Carta póstuma para o meu pai baseada em Brumadinho

...Salve, Majestade. Bença, PAI. Na humildade, que o senhor esteja bem para melhor ascendente, do alto ou de onde você estiver junto com outros Pais e Pães. Reza o Artigo 225 da Constituição Federal de 1988: "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". Faço paráfrase estendida em alusão ao título de uma biografia da Elza Soares: "Escrevendo para recordar e não enlouquecer". Estou dando voltas anti-horárias em torno de árvores do esquecimento. Quem assistiu "Atlântico Negro - Na rota dos Orixás", de Renato Barbieri, 1998, sabe do que estou falando. Inclusive para escaparmos e nos prevenirmos das fogueiras de novos Rui Barbosa, aliados e simpatizantes. Salvo equivoco, estamos no limiar da era 1984, na visão de George Orwell e Fahrenheit 451, segundo Ray Bradbury. Ambos adaptados para o cinema, com títulos homônimos, dirigidos respectivamente por Michael Radford, 1984 e François Truffaut, 1966. Este longo parágrafo é para te situar que nesta sexta-feira completa uma semana da tragédia anunciada, porém provavelmente maquiada em Brumadinho, a exemplo de Mariana. Cuja ferida aberta pela Samarco ainda não fechou nem cicatrizou ou foi ressarcida! Agora, veio a Vale S.A., empresa do mesmo grupo e escancarou de vez! Mestre Milton Santos deve estar dando chutes raivosos no caixão. Com mais este acidente, será que o caso vai ser investigado a fundo pela Operação Lava Jato? Ou com a extinção do Ministério do Trabalho, daqui um tempo, o processo será arquivado? Quando mexemos nos fios dos poderes, em áreas molhadas, sejam eles quais forem, corremos o risco de levar uma descarga mortal. Em reino de cegos, quem enxerga, é cegado.

"Pau de sebo

de minha meninice

moleque sobe

escorrega e desce

a vida é um pau de sebo

a gente pra chegar em cima

tem que sujar as mãos"

Assim reflete o mestre poeta Solano Trindade. Houve um tempo em que para entrar no céu, pagavam-se indulgências. Com escândalos milionários envolvendo políticos, empreiteiras e outras empresas, em períodos eleitorais e financiamento de campanhas por grandes empresários, incluindo lideranças religiosas, para bem e para o mal, fato ou fake, tudo é possível. Lembrando Caetano: “Da força da grana que ergue e destrói coisas belas!” Museu Nacional; Museu da Língua Portuguesa; edifícios Andraus, Joelma e Wilton Paes de Almeida; Boate Kiss; Memorial da América Latina, Terno de Moçambique Zumbi dos Palmares, que o digam. Coincidentemente neste 1º de fevereiro Câmara e Senado federal tomam posse e disputam a Presidência das respectivas casas. Barganhas, promissórias, controles, monopólios, conflitos de interesses estarão na arena ou rinha de galos.

PAI, “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”, diz um ditado popular. Anos passados, no banheiro de uma empresa, flagrei por mãos do acaso, conversa telefônica entre patrão e possível sócio cúmplice ou empregado coagido sobre serviço de buffet. Ele determinava ao interlocutor adquirir e maquiar insumos de segunda e terceira classe, como se fosse de primeira para baratear os custos e terem maior lucratividade. Argumentou que seriam servidos prontos, e se bem preparados, o cliente não iria desconfiar.

Mais recente, um colega, cuja sobrinha trabalha numa rede atacadista, alertou para evitarmos aves, carnes, frios, embutidos e outros alimentos de origem animal, embalados ou temperados pelo açougue das empresas do ramo. A maioria está vencida e com data de validade adulterada. O mais confiável é adquirir produtos a granel. Procede, PAI, porque já comprei uma bandeja num supermercado, com aproximadamente um quilo de linguiça toscana. Tenho por hábito ferventar e congelar ao chegar em casa, visando maior durabilidade. Nesta, pelo odor que exalou, constatei que estava podre. Retornei com o embrulho. Procurei direto pelo gerente do estabelecimento, com nota fiscal em punho. Ele se recusou a trocar, aventando má fé de minha parte. Mexeu com os meus brios. Saquei e abri um leque de formas de pagamento, a escolher. Como também ameacei levar o caso ao Procon e a Vigilância Sanitária. Cujos telefones carrego na agenda do celular. Ele prontamente pediu para um funcionário trocar o produto por a granel. Houve acréscimo ao peso, mas ele me dispensou de pagar a diferença. Inclusive, passou-me pelo caixa, para não ter problemas com a segurança do estabelecimento. Indicando-lhe que estava tudo OK.

