ENIGMA D'ALMA

ENIGMA D’ ALMA

O pacato vilarejo de Figueira Grande, a pouco mais de duzentos quilômetros da capital, noroeste do estado, encravado ao pé da Serra, fora profanado na tranquilidade. O orgulho de ficar incólume à violência, inexistente até então, estava maculado. Não era mais ‘privilégio’ dos grandes centros. A barbárie invadira os lares, sentara-se à mesa e acobertara-se nas colchas e lençóis. O temor e a revolta se apossaram até mesmo dos dois agentes da lei. Crime, aparentemente, sem pistas. Um desafio à perspicácia investigativa. O cometimento atingira a alma do município.

O corpo de um homem, parecendo ter quarenta anos, semidespido, com visíveis marcas de agressão, jazia no lado esquerdo do leito. Ao lado, no braço de uma cadeira, a camisa e a calça não foram bulidas. Havia uma semana que sua mulher viajara. Valera-se do período de férias para acompanhar-se do filho de oito anos. Não via os pais fazia seis meses. Os legistas viriam da capital.

A residência, nas cercanias da cidade, destacava-se pelo matizado jardim. Pouco mais de trinta metros a distanciavam da porteira. Seis peças amplas e bem distribuídas ensejavam conforto à família dos rurícolas. As benfeitorias davam-lhes alma nova. Um veículo, em bom estado, com poucos anos de uso, dividia espaço, na ampla garagem, com ferramentas e utensílios.

O sobressalto tornara-se temática em todos os cantos. Os mais experientes, gesticulando e balançando a cabeça, indignados, afirmavam que autor era uma pessoa sem alma: um monstro, alma de cântaro, alma do diabo. Ao feito – sua alma, sua palma. Ninguém se permitia preterir opiniões.

A vítima, honrado plantador de hortaliças e criador de meia dúzia de vacas leiteiras, pelo que sempre se soube, não cultivava desafetos. Afirmavam os vizinhos e amigos: uma alma santa, uma boa alma. As ilações mais criativas arrolavam-se numa longa lista de viabilidades. De qualquer sorte, havia sido perpetuada por uma alma danada, alma do diabo.

O ingresso dera-se pela porta da cozinha. Não fora consumada violência. Haveria uma cópia da chave? Era gente que conhecia os hábitos caseiros? Acerto de contas, vingança? A surrada carteira de couro, com poucos recursos e documentos, não despertou interesse. O roupeiro e dois armários foram minuciosamente revirados. À procura de quê? Roupas e calçados esparramaram-se pelos cantos. Sobre o criado-mudo uma fotografia da família testemunhara o ocorrido. Não foram usadas as chaves do carro e das dependências.

Figueira Grande não chegara a três mil habitantes. Ainda que a expectativa do prefeito fosse de alcançar ou superar esse marco, carreando recursos mais generosos aos cofres do município, o censo consignou, com precisão, tão-somente duas mil, novecentas e setenta e três almas. Não foi suficiente sua alma de ferro. Os avaliadores foram irredutíveis. Tentou-se incluir viajantes e algumas “damas” recriminadas pelas beatas da igreja da Santa Trindade. Promessas de implantação de indústrias renovavam-se a cada quatro anos.

No pequeno cemitério, as tumbas somente abrigavam restos mortais de ordeiros moradores que haviam atingido longevidade. Poucos entregaram a alma a Deus, prematuramente, por doença ou acidente. O assassinato fugia à credulidade, à compreensão. A vítima não salvara nem a alma.

Reuniões bíblicas e cultos dominicais intensificavam a fé nas almas iluminadas. A palavra do Senhor glorificava-se nos acordes do velho cravo e elevavam-se nas vozes devotas do esforçado grupo de louvores. Cada integrante, respeitadas as limitações, cantava com alma. Eventuais palestras iluminavam almas sensíveis. Comemorações festivas agregavam e congregavam. O pastor, e não seria diferente, era a alma da comunidade.

Rodolfo e Elza conheciam-se desde as primeiras letras. Por cinco anos foram colegas. As famílias, cultivando hábitos interioranos, aos domingos, permutavam visitas. As crianças cresceram e o amor floresceu. Salvo pequenos caprichos, harmonizavam-se integralmente: almas gêmeas. Os pais de Elza, mesmo relutantes, haviam trocado a zona rural pelas benesses de uma distante cidade. Moravam com o filho mais velho.

O campo falara mais alto. A terra era pouca, mas a vontade era muita. Elza, valendo-se de receitas avoengas, granjeara admiração e respeito pela confecção de doces e queijos. Reservada, tornara-se apologista de que o segredo é a alma do negócio. Rodolfo entregara-se de corpo e alma às atividades agropecuárias.

Nem sempre as barrentas estradas permitiam o escoamento da produção. À municipalidade cobravam-se condições transitáveis. A produção leiteira chegava ao beneficiamento a cada dois dias. Elevavam-se vozes, propondo a criação de uma cooperativa: bons olhos recomendavam comercializar na bacia das almas. Os mais céticos, sedimentados no conservadorismo, olhavam de soslaio, e à boca pequena, demonstravam temor pela grandeza da alma de pretensos administradores.

O vizinho mais próximo de Rodolfo, Arno, ouvira o vociferante latido dos cães. Tivera impressão, embora não cresse, que por ali andassem almas de outro mundo, almas penadas. O avançado das horas e a chuva intermitente fizeram com que se recolhesse, indiferente ao que acontecia. Recriminava-se por não ter ido ver de que se tratava.

O motorista da agropecuária Truco & Retruco chegou à propriedade pouco mais das oito e meia. Deveria entregar sementes variadas, defensivos, dois rolos de arame e 20 metros de mangueira de borracha. Embora não fosse um estranho, fora repelido pelos cães. Chamou por Rodolfo. O silêncio o levou aos fundos da casa. Considerou prudente não entrar. Alguma coisa estava errada. Imediatamente dirigira-se ao posto policial. O rosto perdera a cor. As palavras haviam desaparecido. Sentia-se pondo a alma pela boca.

Os peritos, prontamente, chegaram ao local do crime. A área fora isolada; o corpo, removido a uma improvisada sala cirúrgica no Hospital São Lucas. Na face, a lividez e a cianose. O olhar astuto e mãos habilitadas procuravam vestígios.

Osvaldo, um dos profissionais, exultante, como se descobrisse um filão de ouro, bradou: “posso afirmar qual foi a causa mortis”. Uma vez certo, ratificaria sua aptidão e gabando-se, afirmaria ter ficado com a alma lavada.

O silêncio sepulcral tomou conta da pequena sala. Os olhares, intrigados e atônitos, cruzaram-se. Osvaldo insistiu em sua assertiva.

Nesse instante, uma voz forte e entusiástica bradou:

Corta. Corta.Muito bom, voltaremos a gravar em uma hora.

Jorge Moraes - jorgemoraes_pel@hotmail.com