GENÉTICA FOLCLÓRICA

GENÉTICA FOLCLÓRICA

Independentemente do nível cultural em que estejamos inseridos ou da área em que atuemos, as expressões idiomáticas constituem-se em indispensáveis recursos de linguagem. Uma expressão idiomática ou popular é um conjunto de palavras que não permite a identificação do significado a partir do sentido literal dos termos individualmente analisados. Assim o sendo, geralmente, é muito difícil ou inviável traduzi-las, integralmente, para outros idiomas. Certas expressões, uma vez adaptadas, já que possuem a alma do idioma nativo e esse é intransferível, redundam em esdrúxulas versões. Quando externam significados que aludem a objetos (caixa de Pandora), fatos (a queda da bastilha), referências mitológicas (calcanhar de Aquiles) ou históricas (a casa da mãe Joana), existe consenso entre múltiplas vertentes, ainda que não pertençam à mesma família etimológica.

As expressões idiomáticas, não raras vezes, são ou estão vinculadas a gírias, jargões ou contextos culturais pertinentes a alguns grupos de pessoas que se distinguem pela classe, idade, região, profissão, religião, etnia ou outro tipo de afinidade. Muitas dessas expressões não duram mais do que um verão: são efêmeras, tão passageiras que não resistem aos ventos hibernais. Tantas outras se l imitam às células onde afloraram: a debilidade estrutural não lhes permite ultrapassar as sinuosas curvas do rio. Contudo, registramos preciosos exemplos que persistem e são usados de maneira ampla, extrapassando o contexto original. Ante o fulgor de tais pepitas, a origem histórica do seu significado, de vez em quando se esvai plenamente ou fica restrita a um seleto grupo de usuários da língua. Quanto ao aspecto criativo, nós, brasileiros, ao fato emergente, somos rápidos, sutis e elogiados por nossas perspicácia, malícia e criatividade. O pão ainda não saiu do forno e já o sabemos gostoso.

Examinemos o emprego de uma expressão, ainda hoje usada à margem dos melhores padrões linguísticos, indiscutivelmente complexa à racionalidade ou à lógica. Esse patrimônio, à semelhança de tantos outros, traz marcas de tempos idos e encontra guarida na linguagem desprovida de padrões acurados. Revela, quem sabe, códigos e senhas que não podem, superficialmente, ser(em) revelados. E quão gratificante o é a descoberta dos filões auríferos, ofuscados pela fuligem da indiferença ou do desconhecimento. Aos jovens pode transparecer como legados matusalênicos.

Foge-nos à lembrança de tê-la visto por escrito. Quanto à oralidade, o emprego chegou-nos através da manifestação impulsiva e espontânea. Detivemo-nos, a princípio, em ouvi-la, entretanto os acordes eram dissonantes. Os emissores situavam-se, e ainda o fazem, em variadas faixas etárias, e em segmentos econômicos com ou de parcos recursos. Queremos fazer alusão a “...tu pensas que sou pai de cascudo...? ” Não poderíamos deixá-la incólume. Impunha-se uma investigação “linguístico-genética”.

A colocação em destaque propõe-se a, frente a alguém que exija mais do que o merecido, limitar a oferta ou a doação ou a tramitação, isto porque o patamar alcançado atingiu o ponderável e justo. Ultrapassá-lo seria um rompimento com o viável, gerando decorrências indesejáveis. Talvez o solicitante não fosse ou não seja digno de ser aquinhoado.

A pergunta, quanto à proposta, é lógica e racional. O que nos causa estranheza é o uso do “pai do cascudo”. Parece-nos, a menos que a visão esteja turva, que o “pai do cascudo” cascudo também o é. Desconhecemos as virtudes e benemerências que possam ser atribuídas ao “cascudo-pai” que o faça merecedor da expressão portadora de comprazimento e indulgência. Corresponderia a dispor de subsídios para satisfazer o pretendido. Em agindo desta forma, são transpostas barreiras defendidas por outros pais, satisfazendo as exigências ou solicitações do “cascudo-filho”.

Manifestam-se de maneira diferente os demais pais? Sim. Alguns são mais, outros menos complacentes. Outros tantos, inflexíveis. O do cascudo, segundo o uso consagrado, não estabelece barreiras. Cascudo significa o que tem casca grossa, carapaça. Seria este o entrave a ser superado? Não parece mais plausível que os pais generosos e condescendentes, capazes de contemplarem o que lhes é cobrado ou solicitado, ajustem-se à proposta da pergunta, sem resistência física ou comportamental? Talvez a casca, couraça – presentes no pai e no filho – deem-nos a visão do intransponível, do resistível, do quase inconquistável, portanto, em oposição ao que se pretende.

