O velho, o menino e o burro

O VELHO, O MENINO E O BURRO
Miguel Carqueija


Recontando a conhecida fábula:

Por uma longa e poeirenta estrada seguiam lentamente um homem idoso e barbudo, um rapazinho adolescente (seu neto) e um burro. O velho ia montado no animal e o garoto seguia a pé. Algumas pessoas porém, que passavam em sentido contrário, observaram com irritação:
— Olha só, olha só que abuso! Um velho horrível desses vai confortavelmente montado e deixa um pobre menino caminhar sozinho sob esse sol escaldante, sem um chapéu sequer! É gostar de explorar crianças!
— Se tivesse telefone por perto devíamos dar parte ao Juizado de Menores... velho sem-vergonha!
O homem desmontou e mandou que o menino subisse na montaria.
Um pouco além, pessoas que moravam á beira da estrada, homens e mulheres, comentavam com desagrado:
— Viram isso? O coitado do velhinho tem de andar a pé nesse calorão, e o folgado do menino vai confortavelmente montado no burrinho!
— Esses jovens não têm mais o menor respeito pelos cabelos brancos! São uns abusados! Pobre velho...
Já meio invocado o velhote resolveu tornar a subir no burro, mas sem desmontar o neto. Prosseguiram os dois montados.
Outras pessoas por quem passaram não pouparam críticas azedas:
— Isso é demais! Olhem só que maldade! Esses dois marmanjos não têm pena de um animalzinho indefeso! Quanto pêso em cima do bichinho!
— Devíamos avisar a Sociedade Protetora dos Animais! Isso é um abuso! Coitado do burrinho, deve sofrer muito nas mãos desses dois desalmados!
O velho fez mais uma tentativa. Desmontou e mandou seu neto fazer o mesmo. Continuaram o caminho a pé, conduzindo o burro.
Dessa vez o que ouviram foram zombarias a granel:
— Mas que burros! Esses dois são mais burros que o próprio burro!
— Pois é, onde é que já se viu? Dois bobocas seguindo a pé nesse calor, por essa estrada lamacenta, levando um burro novo e forte, bem alimentado, que segue bem fresco, sem carga alguma! Tem que ser muito idiota! Podiam seguir os dois montados...
Um pouco mais adiante o velho, com a cara bem feia, interompeu a marcha e dirigiu-se ao rapaz:
— Agora já chega. Faz o seguinte: me ajuda, e vamos nós dois carregar o burro!
— Vamos o que, vovô? Eu ouvi bem?
— Você escutou muito bem! — berrou o avô, já fulo da vida. — Você e eu vamos carregar essa droga desse burro! E se alguém fizer uma crítica ou zombaria, eu vou descer a porrada!

Rio de Janeiro, 15 de abril de 2018.


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