O DIA EM QUE CONHECI FERNANDO PESSOA

{Em 30 de Novembro de 1935 morria em Lisboa Fernando Pessoa.

Hoje, passados 73 anos sobre a sua morte física, presto a minha homenagem ao poeta.]

* * *

Viajando pela minha frágil memória, aceno ao incógnito dia da minha adolescência em que tomei contacto com o grande poeta, através de uma frase que me atingiu a sensibilidade com o poder de uma bomba: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”.

Durante muito tempo não soube quem era o autor, nem sequer sabia que era o verso de um poema... Imaginei que fosse um pensamento de algum filósofo famoso.

Não me lembro de nenhuma expressão que me causasse tal impacto. No meu trajecto existencial nunca supus que a poesia se insinuasse no meu ser com o poder que actualmente exerce, embora sempre tivesse escrito uns textos despretensiosos ao longo dos anos.

A partir de 2003 comecei com alguma determinação, um pouco indeciso no caminho a percorrer e em 2004 li alguns poemas de Pessoa e seus heterónimos. Foi então que encontrei o verso dos meus encantos, a abrir a segunda parte de “Mensagem” no poema

O Infante:

[Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.

Deus quis que a terra fosse toda uma,

Que o mar unisse, já não separasse.

Sagrou-te, e foste desvendando a espuma.

E a orla branca foi de ilha em continente,

Clareou, correndo até ao fim do mundo,

E viu-se a terra inteira, de repente,

Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou, criou-te português.

Do mar e nós em ti nos deu sinal.

Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.

Senhor, falta cumprir-se Portugal!]

Fernando Pessoa passou a fazer parte da minha existência como se de um familiar se tratasse e o verso “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce” bate todos os outros, mesmo aqueles mais conhecidos e polémicos do poeta, como “O Poeta é um fingidor” ou “Pensar em Deus é desobedecer a Deus” ou “Se depois de eu morrer quiserem escrever a minha biografia” ou “Ai que prazer não cumprir um dever” ou “Vi Jesus Cristo a descer à terra”...

É bem verdade que o homem sonha e ao acordar sente o apelo da Vida e os acontecimentos precipitam-se de uma forma tida como natural... Tanta coisa se passa debaixo do nosso olhar e nós nem nos damos conta.

Pessoa aí está, cada vez mais vivo, cada vez mais dentro do peito de cada um de nós, pois os anos fogem mas as palavras ficam para assinalar o poder da sensibilidade humana.

E ao mesmo tempo que evoco a memória do homem e do poeta, registo o dia em que o conheci, mesmo sem saber qual foi esse dia, pois a nossa história está preenchida de datas anónimas que se perdem nos labirintos do tempo mas que, apesar de tudo, se perpetuam com a subtileza da Mão Divina.

Memorável dia, muito obrigado!

30 de Novembro de 2008,

Abílio Henriques

NOTA: Em 2006 e 2007 publiquei três poemas de Homenagem a Pessoa. Quem não os leu e tiver curiosidade pode aceder aos seguintes links:

http://www.recantodasletras.com.br/biografias/131493

http://www.recantodasletras.com.br/homenagens/305070

http://www.recantodasletras.com.br/poesiasdedicatorias/305919