Por estes quadros, a exemplo da legalização da maconha, incêndios em favelas e ocupações, podemos fazer outras leituras e interpretações. Não somente pelo incentivo a criação de MEI's ou conjuntos habitacionais, como também de patrulhas, face ao desemprego e a crescente informalidade. Galinhas dos ovos de ouro ainda existem entre pretos e pobres, e estão rendendo lucros e tributos não declarados. Nos meios corporativos ninguém joga para perder. Quem assistir "A Corporação (The Corporation)", de Mark Achbar e Jennifer Abbott, 2003, e, "Fahrenheit 11 de Setembro", de Michael Moore, 2004, prepare-se para ser chamado a pensar e a agir, a exemplo daquelas manifestações ocorridas em 2013.

PAI, vendo as cenas do lamaçal nos telejornais, que jorraram parecidos como lava de vulcões, lembrei da queda do avião que vitimou o time da Chapecoense, e do filme "Enterrado Vivo", de Rodrigo Cortés, 2010. Tento imaginar como deve ser morrer soterrado por não ter para onde correr? Quantas famílias foram prejudicadas? Quantas vidas animais, aquáticas, humanas, vegetais, foram ceifadas? Qual foi o último pensamento ou sentimento que tiveram? Como saciar satisfatoriamente a cobiça, ganância, lucro, vaidade, narcisismo, febre de poder? Na sua época, PAI, também era assim?

Ao contrário de Mano Brown, que não teve, eu tive pai. Só não sei se sou e do que posso vir a ser "herdeiro". Elucido a quem possa interessar. O que não tive foi tempo e convivência suficiente para conhecer meu PAI. Seja de fato a grafia em maiúscula, minúscula, relativa, ou nenhuma das três. Edgard "mestre Puka" dos Santos, foi convocado cedo. As damas das águas devem ter se afeiçoado por ele e seus dotes, estavam com falta de recursos humanos, e o quiseram para si. Neste 2019 completará seis décadas. Partiu aos 24, por afogamento. Eu estava a caminho dos 4 anos. Segundo seu atestado de óbito não deixou bens. Quais eram sua visão de mundo. Formação. Filosofia de vida. Posição partidária. Apreensões. Gostos. Tendências. Humores. Sonhos. Pesadelos. Temores. Fragilidades. Forças. Perspectivas. Se era ausente ou presente. Casca grossa ou amoroso, mão aberta ou pão duro, desconheço.

De lembranças quase concretas, ficaram apenas que era pintor residencial, bonito e elegante, gostava de ternos pretos, baile, futebol, samba, natação; uma foto antes de eu nascer, dele com a minha mãe numa festa de patrões dela; um retrato individual em posse da minha madrinha Cida; reminiscências de uma imagem de caixão e fiapo de conversa minha com a minha mãe no dia do seu velório. Naqueles tempos se velava em casa. De resto, controversas memórias subjetivas pela boca de amigos e familiares. Nada mais! Em 2004, tomei contato com uma foto inédita, presente no livro “Sampa Samba Sambista: Osvaldinho da Cuíca”, por Maria Apparecida Urbano. Um retrato biográfico ilustrado deste grande mestre. Numa das páginas, PAI, você e o Tio Valter (Babu), estão presentes numa roda de amigos. Com direito a nota de rodapé. Confesso. Fiquei todo orgulhoso. Levantou a moral. Ando pensando em pedir ao Tio Valter para solicitar uma cópia escaneada em formato negativo para encomendar uma ampliada. Como não olho somente para o meu umbigo, o dia de amanhã, assim como a próxima hora ou minuto é incerto, tento imaginar como fica a moral e o psicológico dos filhos dessas pessoas envolvidas em escândalos e crimes contra a ordem pública, na rua, na escola, nas igrejas, nos templos, nos terreiros, no trabalho? Será que mostram a cara, todo cheios, ou encobrem-na como fazem os suspeitos e incriminados nas reportagens policiais televisivas?

