento na Igreja, de aceitação ou repúdio; então, eu resolvi trazer a minha colaboração para o movimento. Evidentemente que encontrei, em alguns setores, reservas quanto ao conteúdo, mas também uma aceitação enorme. Uma carta de D.Demétrio Valentim – que faz parte da direção da CNBB –, foi um grande estímulo para mim. Tanto que, logo que terminei de escrever o livro, enviei uma cópia a ele.

Mas por que o senhor esperou tanto para expor suas idéias numa publicação?

No ano passado, eu celebrei uma missa de ação de graças em Recife e aqui no Rio, ocasião em que fiz uma retrospectiva da minha vida. Fui levado a dizer o que pretendia fazer dali para frente – e eu queria continuar lutando pelo movimento litúrgico, para o qual militei muito nos anos 1930. Além disso, eu queria também propagar e defender o Concílio Vaticano II; e, em terceiro lugar, eu desejava que essas idéias pudessem trazer uma colaboração para a Igreja. Entretanto, não foi aí que comecei a escrever, já tinha dois livros publicados, além de muitos artigos e cartas pastorais. Afinal, um bispo, em sua diocese, tem que escrever para dar orientação religiosa a seu povo.

O senhor diz ser a favor de algumas mudanças na Igreja Católica, como por exemplo, a forma como os bispos são eleitos – escolha que, hoje, é feita exclusivamente pelo papa. Como a CNBB encara sugestões polêmicas como essa?

Já houve uma época em que os governos escolhiam os bispos. A Igreja lutou contra isso e, no século 11, conseguiu esse poder. Então, quando um bispo morria, o clero e o povo se reuniam para escolher seu sucessor. No Brasil, no tempo da Monarquia e do Império, era o imperador quem escolhia os clérigos, e o papa apenas dava a instituição canônica. Mas a República rompeu essa relação, o que foi uma coisa muito boa. Desde então, a escolha coube ao pontífice. Há aqui no Brasil um embaixador que prepara um estudo sobre os candidatos, e eu mesmo fui escolhido por intermédio desse sistema. No Concílio, minhas idéias amadureceram e eu defendo, pelo menos no Brasil, que, após a morte de um bispo, os representantes do Estado, do clero e também as irmãs reúnam-se para discutir a sucessão. Acredito que seja mais justo dessa forma. Eu nunca tratei disso na CNBB, mas tenho certeza que muitos religiosos consideram ideal haver uma participação popular na eleição.

Idéias como o fim do celibato e o sacerdócio feminino não são utópicas demais para uma instituição tão conservadora?

Até o século 4, o casamento de bispos, padres e diáconos era autorizado. No Oriente, hoje em dia, os padres e diáconos são casados. No Vaticano II, permitiu-se o casamento de diáconos no Brasil, e foi uma beleza! O celibato tem sido a causa de muitas baixas na Igreja. Na minha opinião, como os diáconos já são casados, os padres diocesanos e seculares poderiam também, em qualquer momento da vida, pedir licença para o casamento. Agora, os frades, monges e religiosos como eu devem seguir o exemplo dos apóstolos Paulo e Barnabé, que não se casaram. A respeito das mulheres, ora, Cristo escolheu homens como apóstolos, mas havia mulheres que os acompanhavam. Ainda não se pensou nisso, mas acredito que deveríamos prepará-las com estudos e ordená-las ao sacerdócio. Eu mesmo conheço algumas que poderiam perfeitamente ser ordenadas. Naturalmente, no princípio, isso poderia ser difícil, mas tenho a impressão de que seria uma reforma magnífica.

O problema dos padres pedófilos, bem como casos de homossexualismo nos seminários, seriam decorrentes da obrigação do celibato?

Não nego que seja possível que a educação nos seminários e a preparação para uma vida de celibato mexa com a tendência sexual dos jovens. Mas não acho que isso seja responsável por casos de homossexualismo e pedofilia. O celibato vai continuar na Igreja, sendo opcional para os padres diocesanos. E o homossexualismo não é fenômeno que envolve somente os católicos; está presente em todas as religiões.

Como o senhor analisa, atualmente, o aumento do número de evangélicos no Brasil?

Isso se deve ao trabalho e ao esforço dos pastores protestantes. Eu vejo esse trabalho com zelo, ao mesmo tempo em que sinto falta de pregadores católicos. Temos poucos padres – então, a Igreja não tem articulação e mobilização suficientes. Mas, pela nossa história, acredito que é difícil que os evangélicos se tornem a maioria no Brasil. O que devemos é encontrar um meio de ir até o povo, esquecendo as brigas, essa coisa de protestante falar mal de católico e católico falar mal de protestante, porque o que interessa é Cristo e o Evangelho.

A Igreja Católica tem sido terminantemente contrária à legalização do aborto e ao uso de contraceptivos. Em que circunstâncias o senhor acha que essa prática poderia ser tolerada ou mesmo aceita pelo catolicismo?

Aborto nunca, é um crime. A partir do momento em que o óvulo é fertilizado, nascerá um ser humano. Abortar é intervir nesse processo, é matar, e de maneira covarde. Mas é claro que gostaríamos que houvesse um planejamento familiar adequado. Quanto à camisinha, seu uso é uma intervenção no ato da fecundação. Ao meu ver, a Igreja é muito severa quanto ao seu uso, por proibir e dizer que é pecado. Deveria examinar melhor esse assunto, pois ninguém obedece essa regra, nem católicos, nem evangélicos.

Hoje, cobra-se muito a atuação social das instituições religiosas. Ela é uma obrigação da Igreja de Cristo?

O Evangelho nos ensina a amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Esse é o grande mandamento bíblico. Então, se eu estou no meio de pessoas que estão passando fome e sofrendo injustiças, devo fazer alguma coisa por elas. E é para isso que a Igreja dos nossos tempos acordou. Contudo, os trabalhos de natureza social não devem sobrepujar a propagação da fé.

E quanto aos jovens, o que fazer para trazê-los à Igreja?

Todas as crenças e denominações têm realizados muitos encontros mundiais para jovens. Acho necessário que a juventude fique reunida. Eu não teria me tornado bispo se não tivesse pertencido, durante a faculdade de Direito, a uma associação universitária religiosa.

Igreja e sociedade

Lançado pela Companhia das Letras, o livro Padres, Celibato e Conflito Social conta a história da Igreja Católica no Brasil a partir do século 19, vista sob a ótica dos padres. Além de analisar a formação eclesiástica, o autor, o americano Kenneth P.Serbin – historiador e professor da Universidade de San Diego, na Califórnia –, discute ainda a importância e a influência do catolicismo na formação da sociedade brasileira. Assim como no livro de D.Clemente Isnard, temas polêmicos, como o celibato obrigatório, são abordados criticamente. Entre os personagens citados na obra, destaque para o padre Diogo Antônio Feijó. Segundo o livro, o religioso, suposto filho de um clérigo, foi um dos mais contundentes defensores de um modelo alternativo de sacerdócio, movendo até uma campanha em favor do celibato opcional, em pleno Brasil-Colônia.

Fonte: Revista Eclésia - Edição 127 (colaborou Mirian Frazão)

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JDM

José Donizetti Morbidelli
Enviado por José Donizetti Morbidelli em 02/10/2008
Reeditado em 30/10/2009
Código do texto: T1207910
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