O MENINO QUE ENGANAVA A MORTE

Hoje soube da morte do personagem principal do meu primeiro livro, Hilel Silberfarb. Não era um personagem que eu inventei. Meu primeiro livro conta a história real de um personagem que existiu. Trata-se de um menino que adiou a morte por mais de sessenta anos, um dos poucos meninos judeus poloneses de antes da segunda guerra mundial que conseguiram empurrar a morte para mais adiante. No caso de Hilel, o personagem principal do meu livro, Os Meninos da Guerra, desde o tempo em que por muitas vezes passou a perna na morte fugindo dos nazistas e ucranianos pelos matos gelados da Polônia, vivendo em kibutz, sob assoalho, subindo em árvores as pressas e desviando-se das balas nos ataques surpresa, conseguiu adiá-la por quase setenta anos, até 17 de setembro último, quando pela primeira vez cedeu a vitória a essa adversária insistente, que tinha tentado levá-lo outra vez no início do século XXI, quando foi obrigado a sofrer cirurgia para fazer ponte de safena. Entretanto, quando em fim cedeu a vitória para a morte, ele não o fez sem ter passado pela vida como um dos mais vitoriosos seres humanos, pois em tudo venceu. Um homem que a tristeza não conseguia dobrar, alguém que a dureza da vida não ofuscava o sorriso; uma pessoa sempre disposta a distribuir esperança com palavras de otimismo e sorrisos medicinais, apesar de que sob a terra gelada da Polônia apenas com três anos e meio de idade perdera a mãe, o irmãozinho de um ano e meio e as duas irmãs já juvenis. E nessa Polônia ensanguetada ficou também sua infância, quando ele foi obrigado a fugir de tiros pelos matos no momento da vida em que as crianças correm com os coleguinhas no jardim da infância. E quem o visse assim, aquele homem tão sorridente, sempre agradecido e disposto a ajudar, não podia imaginar que seus olhos quando ainda criança tinham testemunhado fuzilamentos de judeus pequenos e grandes, jovens e velhos nas beiradas das valas no campo de concentração, de onde os Partezans o tiraram com o pai graças a Providência. Quem o visse sempre ativo mesmo após ter feito cirurgia do coração, não teria nem m esmo a menor idéia das atrocidades e desumanidades que ele menino assistiu, tampouco que começou a trabalhar ainda com onze anos quando já distante da guerra estava no Brasil, onde teve que suportar o deboche dos coleguinhas por freqüentar com dez anos a primeira série, além de não saber falar e, tampouco, ler na língua portuguesa, embora falasse hebraico, inglês, alemão, russo, etc., mas quando já velho ainda dizia: “Eu sou um analfabeto de pai e mãe”.

Foi este menino da guerra, o qual também contou sua história para Spielberg, a pessoa no mundo que me propiciou realizar o querido sonho de publicar um livro, meu primeiro livro, Os Meninos da Guerra. Nele tive a oportunidade de contar essa história emocionante que a tantas pessoas fez chorar, pois combinou tristeza, dor e derrota com triunfo e felicidade plena. E estou certo de que retribuí a Hilel (o conhecido Guilherme) o favor contando sua historio dessa forma coloquial ao ponto de os leitores perceberem até mesmo o seu desejo de que nunca mais se comete-am atrocidades como as do holocausto nazista contra os seres humanos por mera ignomínia.

Hoje, porém, soube que chegou ao fim esse menino que a tantos tiros e granadas sobreviveu durante a guerra. Há bem poucos dias foi vencido pela morte o menino que os vitoriosos Partezans puseram como troféu sobre o palanque das comemorações ao fim da guerra em 1945, como se ele fosse celebridade, pois era no local o mais jovem entre os que tinham chegado ao fim do morticínio nazista. Hoje soube que se foi o meu menino da guerra e deixou seus quatro filhos, seus netos e a amada Guita com quem construiu sua família feliz, esta que a maldade de Hitler não pode exterminar.

Ficará saudade deste querido amigo, que será sempre muito bem lembrado, tenho certeza que por muita gente. Adeus ao mais jovem sobrevivente do holocausto no Rio Grande do Sul, o qual com mais de setenta anos vinha adiando a morte desde o início da Segunda Guerra Mundial. Mas ao fim, a morte sempre vence e vencerá a cada um de nós um dia.

Adeus querido menino da guerra. Na saudade ficarão as boas lembranças.

Wilson do Amaral – Autor do livro Os Meninos da Guerra