PAI, mesmo adulto e sexagenário, ainda guardo uma pergunta, cuja resposta sua gostaria de poder ouvir de viva voz. Sobretudo nesses tempos em que patrulhas ideológicas retornaram calçando botas da Inquisição, a quem discordar ou tiver opinião e comportamento oposto ao coro dos contentes: O que é ser Homem, e por extensão, Filho, Marido, Pai, Avô?... O que é ser Família? Assim como deuses de todos os credos, territórios, leis; atos, muros e delitos são também cometidos em seu Nome. Tudo é pelo bem da Família. Será? Tenho duvidas e mais duvidas e mais duvidas. Os mandatários do poder agem como se estivessem acima de tudo e de todos. Será que eles também não tem o que se denomina Família? Ou ela é melhor que a da maioria, como se fossem clãs e castas superiores? Até aqui estes papeis tem sido comigo e com muitos conhecidos e até do meio onde convivo, circunstanciais e de improviso. Quando buscamos tecer planos, traçar rotas, arquitetar projetos, encontramos obstáculos, resistências, boicotes, descasos, sabotagens. O que importa é dinheiro, dinheiro, dinheiro. Afeto, apreço, audiência, chegar junto, via de regra apenas são dadas e cultivadas, se rolar algum dinheiro. Não tenho nada contra. Hoje tenho ciência que assim como inventaram a roda, a economia move o mundo. Entretanto, penso com meus botões, que assim como tem peso e importância a sua origem e meio, cabe a mesma medida tanto a sua aplicação quanto ao seu destino. Em que mares e oceanos esses rios têm desaguado para através das chuvas, fortalecer e retornar a nascente como num circulo virtuoso? Lembro um samba-canção do Nelson Cavaquinho:

"Me dê as flores em vida

O carinho, a mão amiga,

Para aliviar meus ais.

Depois que eu me chamar saudade

Não preciso de vaidade

Quero preces e nada mais"

Sabe, PAI, seja na Cidade Tiradentes, seja na zona leste, seja na zona norte, seja na zona oeste, seja na zona sul, seja "em São Paulo, Deus é uma nota de 100". Afirma um rap dos Racionais. Aleluia, Amém, Axé, Feitura, Saravá, Demanda, Desamarro, Desenvolvimento, Libertação... Nas partituras do dizimo, correlatos e parentes, soam como sinfonia de cifrões nas mãos de maestros, mercadores e garimpeiros da fé. Segundo Jomo Kenyatta: "Quando os missionários chegaram, os africanos tinham a terra e os missionários a bíblia. Eles nos ensinaram a orar com os olhos fechados. Quando abrimos os olhos, eles possuíam a terra e nós tínhamos a bíblia". Os morcegos do neocolonialismo ainda fazem-se presentes, até na pirâmide de Maslow, da base ao pico. O Brasil, desde a invasão cabralina em 1500, tem servido de exploração, sustento e manutenção das grandes potencias.

PAI, a Vale S.A. prometeu doação de R$ 100 mil a cada família de Brumadinho, cujo membro foi engolido pelas lamas da barragem. Ação de Marketing Social em conjunto com Relações Públicas para limpar a imagem da empresa frente a opinião pública, imprensa, fiscalização, mercado acionário, comércio local; inibição a protestos de organizações ambientais, passíveis de distúrbios e saques. A Samarco e a Vale, respectivamente segundo a Wikipédia:

1) "Em sua história recente, a Samarco esteve envolvida em diversos episódios causadores de danos socioambientais nas áreas onde pratica a atividade da mineração. Reportam-se, por exemplo, ao menos cinco outros episódios de rompimento de estruturas, para além do notório caso em Bento Rodrigues, sendo que em quatro desses episódios houve vazamentos de lama que mataram peixes e paralisaram a captação de água. Além desses vazamentos, no ano de 2014 a empresa foi uma das responsáveis pela poluição acentuada na capital do Espírito Santo, Vitória, que resultou na CPI do Pó Preto".

