COM A MÃO NA MASSA (Polissemia)

COM A MÃO NA MASSA

Entre namoro e noivado: quase cinco anos. Sucediam-se os óbices, procrastinando o enlace. Ainda assim, não arrefeceram. A esperança, um dos últimos pilares, perseverava no tradicional pedido da mão em casamento. A nubente, na aquisição do enxoval, há muito lançara mãos à obra. Herdara da mãe, e aprimorara com as tias habilidades na confecção de mimosas peças em costura e bordados. Mãos-de-prata, mãos-de-fada, ao toque do condão, navegavam nos caudais de fios e rendas, cristalizando sonhos, caprichos e vaidades. Aperfeiçoara a inclinação pela boa mesa, personalizara o sabor dos pratos triviais, orgulhava-se e enrubescia aos elogios de mão cheia. Mesmo com limitação de posses, fizera aquisições sem mãos a medir. Não poderia ser chamada de perdulária, pois excluindo o indispensável, jamais fora mão-aberta. Muitos, pela delonga, manifestavam incredulidade. Embora não o conhecendo o suficiente, à boca pequena, afirmavam que, por ele, não poriam a mão no fogo. Ao contrário, outros criam que tudo estava em boas mãos. Questão de tempo.

Contrariando desaires e futricas, paulatinamente, sem alardes, o patrimônio vinha sendo consolidado. Abriram mão do supérfluo sem detrimento do essencial. Como sói acontecer, não tinham mãos a medir na consecução do desiderato. Só não foram postergadas atividades esportivas e culturais. Reservaram-se o direito de não deixar de mão os congraçamentos recreativos. Comungavam a apologia da saúde corpórea. Adquiriram, após minuciosa pesquisa, com o beneplácito econômico dos pais de Fernanda, a noiva, móveis rústicos das melhores fontes serranas: uma mão na roda: alívio orçamentário. Poder-se-ia nominar como aquisições de mão beijada, de mão lavada. Somente os mais próximos tornavam-se confidentes.

Conheceram-se no ambiente de trabalho: uma agência bancária. A competência era incontestável. Assentaram a mão nos fluxos virtuais e evidenciava-se a mão do profissional nos relacionamentos pessoais. A instituição exigia que seus agentes fossem, acima de valores outros, limpos de mão. Não deve haver problemas sem solução – afirmava o diretor – : o líder não se restringe a cruzar as mãos. Ambos tiveram rápidas experiências amorosas cujo resultado revelou incompatibilidade. Julgavam-se predestinados ao encontro e ao convívio. Agiam com a descrição necessária, preservando a conduta profissional. Por dever de ofício, constantemente, recorriam à colaboração mútua: uma mão lava a outra e as duas lavam o rosto.

Na encosta da serra evolaram-se gemidos e prantos. As dores deram lugar aos sorrisos. As mãos da parturiente afagaram aos seios o loiro rebento. A Davi dera-se a luz. Comunidade pequena; aspirações limitadas; horizontes sem amplitude. Dar de mão ao solo dos ancestrais romperia liames étnicos e familiares. Estava em suas mãos a travessia do vau. A indecisão o deixava com as mãos amarradas. Pequeno ainda conhecera os rigores das lides rurícolas. Não era exatamente o que queria. Demonstrava afinco no trato com letras e números. A cultura acadêmica sobrepunha-se em suas pretensões. Não raras vezes delongou-se até horas mortas na confecção dos labores. O impulso mais incisivo brotara da mestra da classe: a água dos rios aprende a contornar obstáculos – mão amiga indispensável . Por fim, até os pais deram a mão à palmatória. Num fim de setembro, no velho ônibus que partia, diariamente, em direção à cidade grande, o jovem Davi deixava Remanso, transportando uma mala de sonhos. Recomendações e conselhos não faltaram. Cartas e ligações telefônicas foram cobradas. O pai enfatizara amizades com boas companhias e tomar tenência para não meter a mão em cumbuca.

Marcelo, irmão com dois anos mais que Fernanda, sucederia o genitor na administração da panificadora “Mão-de-cais”. O patrimônio continuaria em boas mãos. Desde cedo, demonstrara vocação à administração comercial. Tornara-se a mão forte na pequena indústria de doces e salgados. Os produtos conquistavam novos clientes mercê da mão de mestre do patriarca: mantinha as fórmulas no inviolável cofre das lembranças. Sempre tivera boas mãos às massas. Marcelo jamais andara com as mãos na algibeira, dedicava-se com ambas as mãos ao seu gastronômico mister.