Não nos move o desejo de polemizar, e sim o de ampliar variantes que nos levem a contribuir para a percepção da racionalidade, cremos que é patrimônio dos velhos tempos, isto porque, ainda que as mulheres (com muito maior intensidade nos dias hodiernos) tenham motivos suficientes a fazer questionamentos semelhantes, jamais ouvimos e quem sabe se chegaremos a tanto “tu pensas que sou mãe de cascudo?”.

Já que estamos divagando a respeito de curiosas paternidades e maternidades que deram à luz intrigantes expressões populares, lembremos a existência da “Mãe do Badanha”.

David Coimbra, admirável escritor, radicado na Capital dos gaúchos, afirma que o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense possuía em 1943 um volante ou centromédio, chamado Badanha (Badagna). Duas versões postulam a origem de uma frase singular. A primeira, possível, mas improvável diz que a mãe do Badanha era muito zelosa na assinatura dos contratos do filho. A segunda, mais provável, prende-se a uma queixa da mãe junto a um jornalista que criticara com desdém e colericamente o desempenho do medíocre jogador. Como é notório, ao se ouvir “...vai te queixar (com a) (à) mãe do Badanha!”, o emitente exime-se de assumir responsabilidades, bem como o de realizar esforços a fim de encontrar desenlaces. Cremos que se credenciam as duas alternativas. Mesmo que não haja resquícios de alguma solução, a sempre lembrada genitora do atleta ainda se configura como o ancoradouro a embarcações batidas pelas procelas. Oxalá possamos ultrapassar os limites da fantasia e encontrar abrigo nas enseadas do exequível.

A Medicina conceitua o “Sarampo” como doença viral, infecção do sistema respiratório. Altamente contagiosa, afeta principalmente crianças. Mais de 95% das mortes por sarampo ocorrem em países subdesenvolvidos. A alta mortalidade que provocou nos ameríndios, logo após a descoberta de Colombo, indica que a sua introdução foi traumática. Derrotou as civilizações Asteca e Inca com muito mais crueldade que o fizeram Hernán Cortes e Francisco Pizarro. A epidemia pode ter surgido na Europa nos séculos II e III d.C., - Império romano – matando grande parte da população sem imunidade. Na China e na Índia o panorama pode ter sido semelhante, levando à queda o Império Han. Pois não é que nosso popular imagitivo conseguiu “maternidade” ao sarampo?! E a “mãe”, que sempre foi modelo de virtudes, mesmo involuntariamente, condiciona-se a abrigar no ventre um rebento indesejado. A maleficência, disseminada pela prole, generaliza-se em múltiplas e maldosas comparações, naturalmente envolvendo a genitora. E a liberdade criadora, sem parâmetros lógicos, miniminiza ou atenua a sordidez do filho em favor da mãe. E vamos ouvindo, dizendo e repetindo: “...mais teimosa que a mãe do sarampo.”, “...fala mais que a mãe do sarampo.” “...é mais velha que a mãe do sarampo.”, “...é mais feia que a mãe do sarampo.”, “...mente mais que a mãe do sarampo.”

Lembremos ainda a mãe, pai, avô, avó coruja. A expressão originou-se da fábula “A coruja e a águia”, divulgada no Brasil por Monteiro Lobato. Ela conta que as duas aves conciliaram-se e prometeram não mais comer os filhos da outra. E afim de que houvesse reconhecimento pela águia, a coruja orgulhosa, peito inflado, declarou que seus filhos eram as criaturas mais bonitas da floresta: penas lindas, olhar marcante e esperteza descomunal. Como é sabido, a águia não reconheceu os filhotes da coruja pela descrição feita pela mãe. Como decorrência, devorou alguns monstrengos que piavam de bico aberto num ninho, sem forças para abrir os olhos. A moral é incontestável: designa pessoas que se esmeram nos cuidados com filhos ou netos, sem que sejam percebidos eventuais defeitos. E quem não os tem? Felizmente a “corujice”, para alguns, não se manifesta somente enaltacendo os traços angelicais, as belezas venusianas ou musculosidades hercúleas. Os valores dignos de despertar orgulho não podem ficar cingidos somente à materialidade.

Cremos que, em se tratando de expressões populares, dependendo do segmento a que dirijamos nosso olhar, mesmo que desconheçam os descendentes, encontraremos muitos filhos cuja notoriedade é atribuída às mães ou pais. Permitimo-nos lembrar que esses recursos linguísticos são completamente distintos das “Antonomásias” (Alberto Santos Dumont – o pai da aviação). A cultura popular, tão fértil e ilimitada, constantemente desafia nosso parco saber. Quem sabe quantos bastardos foram, são ou serão gerados em nossa folclórica genealogia?

Jorge Moraes - jorgemoraes_pel@hotmail.com – maio de 2013

Jorge Moraes
Enviado por Jorge Moraes em 24/05/2013
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