A filosofia e o seu ensino

ENTREVISTA

Concedida a Rony Henrique de Souza, para fins de elaboração de Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização em Educação e Interdisciplinaridades do Centro de Formação de Professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, em novembro de 2010, pelo Prof. Dr. Wilson Correia.

I – História de vida - Formação profissional, humana e acadêmica.

Nasci em Campos Gerais, MG. Sou filho de José Martins Corrêa e de Maria dos Anjos de Jesus, o penúltimo dos nove irmãos. Divorciado, sou pai de Mayla Correia, de 14 anos de idade, residente em Uberaba, MG.

Meus estudos em nível médio, então 2° Grau, foram concluídos em Goiânia, em 1988. De1989 a 1992, cursei Licenciatura em Filosofia na Universidade Católica de Goiás, hoje PUC Goiás. Entre 1994 e 1996, fiz Especialização em Psicopedagogia, na Universidade Federal de Goiás. Freqüentei o Mestrado em Educação na Universidade Federal de Uberlândia, MG, entre 2000 e 2002. Em 2003, dei início aos estudos de doutoramento na Universidade Estadual de Campinas, SP. Recebi o título de Doutor em Educação em junho 2008.

Minha inserção na prática da pesquisa teve início na graduação, quando planejei e executei o TCC Utopia de Morus: Construção Onírica ou Contestação do Real?, cuja indagação problematizou: o fim de alguns regimes socialistas liquidou a capacidade humana de preconizar e lutar por outro mundo possível? Utopia é sonho? O que é mesmo a utopia?

Na Especialização, pesquisei o tema: Fracasso Escolar: Negação da Cidadania? Nos anos 1990, quando a população brasileira contava cerca de 160 milhões de pessoas, os analfabetos brasileiros somavam 30 milhões (16 milhões deles, totais; 14 milhões, funcionais). Por isso a pesquisa problematizou: o fracasso escolar (repetência e evasão) configura, ou não, uma forma de negação da cidadania? Como a filosofia e a educação podem lidar com essa problemática?

No Mestrado minha investigação foi nomeada de Ethos, Educação e Currículo: a Ética como Saber Escolar, e se deu no âmbito do Grupo de Pesquisa em Saberes e Práticas Escolares, na linha homônima da FE/UFU. Cumpria-me a mim a busca de um sentido para o trabalho com filosofia na sala de aula e empreender uma análise sobre as implicações que a proposta representa para a educação básica brasileira no período pós-reformas educacionais dos anos 1990.

Esse trabalho me levou ao tema Ensino de Filosofia e o Problema do Endereçamento Curricular da Ética nos PCN: Controle ou Democracia?, que ganhou a forma de tese de doutorado, desenvolvida no Grupo Paidéia de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação, Linha de Pesquisa em Ética, Política e Educação da FE/UNICAMP, na qual, entre outras coisas, pude compreender que a filosofia preconizada pelas reformas educacionais havidas no Brasil nos anos 1990 endereçava-se ao cidadão e ao trabalhador “globalizado”, cujo percurso curricular pareceu-me configurado no neotecnoescolanovismo da sociedade liberal.

Em minha prática de ensino, indago: a filosofia contribui para a luta a favor de uma sociedade mais justa e de estilos existenciais mais humanos, solidários, autênticos, livres? Com essa inquietação, venho ministrando os componentes curriculares que dão ênfase à filosofia da educaçãor.

Na extensão, desenvolvo o Projeto Debate sobre ética e política, com encontros entre universitários e representantes da sociedade, visando a cumprir a função social da IES pública e a responsabilidade social do professor (ainda não implementado aqui no CFP). E, em decorrência dessa trajetória, desenvolvo pesquisas sobre a formação docente para o ensino de filosofia.

II – História do Câmpus e do Curso expressa em palavras:

A/ CFP em Amargosa.

Pelo que me consta, Amargosa não se inseria, inicialmente, como candidata a ter um câmpus da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Porém, a intensa mobilização de forças políticas e do povo fez com que o Centro de Formação de Professores (CFP) fosse instalado nesta cidade, na condição de câmpus universitário da UFRB. Seu objetivo maior é o de oferecer cursos de licenciatura, portanto, voltado precipuamente para a formação de professores de todas as áreas que perfazem a educação básica brasileira.