2) "Em janeiro de 2012, a Vale foi eleita como a pior empresa do mundo, no que se refere a direitos humanos e meio ambiente, pelo “Public Eye People´s”, premiação realizada desde o ano 2000 pelas ONG's Greenpeace e Declaração de Berna. Dessa forma a Vale tornou-se a primeira empresa brasileira a "vencer" tal eleição, também conhecida como "Oscar da Vergonha".

PAI, na selva de qualquer parte destes pais: Dinheiro é Poder. E tem uma legião que não somente necessita, mas também o cultua e venera. Por ele tem quem se empenha em suar o rosto, sem sujar as mãos. Oportunidade para ganho existe em todos os lugares. Segundo os mais velhos, ouço desde os meus tempos de criança, que “a vida é dura para quem é mole”. Mas, também tem quem morre, trafica, rouba, corrompe, sequestra, mata, explora, mente, compra, vende. A si próprio e aos seus. Sem compaixão, flexibilidade, busca de chaves para outras saídas. A questão, PAI, é a que preço? Será que vale a pena? Quantas tragédias anunciadas envolvendo trabalhadores, sem teto, comunidades, ainda teremos que ser vítimas ou testemunhar? Segundo a Wikipédia, no verbete Dinheiro:

"O dinheiro em si é um bem escasso. Muitos itens podem ser usados como dinheiro, desde metais e conchas raras até cigarros ou coisas totalmente artificiais como notas bancárias. Em épocas de escassez de meio circulante, a sociedade procura formas de contornar o problema (dinheiro de emergência), o importante é não perder o poder de troca e compra. Podem substituir o dinheiro governamental: cupons, passes, recibos, cheques, vales, notas comerciais entre outros. (...) Inicialmente, o homem comercializava através de simples troca ou escambo. A mercadoria era avaliada na quantidade de tempo ou força de trabalho gasta para produzi-la ou até mesmo pela necessidade que o "comprador" tinha por determinada mercadoria. Com a criação da moeda o valor da mercadoria se tornou independente da força de trabalho. Com o surgimento dos bancos apareceu uma nova atividade financeira em que o próprio dinheiro é uma mercadoria".

PAI, segundo familiares tenho descendência portuguesa, baiana e mineira. Procede? A cozinha mineira, Xica da Silva (filme e novela) e Chico Rei - mito lendário e filme, mais as músicas de Milton Nascimento e Wagner Tiso, alguns poemas drummondianos e cartuns do Henfil, eram o que até então eu sabia. Recordo também visita nos tempos de infância, acho que em 1965/66, junto com a minha mãe a parentes maternos, padrinhos do tio Argemiro, em Itatiba. Graças a Comunidade do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França, estive em 2018, por duas vezes na região mineira. Uberaba e Carmo do Cajuru. Meu primeiro contato com Uberaba deu-se nos anos 1980, junto com o Quilombhoje, no mandato do prefeito Wagner do Nascimento. Sua assessoria nos convidou para uma atividade cultural. Ganhei de lembrança um long play: “Canto e Dança do Povo de Uberaba”. Ainda guardo e ouço com carinho. A exemplo desta passagem, novamente trouxe na bagagem dessas duas viagens lições de vida, hospitalidade, amizade, enfim, ótimas referências. E o melhor: Compartilháveis e Retornáveis. Neste momento, sinto-me como naquele samba do Fundo de Quintal:

“A amizade

Nem mesmo a força do tempo irá destruir

Somos verdade

Nem mesmo este samba de amor pode nos resumir

Quero chorar o teu choro

Quero sorrir teu sorriso

Valeu por você existir, amigo”

