Entrevista (Revista D'Pontaponta) Setembro/2010

ENTREVISTA

*Por Rafael Guedes, para a Revista D’Pontaponta

Setembro/2010

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01. Em suas crônicas e ensaios, você mostra um domínio bastante notável da linguagem literária. Quando você começou a se aventurar de forma mais “séria” com a escrita?

Fico bastante agradecido e até impressionado com o seu comentário em relação à minha escrita.

Assim como com a música, penso que despertei tardiamente para a literatura. Quando pequeno, eu gostava muito de permanecer horas na biblioteca paterna. Meus pais eram separados. Eu morava com a minha mãe e visitava meu pai aos fins de semana. Ele e sua esposa já eram de certa idade. Junto deles, eu me ocupava a jogar xadrez, ler e perambular pelo jardim. Passaram-se os tempos, então vieram as convivências na escola e o interesse por jogos eletrônicos, televisões a cabo e esportes como o Tênis de Mesa. Abandonei por completo qualquer tipo de apreciação por leituras ou estudos. Confesso-lhe ainda que até pouco tempo depois de ter começado a cursar História na UEPG, sempre fui um péssimo aluno. Muito ruim, inclusive, em português. Claro, sempre tive um comportamento introspectivo, com o meu mundo particular, mas nunca o conciliava com os estudos. Não achava que era possível compreendê-lo melhor através destes.

Em 2005, um monólogo de “Werther”, assistido em Ponta Grossa, foi como o marco inicial da minha necessidade de escrita. Entre 2005 e 2006, escrevi o esboço de um primeiro romance, que naturalmente possuía um pano de fundo autobiográfico. Sem computador na época, eu o datilografei e deixei sua única cópia com aquela por quem eu estava apaixonado. E finalmente em 2008, estipulei “Sonho e culpa” como meu primeiro escrito oficial. Desde então, pelo menos um livro novo surge a cada ano.

Somente aos meus vinte e dois anos de idade é que eu realmente passei a me empenhar mais com a escrita, transformando-a em uma prática diária e inseparável da minha pessoa. Os livros, que até então viviam despercebidos, foram transformados na espécie do meu único “luxo”. Minhas ocupações mudaram, fazendo-me tirar o proveito máximo da vida. A “escrita mais séria” propriamente dita, que você propõe, teria aparecido no momento em que aprendi a conciliar melhor as experiências e aprendizados do cotidiano, da literatura real, com as leituras e autores com os quais dialogo.

02. O que veio antes: a literatura ou a música? Existe uma separação total entre a prática musical e a literária ou a música exerce alguma influência sobre a sua literatura, de alguma forma?

Desde algum momento em minha vida, eu sentia muita vontade de me abrir com os papéis, mas sem o mesmo impulso de levar isto adiante como foi feito em relação à música. Ainda que eu tivesse acumulado muito mais anotações que melodias, somente quatro anos depois de ter lançado meu primeiro trabalho de piano é que tomei a iniciativa de oficializar um primeiro livro.

A música e a literatura passaram a caminhar juntas talvez a partir de 2008, considerado por mim como meu Ano Zero com relação à escrita. Pois serei honesto: a literatura em minha vida foi descoberta há pouquíssimo tempo.

Há momentos de completude, bem como de separação total. “Sobre a ponte dos sonhos”, que é a segunda faixa do álbum “Tu, amor, tirano de deuses e homens”, faz, na verdade, referência ao primeiro capítulo do livro “Sonho e culpa”. No trabalho de piano mais recente, “Vida e arte”, há uma composição de nome “Você e o Sr. Krause”, sendo que este último foi retratado em três outros contos meus. Bem na verdade, sempre haverá alguma menção sobre o meu trabalho de piano nos meus livros. Neles, inclusive, tenho disponibilizado tanto entrevistas que respondo quanto as memórias da minha vida musical, em estágio inicial.

