“Escrevo o que não sei dizer com a minha voz”: entrevista com Eriane Dantas, autora do livro “Um ipê de cada cor”

Em sua resposta à pergunta que abre esta entrevista, a escritora piauiense radicada em Brasília Eriane Dantas disse que considera difícil falar de si mesma olhando de fora. Decerto é por isso que escreve, eu penso. Pois, através da escrita, consegue olhar para si mesma por meio dos personagens, paisagens, enredos e histórias que coloca no papel. Acho que é assim com todo escritor – ao menos os que escrevem não só com as mãos, mas também com brio e com honestidade.

Em 2020 tive a feliz oportunidade de conhecer Eriane Dantas e seu livro, “Um ipê de cada cor”, lançado neste ano tão atípico pela Editora InVerso. Apesar de voltado ao público infantojuvenil – do qual já não faço parte há alguns bons pares de anos – o livro me pegou já nas primeiras linhas. Afinal, uma boa história é uma boa história, independentemente de faixa etária.

Assim, com alegria divido com vocês o bate-papo que tive com Eriane, em que conversamos sobre literatura em tempos de pandemia, formação de leitores, distanciamento entre criador e criatura, histórias que ainda não foram contadas e também sobre florescer no deserto.

1. Quem é a escritora Eriane Dantas na opinião da leitora Eriane Dantas?

É difícil falar de mim como se me visse de fora. A escritora que sou hoje é fruto da leitora que tenho me tornado; da menina que fui; da professora que experimentei ser; da filha, da mãe, da esposa, da cidadã, da servidora pública que sou. Sou uma mulher com diferentes versões e não posso me separar das outras enquanto assumo uma delas.

Influenciada por cada uma dessas minhas variações, sou uma escritora caminhante, a passageira em trânsito, como li em um livro de María Teresa Andruetto. Dedico-me dia após dia a dar significado à minha escrita.

2. Você lançou recentemente o livro “Um ipê de cada cor”, voltado ao público juvenil. Como foi o processo de criação e escrita da obra? Você entrou em contato com a adolescente Eriane Dantas?

Às vezes, penso que a adolescente Eriane Dantas nunca foi embora de verdade (nem a criança). Mas sou adulta, mãe, esposa, servidora pública. No meu dia a dia, preciso pedir a essas minhas duas versões que fiquem escondidinhas. Por meio da literatura, posso reviver, sem culpa, a criança e a adolescente que me habitam.

A ideia central da história surgiu de repente, na virada do ano de 2017 para 2018, quando eu parei de trabalhar em outro texto e fui dormir. Não consegui sequer fechar os olhos. Veio a imagem de uma menina que sai de sua terra natal para Brasília (assim como eu) e precisa se adaptar à cidade. Daí foram chegando os outros personagens. Passei semanas colocando a ideia no papel, observando os lugares por onde passava, buscando referências locais. Foi um processo trabalhoso, mas prazeroso e significativo.

3. Babi é a protagonista da obra “Um ipê de cada cor”. No entanto, ela divide este protagonismo com Brasília que, apesar de ser o cenário da narrativa, atua quase como uma personagem também. Qual é a importância de Brasília na sua literatura e na pessoa que você é?

Nasci em Teresina/PI e, como a Babi, fui obrigada a me mudar para o Distrito Federal. Estava prestes a completar 12 anos de idade. Nossa situação financeira havia piorado, e minha mãe decidiu buscar uma vida melhor na capital federal. Meu pai já tinha ido e voltado e, à época, trabalhava aqui, o que colaborou com a nossa mudança.

Não resisti à vinda para Brasília, mas me senti deslocada ao chegar aqui, especialmente na escola, e desejava voltar para minha cidade natal. Impedida de retornar, fui me adaptando, escondendo os traços da minha origem, de modo a me camuflar, parecer brasiliense e evitar qualquer tipo de discriminação.

Demorou até eu assumir de onde vim. Não que negasse minha naturalidade; não costumava declará-la a todo mundo que encontrava. Quando reconheci a diversidade que temos aqui, os diferentes sotaques, os diferentes hábitos, as diferentes visões de mundo, passei a olhar para a riqueza que trago em minha história e recuperei o meu orgulho de ser piauiense. Hoje reconheço que tenho uma identidade dividida: um lado piauiense e outro brasiliense.

Brasília significa uma parte importante da minha vida, pois ela acolheu a minha família. Brasília é a cidade onde não escolhi morar, mas foi aqui que cresci e conquistei tanto, que nem minha mente imaginativa de menina alcançaria. Por isso, decidi dar esse destaque para a cidade, como forma de mostrar meu sentimento por este lugar e retribuir o acolhimento. Também compreendo a relevância de falar da nossa aldeia, da terra onde vivemos e onde estão as nossas raízes.