PAI, historicamente - Minas Gerais - a exemplo da Republica do Congo, dentre outros países do continente africano, é conhecida pela sua riqueza e extração mineral. A favor de quem? Em beneficio de quem?? Pelo lucro de quem??? Pelo desenvolvimento e potencialidades de quem???? PAI, num contexto geral, o que impede empresariado, governo, lideranças religiosas, sindicais e de base, e demais representações formarem um pacto nacional, lutarem e reivindicarem juntos a democratização e acesso universal conjunto pelo direito ao dinheiro, ao ensino e ao trabalho?????? Quem assistir o documentário “Sangue no Celular (Blood In The Mobile)”, de Frank Pasechi, 2010, pensará e lutará quantas vezes forem necessárias para não cair ou se safar das teias publicitárias, que vivem nos enredando para trocarmos de aparelhos celulares. Até porque, na atual conjuntura, quem tem emprego e estudo é um privilegiado. Mas, dependendo do cargo, da qualificação, da condição, da situação, vive sujeito a escravizações, assédios, chantagens, assaltos, manipulações...

PAI, do alto ou de onde você estiver, responda-me: É possível detectar e mensurar quantos acessórios, aparelhos, objetos, vestuários, etc, temos e trazemos para dentro dos nossos lares, cuja matéria-prima resultam de extrações minerais ou de explorações ilegais do meio ambiente? Matérias-primas ou produto final que alimentam, sobretudo, interesses e conflitos territoriais, escravatura feminina e infantil, e por extensão apóiam e fortalecem outros graves abusos dos direitos humanos, da violência e exploração humana? Com duas tragédias quase seguidas, Mariana e Brumadinho, onde o Brasil difere do Continente Africano e de outros países em desenvolvimento? O Brasil foi o último país no mundo a abolir a escravidão. Suas sequelas e ranços senhoriais ainda fazem-se presentes nas relações cotidianas, cuja ideologia extrativista é uma sanguessuga a ser combatida. Seja nas áreas de trabalho, de governo, de riqueza, de poder. Veja o cenário político, tanto no Brasil quanto que no mundo, em que estamos vivendo. Evoco outra vez o mestre poeta Solano Trindade:

“Nas zonas miseráveis

eu fico a perguntar

quais as esperanças do trabalhador?

Nos hospitais

nas cadeias

eu fico a meditar

quais as esperanças do trabalhador?

Toma forma de ritmo

toma forma de canto

sempre a mesma pergunta

quais as esperanças do trabalhador?”

PAI, sem querer ser moralista, décadas passadas, entre os meus 13 a 16 anos, não sei precisar, Gil Gomes pregava ao final do seu diário programa radiofônico matinal: “Se você agir com dignidade, pode não consertar o mundo. Mas tenha certeza de uma coisa: na terra haverá um canalha a menos”. Num mundo de juízes, promotores, celas, labirintos, presídios, não me cabe determinar e sentenciar quem está certo, quem está errado. Lembro apenas outro mestre poeta, o Carlos de Assumpção, em seu antológico Protesto:

"Um dia sob ovações e rosas de alegria

Jogaram-me de repente

Da prisão em que me achava

Para uma prisão mais ampla

Foi um cavalo de Troia

A liberdade que me deram

Havia serpentes futuras

Sob o manto do entusiasmo".

PAI, observando de fora o trabalho dioturno de abelhas e formigas, no entorno de onde moro, paro para pensar e até cogitar. A primeira é ingenuidade, a segunda é marcação, a terceira é burrice, a quarta é masoquismo. Diz um samba do Partido em 5: “Cão mordido por cobra, até de cipó tem medo”. Portanto, o passo persistente precisa valer a pena para quem já passou do segundo. A Wikipédia sugere 13 possíveis caminhos: "A sociedade cria diversas expressões para classificar os diversos tipos de relações matrimoniais existentes. As mais comuns são: casamento aberto (ou liberal); branco ou celibatário; arranjado; civil; misto; morganático; nuncupativo; putativo; religioso; poligâmico; poliândrico; por conveniência; avuncular. Não sei se tenho direito a querenças. Tanto que às vezes indago sobre qual é a diferença entre querer o poder e poder querer? Neste contexto, se eu vier um dia a empreender Família pela terceira vez, por finalmente, mesmo que tarde, ter aprendido e compreendido o seu significado em toda a extensão, gerar ou adotar fruto, seu nome ou prenome será Autonomia e Dignidade, em algum dialeto africano, crioulo, esperanto. E não apenas um ato provedor e ostentador, geralmente para atender interesses legais ou requisitos sociais. Tipo escudo, escada, trampolim. Que seja algo como as bases do Kwanza ou a filosofia dos baobás. Todos os meios e modos de escravidão, dependência, servidão, agridem, consomem, violentam, corroem o ser humano. A exemplo de empresas fajutas e lesa-humanidade para incautos, com denominações e atuação em ramos diversos. Seja física ou virtual. Lembrando um rap: “Casar é negócio. Você vê quem é quem só depois do divórcio”.

