Milagres Natalinos devem ser contados?

Em numerosas revoadas, os corvos beliscavam as carnes podres das nuvens que passeavam pelo céu sem lar e raízes. Silêncio fúnebre adotado pelo preto da morte. Alterando a cor, repentinamente, o cinza dos trovões ribombavam e relâmpagos criavam figuras estranhas no firmamento. Coriscos de fogo desciam e abriam fendas na terra. O diabo em confronto com o Criador? Enrolando os fios de cabelo do bigode amarelado pelo fumo do tabaco de rolo, quis saber Secundino. Quem saberia responder a pergunta naquele chiqueiro de condado!

Jamais tiveram contato com relógios e calendários. Desconheciam as flores. Quando muito, uma rama com tubérculos de mandioca. O emaranhado de traços que compõem os mapas? Quem seria o geógrafo/engenheiro para desvendar os mistério de linhas, traços e curvas para aqueles povos representantes do nada? Nunca souberam em que veio nasciam as estradas que davam no mar. Passavam as horas contado os dias para a morte sem saber como é belo e espontâneo o abraço caloroso das águas do mar nos sopés dos rochedos de pedras. Água mole, céu nublado e escuro, de tanto as nuvens insistir, recifes de corais e peixes tomam líquidos poluídos pelo mercúrio.

O amor...; ora o amor! O amor é uma página em branco cheia de figuras e signos; e ainda que soubessem ler, jamais saberiam amar. Povo bruto de coração, nada difere de asnos chucros. Deitam feito asno, despertam como jumento.

Acreano, filho mais velho de Deusmira, dizia que era um pé de jaca. Nascera, crescera, ficara grande e folhado. Em certa idade, deu frutos que apodrecera no pé, porque ninguém conseguiu comê-los em tempo. Dando uma de Profeta do arauto, afirmava categoricamente que ali, naquele lugar em que qualquer espécie que respira, rejeita; só havia pés de jacas e porcos. Palmas espinhosas também. Às vezes, criavam uma cabra para dar um copo de leite. Por não resistirem a quentura do sol fritando-lhes os neurônios e a palhada seca, deixavam os ossos da carcaça pelos caminhos à procura de água. O derradeiro pingo de água que se tem notícia foi dado por Raquel de Queiros, no livro "O Quinze"; de lá para cá, uma vez ou outra, as nuvens passam com mala e cuia pelo céu, convidam os corvos e esses, rejeitam o passeio. Embora finjam não saber de sua existência, a morte é o braço direito, forte aliada e amissíssima da vida.

Dificilmente pensavam, mas quando pensavam, confabulavam entre si que a Natureza tudo dá e conforme sua conveniência, tudo toma. Chegavam dizer que a Natureza é "persona non grata". Diziam isso, óbvio que com o palavriado deles.

Um pedaço de torrão tórrido, lá nos cafundós do sertão, onde animais estúpidos de sorrisos esganiçados cantavam e oravam para um deus invisível, desconhecido e esquecido. Menino Jesus, quem é Menino Jesus? Ouviu dizer Abdias quando tinha 20 anos. Hoje com seus mais de 90, esqueceu até seu nome.

Até novas barrigadas encomendadas meses antes é motivo para esquecerem os pesadelos de vida. Pesando muitas arrobas, a porca Roxinha nem levanta do lugar. Com sua pança avantajada, perdeu todas vestes. Tapando as vergonhas com as mãos, está semi nua rolando no pouco de lama que sobrou. A seca que ziguezagueia feita cobra que abre buraco no solo, se arrasta por longos anos. A seca que mata, é a procissão rezada sem novena.

E não demorou muito para os nacos de carnes podres caírem em forma de pingos. Alimento para um solo faminto e mal tratado pela Natureza. "Queira nosso Deus verdadeiro e bondoso que a poça de lama seja refeita, o que diminuiria significativa o nosso sofrimento e amenizava as avarias de pressão de Roxinha. Corre sério risco de perder a barrigada, devido às altas temperaturas originadas pelo forte calor." - resmungou Vitalino. Que vital, é apenas no nome. Emoldurado pela desilusão, o infeliz está pele e osso.

Vida renovada. Roxinha pariu. Mãe Benta foi na cidade que dista muitas léguas de lá e comprara um dentadura nova. Foi num pé e voltou no outro. Decolou com o vento e aterrissou com a brisa. Era ela a matriarca administradora e dona de tudo. Nada, ou pouca coisa passava pelos seus olhos sem ser visto. O prenúncio constante de morte exige olhos vivos.

