O escritor

O escritor

Ligou o micro, abriu o Word e ficou olhando por horas e horas para um documento em branco. Aquela folha insistia em permanecer ali, reluzente e desafiadora. Ela despertava milhares de sinapses em uma mente aflita e ansiosa por preenchê-la com a melhor história nunca antes escrita por alguém. Passa mais meia hora e a folha em branco continua lá, imponente e segura de sua alvura. A aflita e ansiosa mente busca, em suas reminiscências, experiências de vida aliada a figurações de personagens para compor um texto inteligente e criativo, mas a alvura da folha apresenta-se inabalável diante de sua intenção. Fugidia da circularidade que compõe a realidade em que se aloja, o estômago traz a aflita mente de volta de sua viajem clamando por um copo com água para saciar a sede manifestada pelo corpo. A folha em branco, então, parece até debochar da consternação dos dedos imóveis que não ousam quebrar o silêncio do teclado. Dirigindo-se para a cozinha a televisão da sala captura a concentração dos pensamentos desorganizados que pretendiam escrever a história mais original e criativa da literatura moderna. Antes a aflita mente ocupava-se de sintetizar o conteúdo de todos os livros até então lidos por ela, mas agora o aumento do IGPM, a queda de um avião e um ataque terrorista com bomba noticiados em um telejornal desviam sua atenção. Neste momento ela pensa mais angustiada ainda na supremacia daquele alvo documento: que vale preenchê-lo com letras que só alguns poucos amigos lerão por consideração, será que vale à pena dedicar tanto tempo para isso? As concatenações da inquieta mente a leva refletir sobre as questões que motivaram tantas outras mentes inquietas a produzir livros e mais livros na nossa história, quantas mentes angustiadas foram desafias por um pedaço de papel iluminado por uma vela, quantas penas e tinteiros transformaram o mundo? Saciada a sede do estômago os dedos voltam a tocar o teclado do micro, mas ainda sim sem quebrar o silêncio, pois eles sabem da importância de se escrever algo que valha a pena ser lido. Eles sabem que as livrarias estão cheias de livros cujos títulos começam com “Como”: como ser feliz no amor, como ter sucesso na vida, como se portar à mesa, como emagrecer e ganhar dinheiro dormindo... Eles são conscientes daquilo que uma folha em branco merece, por isso continuam imóveis a espera da inspiração da mente que os guia. Agora de certa forma freando a inspiração, a mente inquieta e ansiosa se preocupa com a estética textual e percepção do público leitor, pensa ela: o que será que vão entender daquilo que pretendo escrever? Será aceito? Ou ainda, será lido? Se for um tratado filosófico quem mais entenderá o sentido além do autor? Se for uma história de época cheia de aventuras quem garantirá a originalidade do enredo, pois quantas histórias desse gênero já foram escritas? Se for uma história minimalista cheia de detalhes do cotidiano quem se interessará? Cada um já tem o seu cotidiano! Aliás, detalhes demais perturbam a linha do raciocínio de qualquer enredo. A esta altura a folha em branco observa com escárnio a ausente inspiração que angustia a mente inquieta que a observa. Agora os dedos que passam pelas letras sem tocar pegam na alça de uma xícara de café, uma presença potencialmente nociva ao micro, mas muito necessária ao estímulo de um raciocínio que pretende colaborar com a melhor história escrita nos últimos tempos. Agora parece que a mente ansiosa e aflita vai vencer o vazio da folha em branco, a inspiração parece surgir com o estímulo da cafeína, o sangue então circula com mais velocidade até as mãos que guiarão os toques no teclado silente. Se esta sensação fosse narrada poder-se-ia comparar a chegada de um orgasmo, isso mesmo, um calor que sobe e toma conta de tudo, isto que é cientificamente explicado, literariamente narrado, mas só empiricamente sentido. Agora os dedos estão prestes a tocar NAS TECLAS, as sinapses estimulam o raciocínio impregnado de criatividade e inspiração, o silêncio de quatro horas é então quebrado com o toque na tecla shift e simultaneamente com o barulho ensurdecedor do aspirador de pó da vizinha ao lado. Foi-se embora o estro poético que venceria a brancura do documento ainda sem nome do word. Mais irritado que você leitor que bravamente chegou até esta linha, nosso autor combalido diante do monitor que castiga seus olhos resolve assistir um pouco de TV. A folha em branco parecendo entender a frustração da mente inquieta se esconde atrás do protetor de tela do microcomputador. O volume aumentado da televisão não é o suficiente para vencer o barulho do aspirador de pó, então, da sacada do apartamento vibram as pregas vocais:

- Dá pra desligar esta porcaria, estou escrevendo um livro!!!!

Redargüindo com a mesma intensidade da vibração vocal os tímpanos do nosso autor recebem a seguinte informação:

-Estou trabalhando seu vagabundo!!!

A então perturbada mente ansiosa e aflita com questões da originalidade e criatividade da literatura contemporânea resolve não dar azo a continuação da interlocução com a vizinha ao lado. Concentra-se, pois, na TV, que mostra um rapaz passando por cima de carros e pessoas com uma patrola e, por um momento, embalado pela sonoridade acústica do aspirador de pó, nosso autor até entende o rapaz. Uma hora e cinqüenta minutos depois o silêncio manifesta-se aos ouvidos dele, ou melhor, o barulho se ausenta de seus ouvidos, pois como pode o silêncio se manifestar? A ansiosa mente então, saciada das necessidades fisiológicas involuntárias do aparelho gastrintestinal volta a encontrar o micro com a aquela irritante folha em branco que parece ainda mais alva. Agora tomada de um sentimento de honra a inquieta mente segue decidida em acabar definitivamente com o vazio da dela. Investida de intensa sagacidade conjectura em seus pensamentos desconexos uma história capaz de se fazer inquestionável em todos os seguimentos intelectuais e culturais do orbe terrestre. Lembra, porém, quão difícil é viver de literatura em seu país, mesmo assim segue em sua inspiração. Ambicionando escrever a história inquestionável de todos os tempos, finalmente, vence o vazio da alva e debochada folha em branco do word começando a enviar informação aos dedos que digitam o seguinte título: “A HISTÓRIA DA HUMANIDADE”. Excitada com o tão belo e chamativo título conclui seu texto: ERA UMA VEZ UM CARA QUE NASCEU, CRESCEU E DEPOIS MORREU.

Satisfeito com sua obra, desligou o micro e foi dormir entusiasmado pela tarefa cumprida.

Fonte: http://www.recantodasletras.com.br/frases/1066995