PAI, do alto ou de onde você estiver junto com outros Pais e Pães, continue, Preto. Não desista. Resista. Transmita. Permanecerei aqui enquanto for e por todos os meios necessários, a tentar ao menos fazer o meu melhor possível, esquivando-me de areais movediços, através de referências positivas buscadas constantemente em meios diversos, passíveis de serem passadas de geração em geração, feito bastões, a serem repassados a quem possa interessar. Como um Centro Cultural Arte em Construção. Ilê Axé Omo Odé. Príncipe Negro. Ogban. Fala Negão, Fala Mulher... Somos seres em edificação continua. Assim como as caminhadas do Movimento Negro, de negras e negros em movimento. Faço coro a professora e escritora, mestra Geni Mariano Guimarães, em Terceiro Filho: Não há necessidade de passadas longas; o importante é não ficarmos parados". Não quero nem posso. Se parar, crio e alimento azedumes, bolor, gorduras, depressões... Melhor, então, o movimento. Assim, respiro ares novos e me reciclo. Se estou agindo correto, se estou trilhando o caminho certo, PAI, cabe ao tempo e ao senhor dizer. Lembrando Pecado Capital, dos mestres Paulinho da Viola e Paulo César Pinheiro:

"Mas é preciso viver

E viver não é brincadeira não

Quando o jeito é se virar

Cada um trata de si

Irmão desconhece irmão

E aí dinheiro na mão é vendaval

Dinheiro na mão é solução

E solidão"

Neste contexto, PAI, peço sua Benção, e se possível, que alimente e ilumine os caminhos dos seus sobrinhos, netos, genros, noras, bisnetos, incluindo os dos seus camaradas. Não é por mim, é por eles. É por Mariana. É por Brumadinho. É pelas próximas gerações. Peço que os alimente e ilumine como os quitutes, contos e prosas das mestras-chefs Adriana Tadeu, Margarida Soares, Cleide Aparecida Vitorino, Maria Conceição Oliveira, Vanderli Salatiel, Silvia da Silva, a carne de panela com molho ferrugem da mana Izilda Cardoso, os assados das primas e irmãs Sandra e Rita, as festas americanas da Ana Paula Nascimento (A Preta), apenas para citar um bonde “Só Preto, Sem Preconceito”. Ao som encantado e cantante das Pastoras do Rosário, Cordão Dona Micaela, Comitê do Soul, sob a batutas de Renato Gama e Sergio Oliveira Pereira, frente a orquestras de congadas, jongos, moçambiques. E documentadas pelas lentes generosas e talentosas de Nayara Rodrigues, Vanderson Satiro, Gisele Martins, Marcius Orlandi, Osmar Moura, Luciana Alexandrino, Antonio Terra, Rubens Nê Viana, Diego Urbaneja, Eufrate Almeida, Januário Garcia, Luiz Paulo Lima, Roberto Esteves Fotógrafo... A lista dos manos e das minas é extensa. Mas, não é por mim, PAI, é por eles. E pelos próximos. Assim faremos parceria a Vinicius e Toquinho:

Eu não ando só

Só ando em boa companhia

Com meu violão

Minha canção e a poesia".