A separação total, por sua vez, ocorre da seguinte maneira: assim como há coisas sobre as quais é impossível expressar através da música, há momentos tão profundamente pessoais que me é preferível transformá-los em música que em escritos. Mas mesmo atuando em áreas diferentes, elas acabam por ocupar uma função especifica. Vou dar um exemplo: sou profundamente crítico com relação ao destino que a arte tem tomado neste misto de liberalismo e marxismo em que se vive na atualidade. Bem, não há como, através das teclas, elaborar passo a passo tais críticas, mas é possível fazer nascer do piano também uma espécie de antídoto. Em outras palavras, a escrita pode exercer um papel crítico, enquanto que a música a complementa, trazendo em si um antídoto com relação àquilo que se pretende combater. As penas e teclas estão à minha disposição como espadas e armaduras de combate contra a corrupção da arte nestes tempos modernos, que tem sido nociva e expressada de modo insensível, conduzindo os homens ao abismo ao invez de elevá-los.

03. Corrija-me se eu estiver errado, mas você tem dois livros publicados até o momento: “Sonho e Culpa” (que saiu quando? E por qual editora?) e o mais recente, “Sobre as leituras e os escritos” (pode me confirmar a data de publicação e editora deste também?). O que mudou em você e em sua literatura do primeiro para o segundo livro?

Possuo quatro livros escritos, sendo que apenas dois foram publicados. São eles: “Sonho e culpa”, de 2008; “Dias de exílio voluntário”, de 2009; “Contos e ensaios”, de 2010; e finalmente, “Sobre as leituras e os escritos”, também de 2010.

“Sonho e culpa” não chegou a ser impresso “oficialmente”; apenas enviei algumas cópias para pessoas próximas. Trata-se de uma questão técnico-amadora: ele ultrapassa as 130 páginas, o que tornaria muito difícil o grampeamento das páginas.

Na atualidade, tenho procurado escrever livros que sejam compostos de no máximo 80 páginas, justamente para facilitar na hora de grampeá-los. Estou decidido a lançar “Notas de um novo lar”, meu livro próximo, em duas ou três partes, cada uma com aproximadamente 80 páginas. Eu não disponho de dinheiro o suficiente para imprimir em gráficas profissionais. Mas isto nunca me desmotivou. Na música, por exemplo, sempre lancei meus trabalhos de forma independente – simples, mas com capricho. Alguns trabalhos foram reeditados no exterior, mas suas gravadoras, para minha felicidade, jamais me impediram de criar as minhas próprias versões amadoras. O que quero, no fundo, é fazer com que o custo dos livros seja tão baixo quanto dos meus CD’s, facilitando a acessibilidade, até mesmo porque boa parte deles costumam ser deixados como presentes às pessoas que me são próximas.

O que mudou? Bem, muito e pouco. Ao mesmo tempo em que sinto uma profunda satisfação e até mesmo espanto com relação à boa aceitação dos meus trabalhos, tenho procurado não me deixar “seduzir” por isto. Não que eu não dê importância. Muito pelo contrário, pois tudo o que crio vem da alma e é sempre algo indescritível obter reconhecimento por conta disso. Mas devo ser sincero: para além da aprovação, sigo acompanhado da música e da escrita como que em um sentido de obrigatoriedade; não em questão profissional, mas de espírito – sinto-me como se estivesse sido escolhido para isso. Como propõem os antigos escritos sagrados hindus, executo estes meus deveres sem levar em consideração vitória ou derrota, admiração ou repúdio. Atuo sempre como se estivesse no começo de tudo, seguindo com humildade, esforço e paciência.

04. Eventualmente, em crônicas e ensaios, você aponta referências culturais aprofundadas, que mostram uma intimidade maior e mais profunda com certos escritores, filósofos, poetas e até músicos. Mesmo assim, há de ser feita aquela pergunta impertinente: quais foram suas maiores influências na literatura especificamente, os autores que moram em você com mais regularidade e aos quais você sempre recorre?