B/ Curso de Filosofia dentro do CFP

Desde 2006, a filosofia, ao lado de sociologia, passou a ser uma disciplina obrigatória do Ensino Médio brasileiro. Ora, é público e notório que, pelo fato de a filosofia nunca ter desfrutado uma presença curricular estável em nosso sistema de ensino, temos imensa necessidade de professores de filosofia bem formados, visando à atuação na educação básica, e não apenas no ensino médio. Nesse sentido, o curso de filosofia do CFP, cujo escopo é o de formar para o magistério, vem ocupar um lugar importante e pode oferecer uma grande contribuição à formação dos brasileiros que cursam nosso sistema de ensino.

- Diga um pouco sobre como você observa este curso dentro do CFP: Qual a sua importância? Que projetos já foram vislumbrados ou estão sendo a partir dele?

O ensino superior é feito com base no tripé que compreende ensino, pesquisa e extensão. É dentro desse contexto que os professores conduzem seus projetos, os quais aparecem devidamente registrados no Currículo Lattes de cada docente.

Esses projetos concorrem para robustecer a importância do curso de licenciatura em filosofia aqui no CFP, o qual cai sob minha observação como um aglutinador de esforços de diversos professores, os quais, nesse momento de interiorização da educação superior brasileira e de luta por garantias de democratização do acesso e permanência na universidade, podem cumprir o papel de, não apenas formar para a docência, mas, também, de contribuir para o processo de formação da identidade do CFP. Ademais, o curso pode oferecer espaços de debates de ideias sobre o Brasil, sua história e sua marca principal.

- Como nasceu o desejo de implantar o curso de Filosofia no Câmpus de Amargosa? Por que a filosofia?

Se um povo que não registra e não cultiva a própria memória está destinado ao fracasso e até ao aniquilamento, o que dizer de um povo que não pensa? Ora, a filosofia, dedicada ao cultivo da razão e do exercício do pensamento, justifica-se em um Centro de Formação de Professores por ser esse curso cuja especificidade está voltada para o cultivo dos valores da racionalidade, imprescindível à boa formação intelectual de nossos professores, e, por consequência, de nossas comunidades, mediante as experiências de pensamento que pode ensejar. Creio que, de forma genérica, esses entendimentos tenham motivado a criação do curso de licenciatura em filosofia aqui no CFP da UFRB.

- Qual a sua visão sobre o PPC do curso de Filosofia?

O atual PPC do curso de licenciatura em filosofia do CFP está passando por uma revisão. Os professores tem somado esforços para fazer com que esse documento seja aperfeiçoado.

De minha parte, tenho observado que os cursos de filosofia no Brasil se fundamentam com base em um padrão que inclui:

1) enquadramento de estudos e pesquisas, de ensino e extensão, aprendizagem e prática, no contexto histórico da tradição filosófica consagrada, tomando-se nesse viés os problemas objetivados nessa tradição;

2) predomínio de uma metodologia de tratamento filosófico da problemática tradicional centrada no rigor, na clareza e na precisão cartesianas oferecida pela pesquisas bibliográficas fundadas na interpretação, no comentário e na reprodução dos grandes autores da filosofia, razão pela qual os cursos fundam-se em propostas profundamente argumentativas, nas quais os conceitos, tecnicamente elaborados, servem de ponte de chegada e aplicação, e não de ponto de partida e criação;

3) prevalência do emprego cuidadoso do pensamento alheio, com evidenciação de apoio textual de citações e referências apropriadamente evocadas no desenvolvimento da abordagem dos problemas tradicionais segundo critérios interpretativos e comentadores, muitas vezes relegando ao segundo plano o trabalho de produção autoral de um pensamento que é próprio e inovador.