4. Você é pedagoga e mestra em educação, e já foi professora da rede pública de ensino do Distrito Federal. O quanto este contato com crianças e adolescentes influencia e inspira sua produção literária?

Passei quatro anos na rede pública de ensino do Distrito Federal. Durante esse tempo, lecionei para crianças da educação infantil (4 e 5 anos) e da primeira etapa do ensino fundamental (entre 7 e 11 anos).

Apesar das dificuldades de ser professora, a experiência só me enriqueceu. Aprendi muito e tenho lembranças de histórias que escutei das crianças ou vivi com elas. Resgato essas lembranças de vez em quando, mesmo que não esteja escrevendo textos para a infância. Então, de uma forma ou de outra, as crianças com quem convivi e a nossa relação trouxeram inspiração, mesmo para produzir o livro “Um ipê de cada cor”, cujos personagens e público-alvo são mais velhos. Porque a docência influenciou a pessoa que sou e a minha visão de mundo.

5. “Um ipê de cada cor” trata, entre outros temas, do crescimento e do amadurecimento da jovem Babi, que entra na adolescência ao mesmo tempo em que muda de cidade, do Rio de Janeiro para Brasília. Assim como as flores do ipê surgem em Brasília no período mais seco do ano, Babi descobre que, em meio a momentos difíceis, podemos florescer também. Você lançou seu livro em um ano atípico e turbulento, de pandemia, isolamento e crise política e econômica. Como foi e como está sendo?

O ano de 2020 trouxe um contexto que ninguém esperava ou estava preparado para enfrentar. Fomos obrigados a nos isolar, tivemos perdas, vivemos momentos de ansiedade e de tristeza, vimos os problemas sociais se multiplicando e as desigualdades se escancarando.

Não creio que os seres humanos, em geral, sairão mais solidários desta pandemia, como previram os mais otimistas. Porém algum aprendizado deve restar desta experiência.

Em relação ao lançamento do livro, a pandemia nos obrigou a trocar o jeito tradicional por um que se popularizou: uma transmissão ao vivo pela internet. Isso teve seu lado positivo: pessoas de qualquer parte puderam e ainda podem assistir à conversa sobre a obra. Lançamos mão de um recurso que existe há muito tempo e não usávamos com frequência (eu nunca tinha participado de uma live até então).

Pensando bem agora, não poderia ter havido melhor momento para a publicação desse livro. A descoberta da Babi combina com esta época. Ela criou uma maneira de olhar para as situações difíceis. Embora, em nosso caso real, precisemos de bem mais do que um jeito novo de encarar os acontecimentos, esse olhar sensível para os fatos pode nos dar forças para nos reconstruir.

6. No texto de apresentação do seu livro você conta que, durante a produção da obra, houve um momento em que você julgou a história concluída, porém depois descobriu que não. Então você se afastou da narrativa e deu um tempo para si e seus personagens. Quando um autor sabe que sua história está pronta para chegar às mãos do leitor?

Ainda estou aprendendo a identificar esse momento. Tenho usado a estratégia de deixar o texto descansar por alguns dias. Termino uma primeira versão, a reviso ao máximo e a deixo quietinha. Um tempo depois, volto até ela e analiso a necessidade de retoques.

Esse distanciamento me dá um pouco de objetividade. É incrível quanta coisa vejo de forma diferente em um intervalo de dias ou semanas. Acredito que isso seja normal e até esperado. Evoluímos dia a dia, então nossa visão de amanhã pode não ser idêntica à de hoje. Estou agora revisando uma história que já teve uma infinidade de versões.

Isso, porém, pode ser negativo, se essa revisão não tiver um fim. Em algum ponto, teremos que declarar o texto terminado ou desistir dele.

Ao escrever, sinto insegurança por não saber se o que estou colocando no papel fará sentido para outros leitores e leitoras. Às vezes, tenho dúvida se o texto está pronto para ganhar o mundo. Nessa hora, preciso contar com o meu coração, com a minha intuição. E também posso pedir a avaliação de pessoas de confiança.

7. Você mantém, desde 2018, o blog “Histórias em mim”. Quantas histórias existem em você?

Tenho um mundo de histórias. Elas estão espalhadas em cadernos de anotação, no celular, no computador, nos livros que li, nos livros que ainda quero ler. Por vezes me angustio por falta de tempo para me encontrar com as histórias que outros escritores e escritoras inventaram antes de mim, ou para dar vida a todas aquelas que nascem na minha imaginação.

O blog surgiu exatamente por esse motivo. Queria compartilhar essas histórias, mas não sabia como fazer isso, não tinha oportunidade, duvidava que alguém se interessasse por meus escritos.

