Isto é uma vergonha!

Isto é uma vergonha!

Joelmir Beting, destacado e conceituado jornalista, apresentador e comentarista de telejornais, nascido em Tambaú, em 21 de dezembro de 1936 e chegando a óbito em São Paulo, 29 de novembro de 2012, destacou-se, não só pelas indispensáveis características exigidas pelo ofício, tais como: inteligência acurada (mestre na ironia), voz agradável, louváveis dicção, timbre e interpretação, bem como por “frases-bordão” que se tornaram marca registrada: “Quem não deve, não tem", "Na prática, a teoria é outra". O extraordinário Boris Casoy, âncora da Rede Band de Televisão consagrou a expressão: "...isso é uma vergonha!”. Acentuando-a desabridamente.

Recorramos aos melhores dicionários e encontraremos – Vergonha s.f. Sentimento penoso por se ter cometido alguma falta ou pelo temor da desonra: “Corar de vergonha”. Humilhação, desonra: “Perder assim é uma vergonha”. (Sin.: infâmia, opróbrio, vexame). Ato indecoroso que provoca indignação: “É uma vergonha!” - Rubor das faces causado pelo pejo. Timidez, acanhamento . Perder toda a vergonha, não ter pudor, ser insensível à desonra. Ser a vergonha de alguém, causar-lhe vexame pela prática de atos indecorosos. S.f.pl. As partes pudendas: “Cobrir as vergonhas com um pano”. Sinônimos de vergonha: desdoiro, desdouro, desonra, labéu e queda.

Cremos ser oportuno destacar que a palavra “vergonha”, sozinha ou acompanhada, é uma das que, atualmente, caracteriza com maior propriedade a face de nossos segmentos estruturais. Por consequência, é empregada, adequadamente, a todo momento, sem que tenha de transpor reservas: “A educação é uma vergonha.”, “A saúde é uma vergonha.”, “O salário dos professores é uma vergonha.”,” O valor gasto com a construção ou reforma dos estádios esportivos é uma vergonha.”,“A aposentadoria dos trabalhadores humildes é uma vergonha.”, “A vergonha é uma vergonha.”

Pois bem, de “...uma vergonha”, chegamos a “...uma pouca vergonha.” Causa-nos espécie a colocação, se atentarmos a “pouca” : palavra que deveria reduzir a intensidade, mas que age exatamente na acepção contrária, ou seja, aumenta o descalabro. Nosso ouvido até já se acostumou a tais colocações, reiteradas pelos veículos de comunicação. “A saúde nos hospitais brasileiros é uma vergonha.” – “A saúde nos hospitais brasileiros é uma pouca vergonha.” (aumento da situação caótica). Outrora, a tênue alusão à falta de vergonha, com ou sem fundamentação, deixava o acusado coberto de acanhamento e a face transfigurava-se em rubor: mácula inapagável. Hoje, para muitos, banalizou-se a vergonha. Tê-la ou deixar de possuí-la não os impedem de usufruir de nababescas benesses.

Ao deslocarmos “pouca”, ficando posposta à vergonha, “vergonha pouca”, julgamos que teremos mudança na intensidade. Vejamos: “Vergonha não é o sentimento observado entre alguns governantes.”, “Vergonha pouca não é o que se nota em alguns procedimentos políticos.” (vergonha ou falta de?).

Temos nos questionado se, frente a um quadro que mereça comentários desairosos, o mais adequado não seria “A saúde nos hospitais brasileiros demonstra falta de vergonha, ou esta situação é vergonhosa”. O complemento ao verbo de ligação (é), quando constituído de um(a) mais um substantivo, assume característica adjetiva: “Isto é um vexame.”ou “Isto é vexatório.”; “Esta prova é uma humilhação.”ou “Essa prova é humilhante.”.

Inúmeras ilações ainda podem ser feitas, entretanto, permitam-nos lembrar que “Sem-vergonha”, com hífen, é uma adjetivo composto, cujo significado é aquele que não tem dignidade; canalha; devasso. "Sem vergonha", sem hífen, é a junção da preposição "sem" com o substantivo "vergonha", cujo significado é desprovido de sentimento causado pela inferioridade ou pela indecência. Caracterizemos: Existem muitos políticos sem-vergonha que atuam acobertados pelo poder econômico. / Ela entrou em casa sem vergonha alguma. (perdeu ou não há razão para tê-la?).

Andejando pelas veredas do pátrio idioma, deparamo-nos com curiosas expressões, forjadas, quem sabe, na pureza e na ingenuidade de nossas vertentes familiares, que, embora passíveis de evolução e mutações, persistem, desafiando tempos e normas.

