Azulejos

“Você vai morrer”, disse uma voz doce num tom convidativo, “dessa vez não vai escapar”. Tudo está embaçado, e as coisas parecem se embaralhar umas com as outras. De alguma forma minha mão alcança uma coisa sólida e consegue agarrá-la com firmeza. É uma garrafa. Eu tomo um longo gole. Não sinto gosto, pode ser água, vodca, chá ou qualquer outra coisa, eu já não sei mais. “Isso não vai te ajudar, não agora” a voz insiste, eu a conheço, eu sei quem é, só não me lembro.

Bebo outro gole, maior que o anterior. Minha boca se enche de um gosto amargo e minha língua amortece. Dessa vez reconheço o sabor, é vodca. “Ele ainda insiste nisso, coitado”, essa voz é diferente, é seca com um tom de piedade, “não podemos acabar logo com isso?”. A pergunta não foi para mim, ou pelo menos acho que não. “Ainda vai demorar”, a primeira voz responde, a pergunta realmente não era para mim.

Silêncio. Tento focar a vista. Só vejo o brilho da tela, ainda está tudo embaçado. Bebo mais um gole. “Ele não tomou o suficiente”, é a primeira voz de novo, “vai agonizar ainda”. Entendi o recado. Tenho que levantar.

Respiro fundo. Meus pulmões se enchem, mas parece que estou inalando água. Tusso um pouco. Respiro de novo. Dessa vez o ar entra. Aproveito o embalo e levanto. Não sei como minhas pernas se firmam. Eu caminho.

Consigo chegar ao balcão, está ali. Tento três vezes e consigo pegar. Quase derrubo, minhas mãos se firmam. “Tem certeza?”, a segunda voz pergunta, eu não respondo. Enfio aquela coisa negra na boca e a empurro goela abaixo com um gole de vodca. Está feito. “Está feito”, concorda a primeira voz, “está feito” repete a segunda.

Volto para minha cadeira. O brilho da tela me deixa cego. Ainda estou segurando a garrafa. Sem saber o que mais fazer tomo outro gole. “Será que agora foi o bastante?” é a segunda voz, acho que está falando com a outra. “É bom que tenha sido”, a primeira voz responde, “era tudo o que ele tinha”.

Satisfeito, bebo mais um gole e relaxo. É isso, dessa vez vai. “Dessa vez você não vai escapar”, é a primeira voz, ela está soando maldosa agora, “dessa vez não vão chegar a tempo de te salvar”. Eu dou de ombros. “Essa é a ideia”, eu falo em voz alta. “Coitado”, é a segunda voz, parece que ela está chorando, “mas é melhor assim”. Eu espero. O mundo começa a girar mais rápido. Minha mente começa a trincar.

“Começou”, eu penso. Começo a bolar meu próprio epitáfio. Tenho uma boa ideia, preciso anotá-la. Concentro-me. Por um momento o mundo entra em foco. Eu largo a garrafa e levo minhas mãos ao teclado. “Salve-se”, essa voz é diferente das outras, eu a conheço, “ainda há tempo”.

Ela é convidativa. Eu sei quem ela é. É ela. Eu escrevo. Não é um epitáfio. Eu bebo mais um trago, o último. Eu envio a mensagem. “Não!” gritam as duas vozes em uníssono. “Sim”, eu murmuro baixinho.

Minha mente retorna ao presente e os azulejos do chão entram em foco. Eu me espreguiço na poltrona e massageio minhas costas devagar, devo ter ficado um bom tempo olhando para baixo para elas doerem desse jeito. Sentada a meu lado, Prudence me encara com ares de preocupação.

-No que estava pensando com tanta intensidade?

-Nos azulejos – respondi evasivo –, estava tentando conta-los.

-E quantos são no total? – Ela retrucou.

-Não faço a menor ideia.

Schrodinger
Enviado por Schrodinger em 13/07/2019
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