Procede, PAI. Segundo a Wikipédia: "Parcerias podem ser estabelecidas entre sujeitos públicos ou privados, individuais ou coletivos, para a realização de intervenções finalizadas sobretudo ao desenvolvimento econômico ou social de um determinado grupo ou território". PARCERIA. Este substantivo feminino vem sendo um mantra entoado, clamado e reiterado feito sermão disco empenado ("água mole em pedra dura tanto bate até que fura"), no plural e em maiúscula pela sister Maria Das Dores Fernandes. Um padre José Morelli e Luiz Fernando de Oliveira, de saias. Ou atentos ao "Manual de Sobrevivência do Negro no Brasil", de Arnaldo Xavier e Maurício Pestana. Livro referencial carente de reedição. Sobretudo nesses tempos de retrocessos e renascimento dos anos de chumbo, com carta branca para matar. Antes o slogan era: "Brasil, Ame-o ou Deixe-o" Agora: "Brasil acima de tudo; "Deus acima de todos". Pretos e pobres cafuzos, confusos, periféricos que se cuidem. A começar por quem usa guarda-chuva casarão. Pode ser confundido com fuzil, a exemplo de um caso ocorrido em 2018, durante blitz na comunidade Chapéu Mangueira, Rio de Janeiro.

PAI, segundo um amigo, que optou trabalhar por conta própria junto com a esposa e investirem na formação e qualificação dos filhos, e buscarem para si outras estruturas, disse-me que serviços terceirizados em setores governamentais, principalmente os das áreas de limpeza e de segurança, são segmentos críticos para funcionários de médio e baixo nível. É um troca-troca constante, onde o empregado geralmente é forçado a fazer vista grossa a irregularidades, efetuar o trabalho de meia dúzia em condições precárias, mediante salário magro, se não quiser ficar desempregado, colocado em sistema itinerante ou mal visto na praça. Geralmente são empresas criadas e controladas por cartéis. Quem se atreve a delatar ou procurar a justiça para reclamar direitos trabalhistas, corre sério risco de não encontrar emprego na profissão ou de receber indenizações abaixo do devido e merecido (é um tal de pegar ou largar acordado por advogados, na base do antes pingando consensual que seco litigioso, sabe-se lá quando), porque os patrões são sempre os mesmos. Fecham e abrem empresas para continuarem atuantes com outras razões sociais, nos mercados. Quando não vem de grandes famílias, integram fortes conglomerados e patrocinadores de campanha, com blindagens e poderes, tipo parlamentares com fórum privilegiado. Será que os 6 bilhões que o Trump vem batendo pé será destinado integralmente a construção? Quantas empresas e empresários votantes serão beneficiados, direta e indiretamente? Em termos de Brasil, o que difere?

PAI, contaminado pelo cinema, quando não estou assistindo a filmes, ultimamente venho lendo mangás. Cada obra dos grandes mestres, tem sido uma lição de arte, roteiro, decupagem, composição textual e visual. Desde criança, tomei gosto por revista em quadrinhos. Possível influência da televisão. Aprecio alguns super-heróis. Batman, Homem Aranha, Zorro. Ano passado vibrei ao ver Pantera Negra. Lembrou Shaft e Falcão. Outros, PAI, nem tanto. O Superman é um deles. Por ser o homem de aço, bem cara do Tio Sam, acho-o um tanto prepotente, presunçoso, soberbo. A primeira e a última palavra, via de regra, são sempre a dele. Um dia, por acaso, uma graphic novel me chamou a atenção, na estante da biblioteca aqui do bairro, a André Vital, que frequento habitualmente. Os Maiores Super-Heróis do Mundo. Desta vez, o kriptoniano, talvez por falar um pouco a nossa língua, ter descido um pouco do pedestal, neste conto ilustrado ganhou a minha simpatia. Tenho quase certeza que se Carolina Maria de Jesus aplaudiria sua atitude. Transcrevo parte de um texto, quase apresentação, que encontrei na Internet: "Super-Homem: Paz na Terra. Quando o herói acaba se deparando com a precariedade da alimentação em alguns lugares, ele tenta resolver o problema colhendo e entregando comidas que geralmente são desperdiçadas, porém acaba descobrindo que o problema na realidade mora na ganância dos grandes lideres. Essa história expõe lindamente o quanto lideres das nações não se importam em sacrificar a população para ganho pessoal". PAI, alguma semelhança com Mariana, Brumadinho, África, Etiópia, Nordeste, e...?