Bem sabemos que “Pronomes Possessivos” são aqueles que se referem às três pessoas do discurso, (quem fala, com quem se fala, de quem se fala) atribuindo-lhes a posse de alguma coisa. Flexionam-se em gênero e número, concordando com a coisa possuída, e em pessoa, concordando com o possuidor. Quando o pronome possessivo faz referência a um substantivo já citado, atribuindo sua posse a um sujeito, ele tem função adjetiva ou de adjunto. Exemplo: O MEU sapato é melhor que o SEU. Os dois pronomes estão adjetivando o substantivo sapato, já citado. Quando um pronome possessivo faz referência a um substantivo que não foi sequer enunciado, ele acaba cumprindo o papel desse substantivo ausente dentro da frase, e é, portanto, um pronome possessivo substantivo ou também chamado pronome possessivo absoluto. Exemplo: O MEU é melhor que o TEU. Os dois pronomes estão se referindo à posse de algo que não foi citado na frase e estão no seu lugar.

Certamente todos nós já ouvimos, eivadas de espontaneidade, colocações tais como:

“Vou tomar MEU banho e depois ligo para a vovó.”, “Terminada a limpeza da casa, vou tomar MEU banho.” Considerando-se que o banho que tomarmos só poderá ser o nosso, assim como ninguém poderá tomar nosso banho, se bem que, em certos dias estafantes, desde que feito a preceito, ficaríamos gratos com o afeto de meigas mãos, minimizando nosso cansaço ao sabor de águas avigorantes. Portanto, totalmente dispensável o possessivo “MEU”. Atente-se a “MEU livro está sobre a mesa”. Como se percebe, não há como contestar a posse. Logo, o “MEU” é indispensável.

E não abrimos mão, tão facilmente, de nosso involuntário direito de retenção. Ouve-se e emprega-se, indistintamente, mesmo nas vozes acadêmicas: “Um colega MEU de faculdade...”, “Paulo, MEU colega de trabalho...”,”Leandro, um amigo MEU, de comunidade...”, “Marcelo e Oton, MEUS amigos de pescaria...” , “ Fátima e Maritane, duas amigas MINHAS de magistério...”. Destaque-se que não ficamos cingidos à nominação, enfatizamos com o numeral, que é totalmente dispensável. Ao empregarmos “Fátima e Maritane, MINHAS duas amigas de magistério...” pode-se concluir que no magistério temos apenas duas amigas. Ao colocarmos “MINHAS” após amigas, ainda que não seja esse o propósito, as colegas não serão amigas de mais ninguém. Caso tenhamos “Fátima e Maritane, amigas de magistério...”, o rol de amigos e amigas se amplia.

Permitimo-nos lembrar que o “caso dativo” é um caso gramatical, geralmente usado a indicar o nome dado a alguma coisa. O termo deriva do latim “dativus”, significando “próprio ao ato de dar”. A coisa dada pode ser um objeto tangível: uma camisa, uma bolsa, um livro ou alguma coisa abstrata: uma informação, uma resposta. Geralmente marca o objeto indireto ou direto quando relativo ao ato de dar algo.

O conceituado professor João Miguel Ferreira, alude aos dativos livres. Destacando o “dativo de interesse” – “Ele ligou-ME amavelmente a luz...” (redundante?). No dicionário Aulete, referenda-se o dativo ético e de posse: “Ninguém ME sai daqui antes da hora.”

Sem que tivesse a mínima percepção latinista, minha genitora, fonte inesgotável de linguísticos tesouros interioranos e fronteiriços, constantemente lembrados em nossas inquietações, empregava: “Não vão ME riscar a parede com lápis ou carvão!”. Desmembrando, teremos “riscar a parede para MIM – que terei de limpar” ou quando alcançávamos a louça de vidro: “Tenham cuidado... não vão ME quebrar os pratos.”. O “ME” tornava claro que as peças pertenciam à nossa mãe, e como decorrência de quebra, ela seria penalizada.

Esperamos que possam ser percebidas as diferenças, em se tratando de colocações tais como: “Informaram-ME a MIM todos os procedimentos a serem tomados.” / “ Os impostos, quem OS pagará?”. Mesmo que estranhas, já tiveram assento entre nossos melhores, e quando precisamos recorrer, em especial nas Ciências Jurídicas, ao reforço, ao destaque, não hesitamos em nos valer do pleonasmo.

Aliás, respeitando as características individuais, nem todos os nossos pleonasmos são comuns a outros idiomas. Enquanto isso, em meio às contestações populares, justas e não, os franceses consagram: “ambas as duas”.

Jorge Moraes - jorgemoraes_pel@hotmail.com - junho 2013