Até às sombras das horas, uma bela vista brindou o novo horizonte da mãe que amamentava a ninhada. Para alegria de Mãe Benta, veterana matriarca dona do rebanho, de dentro dela saíram 15 roncadorezinhos. A tetaria vermelha sendo sugada ininterruptamente.

Nasciam os dentes da ninhada. Vez para outra, Roxinha contorcia-se de dor com as mordidas. Separaram duas belas e vistosas leitoinhas para cruzamento e manutenção da safra vindoura. A dúvida pairava em saber se quando no calor, aceitariam o barrão macho fungando no cangote delas; ocorrência bastante comum nessa espécie. Quando cismam de não levantar o rabo do anel de segredo, nem o diabo dá jeito. Por outro lado, o condado, além de crescer vertiginosamente, renascera com o alimento garantido para passar a próxima estiagem. Debaixo do pé de jaqueira, regozijavam: Ô glória, glória, glória, glória! Louvado seja o puritanismo de quem não conhecemos, porque quem conhecemos, não faz milagres...; ô gloria!

"Dê glória aos porcos também" - dando um tapa na mosca que pousara em sua cara, retrucou Abdias em seu leito de morte. Estava por mais um sem número de suspiros. As más línguas diziam que não eram muitos, não. Fiel e inseparável companheira, a vida transita nas passarelas da moda, nas viagens em cruzeiros e points das manias com a morte a tiracolo.

Sua saída da matéria havia sido encomendada pelo Pai Celestial. Não emplacaria a virada de ano; liberando então, o leito para limpeza. Provavelmente, após asseado e desinfetado, Mãe Benta forraria com capim seco e palha o colchão duro, e traria Roxinha com sua linda ninhada, representando o futuro e alimento, para terminar o resguardo. Especulação apenas, pois Abdias ainda estava com os olhos em lusco fusco. Contrário do sol de malhava a Terra com olhos ávidos, secos e famintos, seus olhos brilhavam em meia luz escondido sob as nuvens de lágrimas que escorriam-lhe pelas faces e empossavam nos vincos. Estavam revirados feito peixe desfalecido. Todos esperavam ansiosos pelo desfecho, pois, respeitar a passagem do próximo é virtude humana; e não coisa de quem ronca e fuça. Respeitar as pessoas é respeitar a si, acima de todas as coisas.

- Pronto! Foi-se para a eternidade, prepare o banguê e abra a cova. Será plantado imediatamente. Sem choro e sem vela não faremos velório.

A filha mais nova, cuja aparência vincada da cara e os cabelos prateados na cabeça diziam pelos seus 65 anos, correu para avisar o condado inteiro. Sempre fora amada pelo pai, a partir daquele instante, defunto. Defunto Abdias. Ao falecer uma das demais irmãs, do total de 15, recebiam essa mesma sentença dada pela irmã mais nova. Disciplina e ordem marcavam a família. Esse foi um dos legados deixando pelo defunto Abdias e assinado por todas elas em vida.

Como tudo que é abstrato e subjetivo, ódio não tem definição exata, mas se um dia algum cientista iluminado defini-lo em tese, o ódio nada mais é que a falta de amor; e eles: Abdias, as filhas e a esposa amavam-se em família. Não sabiam, mas além da chuva que molhara a terra, de Roxinha que ganhara uma ninhada de filhotes e trouxera alimento para os próximos anos e amar uns aos outros sem distinção de cor, sem distinção geográfica, política, de classe, poder aquisitivo, credo, gênero, tamanho, também são milagres natalinos em tempos de perdas de valores morais, éticos e religiosos. Porém, Deus não se prende as mesquinhezes humanas e com sua soberana onisciência, existe e faz chover sua onipresença em qualquer solo de qualquer Terra seca.

Deus é tão remoto e redundante, que presenteia o terreno alagado com a chuva molhada; e o mais louvável, não espera por épocas e datas. Deus tem coragem e ação; e muito mais que sua imagem e semelhança, cumpre o apalavrado em acordos e promessas. Certamente, Deus não é político, muito menos carnavalesco, e por ser o tudo do nada e o vazio do cheio, não veste seu corpo e rosto com as máscaras de papai noel. Inevitavelmente, Deus sofre de misantropia aguda, doença psíquica que a medicina humana desconhece; e jamais conhecerá os seu sintomas, afinal, para ser humano, o primeiro mandamento é ter um pouco de empatia. O segundo, sensibilidade...

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 11/12/2017
Reeditado em 12/12/2017
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