Tendo esse espaço no qual minha palavra pode ser lida, desencaixotei as histórias, enfrentei o medo de me mostrar, me assumi escritora e tenho crescido tanto que nem lembro mais como eu era antes. Ele me ajuda a me manter em movimento e a não perder o prazer de criar.

8. Vivemos em um país cujos índices de leitura são vergonhosos. Onde, apesar de ter se tornado mais fácil e acessível publicar, ainda encontramos muitas dificuldades em colocar os livros nas mãos dos leitores – até porque existem poucos leitores. Em sua opinião, qual o papel e a importância do escritor na formação de novos leitores?

É verdade que os números relativos à leitura não são altos no Brasil. Nosso povo tem tantas necessidades urgentes, tantas dores não tratadas, que a leitura se torna supérflua, privilégio de poucos indivíduos. Eu não culpo os não leitores. Os livros não são artigos baratos e, em geral, o hábito de leitura não nasce do nada. É necessário estímulo e aprendizagem.

Eu mesma não fui uma leitora dedicada na infância e na adolescência. Minha família não tinha condições de incentivar esse hábito e não me lembro de projetos de leitura nas escolas por onde passei.

Isso não quer dizer que devemos nos satisfazer com essa constatação ou, pior, trabalhar para que a situação permaneça inalterável. Ao contrário, devemos todos fomentar a chegada do livro e da leitura na vida de cada brasileiro e brasileira.

Hoje, apesar da falta de incentivo governamental, há avanços, muito mais por consequência de iniciativas particulares e da atuação das escolas, que vêm reformulando seu modo de abordar a leitura.

Escritores e escritoras também têm se aproximado das escolas, das crianças e dos jovens. Como deve ser. Para além da escola e da família, o escritor ou a escritora tem sim que colaborar com a formação de leitores, seja produzindo obras que provoquem a vontade de ler, seja trabalhando para levar sua obra a leitores de todo canto.

Somos parte de uma população que, por vezes, não reconhece suas possibilidades e seu direito de conhecer e de dizer. Então podemos ser exemplo, encorajamento, desde que sejamos acessíveis e testemunhemos os benefícios da literatura nas nossas vidas.

Estou apenas começando essa jornada, mas desejo contribuir com esse objetivo. Afinal, a escrita não tem razão de ser se não for para chegar aos leitores e às leitoras. Também desejo que todo mundo experimente a transformação que a leitura e a escrita causaram em mim.

9. Quando, onde e em qual horário você costuma escrever, Eriane? A literatura, pra você, é lazer ou dever?

Costumo escrever à noite, depois que meu filho vai para a cama. Também aproveito quase todas as horas livres. E não raras vezes tenho ideias quando não posso escrever, quando estou conversando com alguém, me preparando para dormir ou fazendo outra atividade. E, de certa forma, isso também já é escrever.

Lazer indica algo prazeroso, mas, ao mesmo tempo, algo que se faz quando se quer passar o tempo, sem compromisso. Dever significa uma obrigação, aquilo que fazemos, muitas vezes, sem entusiasmo. Situo minha escrita mais no campo da necessidade ou do desejo: escrevo para comunicar aquilo que não sei dizer com a minha voz; escrevo para viver outras vidas, vidas que não posso viver de verdade; escrevo para me sentir viva.

10. Quais são os seus planos literários daqui pra frente? O que consta na sua lista de resoluções para 2021?

Planos eu tenho aos montes, mas estou tentando ir com calma, pensando mais a longo prazo, pois, afinal, qual é a pressa? Estou lutando contra a minha ansiedade de terminar os textos e vê-los publicados e nas mãos dos leitores e leitoras. Estou repensando e revisitando o que já escrevi e certamente desse meio sairá, ao menos, um novo livro.

Além disso, recebi, no final do ano, o resultado do Concurso Novos Autores – Prêmio Cidade de Teresina 2020. Meu texto “História de pescador” foi classificado em primeiro lugar na categoria Literatura Infantil. A história se passa na minha cidade natal, próximo ao encontro dos rios Parnaíba e Poti, e tem como um dos personagens o Cabeça de Cuia, um ser lendário famoso na região. Com prêmio, verei essa história virar um livro.

Então, três certezas eu tenho para 2021: entregarei mais uma obra minha aos leitores e às leitoras e continuarei trabalhando para levar “Um ipê de cada cor” mais longe. Publicar uma obra não é o fim da tarefa do escritor ou da escritora. Agora se inicia uma etapa que talvez nunca termine. Também insistirei em aperfeiçoar minha escrita e me tornar uma escritora reconhecida pelo bom trabalho.