Escrever é...

“Ninguém o pode aconselhar ou ajudar [sobre como escrever], – ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever. Examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma. Confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua vida: ‘sou mesmo forçado a escrever?’ Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar aquela pergunta severa por um forte e simples ‘sou’, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde” (Rilke)*

Escrever é estar vivo. Se sou-no-mundo, isso significa que o entorno ao meu redor, as circunstâncias em que sou, tudo me diz respeito. Sou responsável por tudo e a tudo tenho de responder. Por isso, escrever é uma forma de fotografar a vida usando palavras e sinais. O que se quer, além de uma memória em frangalhos? Nada, nada mais do que poder dizer: olhe aí. O texto é a pista, o indicativo, o sinal de que me fiz presente, de que passei pelo mundo, de que testemunhei, me envolvi, tomei parte, vivi.

Escrever é exercer a liberdade. A sociedade administra e controla até nossa respiração, a sístole e a diástole. Impressiona como querem que sejamos frutos das expectativas alheias. No entanto, escrever é diverso. Escrevemos na porta estreita da angústia pessoal e pingamos palavras desesperadas no papel para salvaguardarmos a posse do próprio ser. Nisso consiste a nossa precária autonomia e a nossa deficiente emancipação, as qualidades ônticas que cada um deve conquistar e exercitar na micropolítica do dia-a-dia.

Escrever é estudar. E estudar é uma modalidade genuína de socialização. Quando estudamos, entramos no mundo pela sabedoria dos outros. Parasitamos noções, imagens mentais, opiniões, conceitos, idéias, preconceitos e representações alheias para aprendermos a formar as nossas próprias visões da vida, da sociedade, do humano e do mundo. Nesse sentido, estudar é não ter escrúpulo de usar e descartar. É viabilizar concretamente esse uso que fazemos do cérebro dos outros, ressignificando-o na escrita.

Escrever é estilo existencial. Há modos de vida cuja substância é a apatia –a incapacidade de perceber, ver sentido e responder ao percebido. Outra forma de vida se conforma na simpatia descuidada –o poder que atrai, muitas vezes, acidentalmente, e não por decisão volitiva do sujeito. Mas há, ainda, a vida fundada na empatia –a realmente interessante, que vale a pena: quem aí se encontra não ignora o mundo, nem o atrai ao deus-dará. Esse é aquele que senta e escreve porque se envolve com e na vida que é e tem de conduzir.

Escrever é lutar. A escrita não é feita de palavras vazias, mas cheias de sentido, significado e direção. Elas são prenhes de princípios, valores e propósitos os quais se apresentam dignos de comunicação e defesa. Se fôssemos passivos ou reativos perante o mundo, então não faria sentido escrever. É porque queremos ser criadores de vida valorada que botamos idéias no papel. Palavras são bandeiras, projetos, sonhos e utopias, com as quais podemos dizer a que viemos, o que vemos, amamos e perdemos -bem ao nosso modo.

Escrever é aprender. Na dialética relacional entre objetividade e subjetividade, sujeito e objeto, ocorre a produção do saber. Daí sairmos à cata de informações e conhecimentos alheios, fazendo deles a matéria-prima de nossa intersubjetividade, de nossa interação com os outros, a sociedade e o mundo. Por aí, apreendemos o real no qual nos vemos mergulhados e com o qual nos importamos porque dele não podemos nos apartar. Nesse sentido, apreender o mundo pela escrita é autoconhecer-se.

Escrever é ser solidário. Se o conhecimento e o saber são personalíssimos, incrementamos nossa percepção do mundo ao doarmos e recebermos representações que fazemos dele. Nisso reside a troca simbólica fundamental. Sem ela, o homem se faz uma ilha, falsamente compreendido, porque a dimensão da manutenção coletiva da vida requer a solidariedade das visões, projetos e ações. Escrever é uma maneira de exercer essa solidariedade, à medida que entre um eu e um tu o mundo se confunde e se torna nós.

Escrever é transmitir. Se a comunicação humana é possível, também o é a transmissão de informações, conhecimentos e saberes. Escrever é isso. Se o outro já elaborou determinado saber, porque me deixaria na terrível solidão de percorrer o caminho para chegar a um ponto que ele pode me adiantar? Num mundo que quer cada vez mais encerrar o indivíduo em si mesmo, a idéia da transmissibilidade é apelo à permuta e ao enriquecimento conjugados, ainda que a elaboração do mundo seja sui generis, muito pessoal.

Escrever é interagir. Se é certo que cada um tem um autovalor irredutível do qual não pode abrir mão, também é certo que a manutenção da vida pede o desenvolvimento de projetos compartilhados, ainda que um aqui, outro acolá. A escrita, nesse sentido, é uma forma de estar junto, de fazer-se no outro e de pedir a ele que se estanda a mim. Céu e inferno se alternam na escrita, quer dizer, salvação e perdição se entrecruzam, sabendo-se sempre que o outro se alimenta da amizade ou do distanciamento que rechaçam o pior.

Escrever é criar: A vida que é minha-para-outrem e do outro-para-mim; a liberdade que só faz sentido na sociabilidade; o estudo alimentado na generosidade quase natural; o estilo existencial que pressupõe o humano vital de todos nós; a luta a favor do desejável e contra o que nos torna pó; a apreensão do real, cooperativamente; a solidariedade contextual como produto de infinitas mãos; a transmissão que em troca nada pode esperar; a vida que pulsa em mim porque é a mesma que em ti borbulha e pede para acontecer.

Sim, também sou forçado a escrever.

Não lutar com palavras é um outro jeito de morrer.

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*RILKE, R. M. Cartas a um jovem poeta. Trad. P. Ronái & C. Meireles. 10. ed. Porto Alegre: Globo, 1980, p. 22-23.