De antemão, quero deixar claro que nem sempre vivo imerso nos livros. Aprendi, aprendo e ainda hei de aprender muito com aqueles me são próximos, junto das experiências cotidianas; amigos aos quais sempre serei eternamente grato por seus sábios ensinamentos (a lista de amigos sábios é infinitamente maior que esta abaixo, relacionada exclusivamente a autores, músicos ou simplesmente pensadores, pois abrange desde tradutores e escritores renomados a homens de vestes e gestos comuns, todos donos de genialidades particulares) e porque mesmo sem perceber, presentearam-me com os indicativos para que eu passasse a ser guiado pela sede de descoberta por novos mundos.

Aqui vão alguns nomes (escolhidos aleatoriamente e não em ordem de preferência) daqueles a quem sou grato em termos de literatura e, acima de tudo, da contribuição exercida à minha formação enquanto humano: Richard Wagner, Johann Wolfgang von Goethe, Arthur Schopenhauer, Friedrich Nietzsche, Jorge Luis Borges, Miguel Serrano, Friedrich von Schiller, Enéas Carneiro, José Monir Nasser, Franz Liszt, Marcelo Franchi, Henry David Thoreau, Fiodor Dostoievski, João Manuel Simões, Caspar David Friedrich, Norbert Toedter, Martin Heidegger, Ludwig van Beethoven, Hermann Hesse, Carl Gustav Jung, George Orwell, Gustavo Barroso, Friedrich Chopin, Nassim Haramein, Idi Amin Dada, Jiddu Krishnamurti, Marquês de Maricá, entre outros.

Não apenas li, como vivi certas personalidades. Vivi tanto o Goethe romântico quanto o Schiller heróico; tanto o Thoreau, mestre da simplicidade, como o Schopenhauer que vê na vontade a faísca com a qual se acende o sentido da vida. E o mais interessante é que mesmo de modo inconsciente, pude fazer conexões entre estes autores. Exemplos: Goethe era amigo de Schiller. Liszt, amigo de Wagner e admirador de Goethe. Thoreau dizia banhar-se da sabedoria hindu. Wagner escrevera sobre Beethoven. Jorge Luis Borges entendia a Schopenhauer como seu filósofo essencial. Miguel Serrano morou na Índia e manteve-se próximo de Jung e Hesse. Heidegger revivia a Nietzsche. Em suma, quando reúno o que absorvi de suas essências, no fundo é como se fizesse dos meus papéis uma espécie de salão, onde velhos amigos, separados por épocas distantes e países, vêem-se unidos em torno de propósitos comuns: enriquecer a um jovem que timidamente engatinha em direção ao universo mágico da literatura, expressa nos livros e na vida como um todo.

Hölderlin dizia: “Bem-aventurados são aqueles nada pensam por si próprios”.

05. Sua obra literária, assim como sua música, parece estar marcada por um forte traço psicológico (no sentido junguiano) e transcendental. O que Newton Schner Jr. quer expressar com a literatura? O que lhe dá o impulso para escrever?

Que dupla satisfação por essa sua impressão a respeito do que faço! Primeiro, por compreender um traço psicológico de acordo com Jung (e não com Freud). Tomei contato com este sábio suíço há menos de dois anos, através do escritor chileno Miguel Serrano e da convivência com alguns amigos que o compreendem bem. E desde então, tenho tido uma relação muito próxima dos seus conceitos. Em “Contos e ensaios”, há escritos voltados à redescoberta da minha espiritualidade, depois de tempos envolto em um ateísmo cético, onde Jung teve um papel fundamental. E a segunda satisfação está no fato de você encarar meu trabalho como transcendental (no sentido wagneriano, quem sabe?). Tanto na música quanto na escrita, perceba, meu amigo, o quanto o homem tem se distanciado (ou tem sido distanciado propositadamente por forças invisíveis e obscuras) desse sentido transcendente. Nota-se a que grau de colapso a sociedade se encontra, também pela forma com que ela compreende e cultua a arte. Quando não ignorados, os clássicos têm sido reescritos e reinterpretados das maneiras mais diversas e estranhas. Na música, são batidas eletrônicas de retardamento mental, acompanhadas de clipes grotescos e de letras obscenas que geralmente nada dizem; nas artes plásticas, manifestações pobres, sem criatividade nem sensibilidade, onde, por vezes, animais mortos são expostos como “notáveis representações do sofrimento”. Acredito eu, portanto, que somente com os olhos voltados para o passado, recuperando esse elo entre arte e transcendência, será possível elevar-se, individual e coletivamente, frente à decadência em que vivemos.