No meu entendimento, um curso de filosofia não precisaria necessariamente se fundamentar nos critérios anteriormente assinalados. Ele pode ter um PPC que enfatize:

1) componentes curriculares que propiciassem boa formação para o pensar, visando ao fortalecimento da postura intelectual, de modo que o estudante alcançasse o estágio daquele que pensa por conta própria;

2) componentes e experiências curriculares de formação que assumissem, também, as problemáticas atuais que afligem a humanidade, com metodologia que desse espaço também para a intuição intelectual, para a autoria de pensamento e para a criação de conteúdos filosóficos;

3) componentes curriculares que, então, oferecesse acesso à erudição, uma vez que, já tendo se exercitado na tarefa de pensar por conta própria, o estudante pudesse lidar com os conteúdos já consagrados sabendo o que fazer com eles, preferentemente utilizando-os como suporte para seus trabalhos atualizados e autorais.

- Como você vê o curso ao pensar nos objetivos da LDB em formar para a cidadania?

Formar para a cidadania é a velha cantilena dos liberais, só equiparada a defesa que eles fazem da educação voltada para formar para o trabalho, numa postura neotecnoescolanovista cujas raízes se estendem a Descartes, passa por Rousseau e Kant, chega a Dewey e a Piaget. Ora, o conceito de cidadania aí evocado traz à tona a questão sobre cumprimento de deveres e desfrute de direitos, e não uma definição mais arrojada de cidadania, a qual incluiria o entendimento de que condição de vida cidadã identifica-se com a participação ativa na produção e apropriação de bens materiais, sociais e culturais. Todos sabemos que o conceito de cidadania que emana da LDBEN e do discurso da educação voltada para ela não se desprende do conceito liberal e burguês de cidadania, ancorado no entendimento formal de liberdade e igualdade que se faz presente na ideologia que explica o sistema capitalista.

Ora, creio que um curso de licenciatura em filosofia pode um pouco mais. Pode, por exemplo, formar o ser humano para ele mesmo, dando-lhe condições de escolher que cidadania quer vivenciar. Pode, inclusive, formar para a crítica do modelo de sociedade no qual estamos inseridos, e do estilo existencial de homem e mulher que estamos educando para sustentar aquela sociedade. Creio que uma educação ética digna desse qualificativo não instrumentaliza o humano, mas o vê como um fim em si mesmo, aliás, como Kant também propôs. Daí a ênfase em um curso que ensinasse a pensar por conta própria, a criar e a produção autoral, respeitando-se a dignidade humana que se delineia com base na racionalidade, na potencialidade do raciocínio e na liberdade de escolha indispensável a todo homem e a toda mulher.

- O que você entende por interdisciplinaridades?

Interdisciplinaridade não rompe a lógica da disciplinaridade. A disciplinaridade é estabelecida com base na divisão e fragmentação cartesiana dos conhecimentos, resultados de objetos e metodologias também seccionados. Então, a interdisciplinaridade, pelo que tenho visto em nosso meio acadêmico, tem sido esse esforço epistêmico, didático, pedagógico e de prática docente voltado para o afrouxamento das fronteiras das disciplinas. Esse afrouxamento parece estar sendo promovido visando a que o grau de interatividade e diálogo entre os diversos campos do conhecimento, suas áreas e disciplinas seja ampliado. O objetivo é promover maior integração epistêmicas e pedagógica entre as diversas disciplinas que compõem a formação acadêmica, visando a que os reducionismos, os “guetos epistêmicos” e seus territórios se abram para um enriquecimento pela troca e pela abordagem comum dos diversos objetos que compõem os campos das artes, das ciências e das filosofia. Logo, interdisciplinaridade é desafio e requer mudanças humanas, teóricas, metodológicas, políticas e técnicas de todos quantos fazem o ensino, a pesquisa e extensão em nossos cursos de terceiro grau.

- Como você vê o curso de Filosofia dentro de uma perspectiva interdisciplinar?

A filosofia é, por natureza, interdisciplinar, no sentido de ela romper as próprias fronteiras para ir buscar nos outros campos dos saberes humanos aqueles materiais de que ela precisa para fazer a abordagem epistêmico-filosófica da realidade. Não consigo ver a filosofia numa outra perspectiva, razão pela qual um curso de filosofia pode e deve se abrir às outras áreas das informações, conhecimentos e saberes que o homem e a mulher produzem. Aberta ao universo epistêmico, a filosofia faz jus à sua natureza interdisciplinar e potencializa a articulação de saberes que abordem o local, sem se esquecer o universal, e vice-versa, mostrando-nos como é possível não se reduzir à altura do próprio umbigo.