A cerimônia religiosa teria lugar na igreja católica Nossa Senhora do Rosário. Fernanda a frequentava desde a tenra idade: ali recebera os sacramentos do batismo e crisma. As preces, semanalmente, elevavam-se rogando bênçãos das mãos de Deus. A data fora marcada. Padrinhos escolhidos e confirmados. Convites preenchidos à mão livre, à mão-expedita. Em seis meses as alianças trocariam de mão.

Os móveis, inicialmente, vinham ocupando uma grande sala nas dependências da panificadora. Não era o ideal nem recomendado. Objetivavam adquirir, em breve, um apartamento. Mesmo que a generosidade se fizesse constante, a mãos-largas, pelos familiares e padrinhos, as economias ainda não permitiam a consecução. Cobririam com alguma folga as despesas matrimoniais. O jovem esperançoso e pertinaz que deixara sua pacata comunidade, e chegara ao grande centro com pouco mais que uma mão atrás e outra adiante, de mãos abanando, conquistara desideratos – intelectivos e econômicos.

Haviam alugado, numa avenida próxima ao centro, um imóvel de porte médio. Como o prédio estivera há bom tempo desocupado, carecia de reparos. A morosidade e a inaptidão, decorrente da falta de bons profissionais, quase os levara a vir às mãos. A cobrança constante, temendo que pintores e pedreiros pudessem retardar a conclusão e meter os pés pelas mãos, em especial na execução de acabamentos, possibilitou que a inquietude fosse minimizada. A proliferação de condomínios e obras públicas provocara a crescente abertura de um mercado promissor. Até mesmo “razoáveis” profissionais passaram a exigir pela mão-de-obra valores discrepantes e sem parâmetros.

Tão logo os consertos chegaram ao termo final, móveis, eletrodomésticos e pertences começaram a tomar seus lugares. Foram mobilizados, sem que demonstrassem mão-mole, parentes mais próximos. A sensibilidade feminina se fazia presente, particularmente nos detalhes. Osmar, por medida de segurança, trocara o pequeno apartamento, próximo à Universidade Católica, aclimatando-se à futura residência do casal.

Sem delongas identificaram-se com os vizinhos, particularmente com dona Olga, viúva, professora aposentada. Gostava de plantas e de animais domésticos. Raramente deixava a casa. Orgulhava-se da biblioteca que, mensalmente, era enriquecida com atualizadas obras de conceituados autores nacionais e estrangeiros. As raízes fronteiriças evidenciavam-se no cancioneiro nativista. Regozijara-se com a chegada de Fernanda e Osmar: proteger-se-iam mutuamente.

E eis que estavam unidos até que a morte os separasse. Lágrimas e sorrisos fundiam-se na afetividade dos beijos e abraços.

A recepção, expressivamente concorrida, fora elogiada. Às mesas fartas, destacavam-se arranjos e aparelhos na brancura das toalhas de linho. Fora conforme o previsto. Pouco depois, os recém-casados tomavam destino rumo à capital portenha.

Dia seguinte, à noite, quatro fortes homens, usando bonés, transportaram tudo o que havia na casa, inclusive o chuveiro. Aplacaram eventuais suspeitas dos vizinhos, informando à vigilante dona Olga que o faziam a mando do sogro de Osmar: abrira a mão e presenteara-os com um apartamento. A professora lastimou ficar privada da companhia, mas presente é presente. Por certo, ficariam felizes.

No meio da semana, ainda inebriados pelo néctar do amor, pela manhã, retornaram. Perplexos, sem saber onde meter as mãos, perguntavam-se o que acontecera?

A bondosa dona Olga, não se contendo em sorrisos, correu a parabenizá-los pelo presente.

Tranquila, e afirmando que o pai sempre fora imprevisível, Fernanda, que o sabia longe de ser mão-de-vaca, quis saber da surpresa.

À tarde, dois jovens, casados de fresco, adquiriram móveis simples para passar a noite e começar vida nova. Jorge Moraes - jorgemoraes_pel@hotmail.com - dezembro 2012

Jorge Moraes
Enviado por Jorge Moraes em 11/12/2012
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