PAI, ressalto que essas observações resultam de caminhadas, cliques, conversas, leituras, anotações... Sem a intenção de posar de santo, nem querer ser dono da verdade. Ainda tenho muito por aprender e até me reeducar. Segundo Cícero Buark, em Falando Sozinho: "O sábio quando nasce já tem mais de quinhentos anos". Prefiro aquela do MV Bill: "Ser artista, pop star, pra mim é pouco/Não sou nada disso, sou apenas mais um louco/Clamando por justiça, igualdade racial/Preto, pobre é parecido, mas não é igual". Ou, como expressa um ponto poético dos nossos malungos e quilombelas, e chame pra uma roda de poemas Miriam Alves, Sergio Ballouk, Vera Alves, Akins Kintê, Elizandra Souza, Allan da Rosa, Conceição Evaristo, Ele Semog, Oswaldo de Camargo, Oliveira Silveira, Jônatas Conceição, Eduardo Rollemberg (Edu Omo Oguian), José Carlos Limeira, Kiusam de Oliveira, Lia Vieira, Ruivo Lopes, Ademiro Alves Sacolinha, Marcio Barbosa, Esmeralda Ribeiro, Cuti, Neide Almeida, Marciano Ventura, Neide Lopes, Sidney de Paula Oliveira, Benedita Lopes, Abelardo Rodrigues, Claudia Walleska Silva, Oswaldo Faustino, Wellington Góes, Fernanda Sousa, Abílio Ferreira, Raquel Almeida, Fábio Mandingo, Ligia Ferreira, Carlos Mahlungo, Wagner Silva Souza, Israel Menezes, Marcelo D'Salete, Carlos Machado, Slam Letra Preta, Marcelo Palmares...:

“Poesia de negro é Axé

É Axé

Poesia de negro é Axé

É Axé

Axé Babá eu digo

Eu digo Axé agô

E entro nessa roda

E incomodo o sinhô

Olha o tombo

Olha o tombo

Olho o tombo

A poesia negra

Vem com a força de um quilombo”

PAI, Afroabreijos no seu coração. Desculpe se me alonguei. Espero não ter ocupado em demasia o seu precioso tempo. Eu estava com tudo isto atravessado e engasgado na garganta. Martelando continuamente a minha cabeça. Movido pelo entendimento, pelo sentimento de que precisamos fazer alguma coisa. Algo parecido com o livro "Se Me Deixam Falar", de Moema Viezzer. E suponho não ser o único nesta situação. Reza um pensamento aqui no bairro, desde que vim nele residir: "Não mude da Cidade Tiradentes; ajude a mudá-la". Vejo sentido e busco fazer a parte que me cabe, dentro do que estiver ao meu alcance. Segundo Cícero Buark: Enquanto o homem só se preocupar com dinheiro, viverá num mundo pobre".

Outra vez, PAI, peço sua a Benção, e se possível, que alimente e ilumine os caminhos dos seus sobrinhos, netos, genros, noras, bisnetos, incluindo os dos seus camaradas. Não é por mim, é por eles. É por Mariana. É por Brumadinho. É pelo Brasil. É pelo planeta. É pelas próximas gerações. Apenas uns poucos privilegiados, os que tem costa larga, dupla cidadania ou vem se sacrificando por um objetivo no exterior, tem lugar seguro para onde ir. Aos demais, a luta é aqui. Gostem ou não. Segundo mestre Malcon X: "Os homens, que realmente mudaram o curso da história da humanidade, foram aqueles que tiveram coragem suficiente, para mudar a opinião que tinham de si mesmos". Pensamento, que em termos comparativos e quase similares a autobiografia do mestre, escrita por Alex Haley, remete em essência ou releitura, a uma canção de Raul Seixas:

"Prefiro ser essa metamorfose ambulante

Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo

Eu quero dizer agora o oposto do que eu disse antes

Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante

Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo"

Todavia, seja lá o que for, continue, Preto. Não desista. Resista. Transmita. Espero que na próxima tenha notícias mais leves e alegres. Se cuide, Riqueza. Voe!...

Oubí Inaê Kibuko, Cidade Tiradentes para o mundo, 01/02/2019.

Publicada no RECANTO DAS LETRAS e CABEÇAS FALANTES blog:

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