Assim falou o ornitorrinco
E na aula de literatura infantil, o professor informou à turma que iriam fazer a análise de uma lenda do folclore brasileiro, que ele iria apresentar. Abriu um livro de contos e começou a ler:
- Era uma vez uma floresta na Amazônia, onde viviam muitos animais, aterrorizados por uma família de onças. Como eram as mais fortes, as onças dominavam - e comiam - todos os outros bichos. Só escapavam aqueles que tinham uma proteção natural, como o jabuti (com sua carapaça) e o porco-espinho. De resto, nem peixes nem aves tinham sossego: as onças eram nadadoras exímias, e as aves tinham que pousar eventualmente para descansar e dormir - e viravam comida de onça.
A situação estava ficando de tal forma desesperadora, que os animais resolveram fazer uma reunião para discutir como se livrar do problema (das onças), preferencialmente em caráter definitivo.
O macaco, tido por todos como o animal mais esperto da floresta, sugeriu que chamassem um especialista de fora para lidar com o problema.
- É preciso sair da floresta para ver a floresta - explicou o macaco. - Alguém que não viva aqui, poderá perceber algum detalhe que nos escapa, e que nos permita dar cabo do problema.
E como emissário, o macaco sugeriu enviar a garça real, com mensagens para três animais estrangeiros que ele considerava as melhores opções: o bisonte, o dodô e o ornitorrinco. Como nenhum dos animais amazônicos jamais ouvira falar de qualquer deles, fiaram-se no julgamento do macaco. E lá se foi a garça real, cumprir sua missão.
Chegando às planícies do Norte, a garça encontrou o rei dos bisontes, em meio a milhares de membros de sua poderosa família. Eram tantos que cobriam a terra, e seu tropel levantava uma nuvem de pó capaz de ocultar o sol. Mas o rei dos bisontes confessou que, embora fossem muitos e poderosos, pouco poderiam fazer contra as onças da Amazônia.
- Veja bem, somos animais de campo aberto. No meio das árvores, não poderemos reunir as grandes manadas e as tais onças nos caçarão um por um; o coletivo é a nossa força...
E então, partiu a garça para a distante ilha Maurício, onde teve dificuldades para explicar o que era uma onça - e até mesmo encontrar quem falasse pelos dodôs.
- Vocês vivem num lugar onde há animais que caçam outros animais? - Indagou surpreso um velho dodô.
- Caçam e comem - esclareceu a garça.
- Mas... por quê? Não há plantas suficientes para todos?
- Onças não são herbívoras.
- Talvez seja por falta de diálogo... - ponderou o dodô. - Vocês tentaram ao menos conversar com elas? Ouvir suas razões?
- Onças não ouvem ninguém, só o próprio estômago - suspirou a garça. E seguiu para sua última escala, na ilha-continente da Austrália.
A garça teve certa dificuldade em localizar o esquivo ornitorrinco. O bicho parecia não querer ser encontrado. Finalmente, avistou um, tomando sol à margem de um rio.
- Olá, eu sou a garça real da Amazônia - apresentou-se ela. - Espero que você possa me ajudar, pois já voei metade do mundo e continuo sem respostas para o que vim buscar.
- E o que você espera encontrar aqui? - Grasnou o ornitorrinco.
A garça real contou novamente sua história. O ornitorrinco ouviu tudo sem fazer qualquer interrupção. Finalmente, pronunciou-se.
- Vocês conhecem o fogo?
- O que é fogo?
O ornitorrinco explicou pacientemente o que era e como obtê-lo, e como poderia ser usado para combater as onças. A garça ouviu, fascinada.
- Só um lembrete: o fogo é uma arma extremamente poderosa. Não pensem em usá-lo na estação seca, ou poderá fugir ao controle.
A garça prometeu que seguiria à risca o conselho e voou de volta para casa, muito feliz.
Recebida em triunfo na grande assembleia dos bichos, contou em detalhes sua peregrinação e a receita de como expulsariam as onças da floresta. Houve imenso alarido de júbilo, quando todos vislumbraram o fim do seu sofrimento coletivo bem adiante.
- O que estamos esperando? - Gritou o macaco. - Vamos passar fogo nessas onças!
A garça lembrou-se do último conselho do ornitorrinco, e tentou fazer-se ouvir.
- Esperem! É perigoso usar o fogo na estação seca!
Inútil. Os animais não lhe deram a menor atenção, convencidos que estavam de ter a solução à mão.
E no grande incêndio que se seguiu, a família de onças foi exterminada, como havia sido previsto. E com ela, metade da floresta e dos seus habitantes.
O professor fechou o livro de contos, virou-se para as crianças, e indagou:
- Que lição vocês tiram dessa história?
- [14-10-2018]