É da minha pretensão expressar a simplicidade sem parecer superficial. Retratar a riqueza do cotidiano, evitando a separação proposital que tem sido feita na atualidade, onde um saber acadêmico é supervalorizado frente às concepções e estilo de vida do homem comum, do povo. Aliás, eu não entendo exatamente porque se faz tanta exaltação ao mundo universitário. Sem generalizar, mas em alguns setores vê-se entre os jovens apenas uma disputa de poder: de uns, emanam aspirações do cifrão; de outros, da foice e do martelo. Enquanto, em uma esfera, cursos são abertos para que seus alunos aprendam a ser especuladores, em outros círculos o velho espírito gramsciniano quer ser tal qual Fênix: “Feita a revolução nas Escolas e Universidades, ela irá se expandir até as ruas e finalmente chegaremos ao comunismo”. Perdoe-me em dizê-lo, mas também alguns “bem informados” da universidade têm sido responsáveis por introduzir e naturalizar uma série de conceitos e ações completamente nocivos à sociedade. Se você perguntar mil vezes para uma mulher comum a respeito da amamentação, ela dirá por mil vezes que este ato consiste em uma grande satisfação ou até mesmo uma dádiva; na esfera universitária, no entanto, as feministas alegam que isto é um meio de escravizar a mulher, enquanto que os freudianos têm a petulância de afirmar que a amamentação é a primeira fase do sexo oral infantil (!). Se você perguntar por mil vezes para uma pessoa comum se ela nasceu homem ou mulher, mil vezes ela irá que, de fato, nasceu homem ou mulher; enquanto isso, em alguns setores das ciências humanas, acredita-se na estranha teoria do “terceiro sexo”, do sexo como uma “construção social”: ignoram-se todas as especificidades biológicas, psicológicas, culturais e históricas para se afirmar que é da sua própria vontade, independente do seu sexo, querer “ser” homem ou mulher. Você pode perguntar por mil vezes a uma pessoa comum a sua opinião sobre o aborto, e mil vezes ela dirá que está errado e que é até mesmo é um pecado; mas em certos setores da esfera universitária, quer-se fazer regra da exceção e transformar os 0,1% de casos de estupro no motor que pretende legalizar o assassinato de seres indefesos. Certamente que existem ações fabulosas provindas dos meios acadêmicos. Existem muitas pessoas com propósitos sérios e benéficos. Mas eu, como alguém comum, não deixo de notar que essa supervalorização não passa de uma cegueira ou uma ilusão, fomentada por interesses específicos (políticos, talvez?), pois também o ambiente universitário, assim como a sociedade como um todo, vive imerso em um colapso. Os ditos informados estão tão infectados (ou até mais) tanto quanto os desinformados.

Escrevo mais por necessidade que por prazer. Escrevo tanto para retratar os velhos sonhos, como para denunciar aquilo que colabora com a catástrofe à nossa volta. Escrevo para não me calar. Escrevo, porque a pena tanto me é uma espada quanto uma batuta ou uma simples varinha de condão. Escrevo para imortalizar momentos junto a pessoas próximas, para recorrer à memória de tempos passados, para dialogar com escritores e músicos que vivem dentro de mim. Escrevo para a posteridade, como se em um simples gesto eu depositasse em um solo fértil as sementes de uma provável imortalidade, ainda que eu desconheça a estação do amanhã. Escrevo porque ninguém o faria por mim. Escrevo, também, porque assim como Nietzsche, há momentos em que me sinto um mero porta-voz de forças poderosíssimas. Escrevo, simplesmente, como o cumprimento de um dever.

Newton Schner Jr
Enviado por Newton Schner Jr em 09/11/2010
Reeditado em 09/11/2010
Código do texto: T2606711