O MELHOR AMIGO QUE JÁ TIVE

Uma vez tive um melhor amigo aqui na terra, além do meu pai. Digo aqui na terra porque Jesus é um amigo infalível, Sua amizade jamais termina, sendo Ele um amigo acima de todos, que foi e é tão amigo como ninguém jamais seria, pois se pôs em risco de perder o contato com Seu Pai em favor da humanidade que tornara-se inimiga do Criador.

Quanto a esse melhor amigo terreno que tive, recontei muitas vezes a mesma história e depois de muito tempo lembrei que alguém nela foi muito meu amigo, sendo simplesmente o principal agente da melhor parte da minha vida profissional e, sem a menor pretensão, numa sequência de atos acertados, quando as circunstâncias exigiam, agiu deliberadamente em meu favor e me proporcionou oportunidades que eu nem mesmo imaginara. Por isto, com justiça, tributo este texto a esse amigo, embora depois de mais de vinte anos, após ele ter me encontrado no Facebook, quando relembrei essas coisas que lhe falei de imediato.

Em Caxias do Sul, principal cidade da Região Nordeste do Rio Grande do Sul, maior pólo econômico da Serra gaúcha, distante em torno de cento e quarenta quilômetros de Porto Alegre – aí, fiz grande sucesso profissional no início de minha carreira, trabalhando em seu principal veículo de comunicação impressa, o Jornal Pioneiro.

Logo que cheguei, em 1988, percebeu-se nas páginas da publicação diária a presença de alguém com habilidades especiais na área de artes e, de imediato, recebi muitas propostas, surgindo também muitos trabalhos paralelos que eu fazia nas horas vagas.

Entre as empresas que, ocasionalmente, solicitavam meus serviços, estava a sucursal do Jornal do Comércio, para a qual, vez ou outra, eu fazia rascunhos de anúncios para ajudá-los a fechar contratos comerciais. Um dos ou o jornalista dessa sucursal tratava-se do Claudio Abreu, então com trinta e nove ou quarenta anos, que logo começou a fazer amizade, me convidando para eventos importantes juntamente com uma jovem jornalista do Pioneiro. E ele mesmo indicou meus serviços para a agência de propaganda onde ele trabalhava efetivamente e foram tantos os trabalhos esporádicos dessa agência que passaram a ocupar praticamente todo o meu tempo livre, obrigando-me muitas vezes a passar noites trabalhando.

Por esse tempo ganhei muito dinheiro, deixando daí o emprego no jornal Pioneiro, pois desde o início tive muitas críticas a seu sistema de trabalho e relação que mantinham com os funcionários. E, admirado de minha dedicação e compromisso para com o trabalho e os prazos de entrega, o dono dessa agência propôs-me patrocinar-me cursos avançados que eu retribuiria firmando com ele contrato de serviço de um ano por salário razoável. Negociava esse salário razoável sem chegar-mos a um consenso, pois, embora sem esses cursos especializados, meus préstimos profissionais eram muito requisitados. Portanto, não tinha porque trabalhar por salário baixo.

Nesse tempo, a sede da agência sofreu um arrombamento que logo se viu que fora de dentro para fora e a culpa imediatamente recaiu sobre mim que, como a secretária e outras pessoas, tinha a chave do prédio. Entretanto, numa dessas noites que lá estive trabalhando, levei comigo um amigo e após o pseudo arrombamento encontrei cópia das chaves sobre a minha cama na pensão onde eu morava, dando margem para que o dono da agência aventasse a hipótese de meu amigo ter feito cópias e roubado na agência. Sendo assim, ele propôs-me que, para livrar-me da acusação de roubo, eu teria que denunciar meu amigo e entregar o que ele teria roubado, que era uma TV colorida de dezessete polegadas e um casaco de peles, totalizando uns mil e quinhentos cruzados, enquanto a agência me devia em torno de cinco mil em serviços.

Ao contrário de fazer isso, muni-me de advogado e testemunhas por calúnia e difamação e disse ao dono da agência que fosse às últimas conseqüências, já que ele pagara dois policiais civis para me coagir. Ele, porém, não se arriscou a tanto, mas me difamou aberta e livremente na cidade e dentre todas as agências de propaganda para as quais eu fazia free lancer, restou-me a Prisma Publicidade, do Renato Calabró e o Flávio Girardi, os quais jamais duvidaram de minha conduta.

O trabalho nessa agência, porém, era escasso, tornando-se difícil até pagar a pensão, onde eu fora morar após deixar o Jornal Pioneiro. Por conta dessas dificuldades financeiras, fui perdendo o contato com minha namorada em São Leopoldo num tempo onde até uma ligação telefônica convencional era difícil, pois telefone era artigo de luxo.

As coisas iam de mal a pior, sendo que eu e outros colegas de pensão tivemos nosso pertences roubados na casa, sofrendo depois ameaças da parte do cara que foi denunciado na polícia pelo sujeito que denunciamos como ladrão. E tudo isso ia me levando à um sistema pessimista depressivo que eu expressava através de poemas que comecei a escrever, produzindo quase duzentos dos mais pessimistas no período de um ano.

Nos últimos tempos já devia mais de três meses na pensão, prometendo ao proprietário que logo a situação melhoraria e eu poria as dívidas em dia. Porém, me sentia envergonhado cada dia que chegava para comer e dormir, pois, na verdade, não tinha expectativa de melhora. Porém, avaliava por longe a possibilidade de ser humilde e voltar atrás ao Jornal Pioneiro, pedindo emprego na empresa que eu desprezava. Mas relutava para tomar essa decisão. Vencido, entretanto, pelas circunstâncias, liguei para o Eduardo, que fora meu superior na empresa, e pedi-lhe para ser reintegrado ao quadro de funcionários. Ele argumentou que corria boato de que eu roubara na agência do fulano. Contra-argumentei, porém, que ele me conhecera antes e muito mais que o sujeito que me difamava, o qual já tinha sua fama na cidade, o que eu ficara sabendo por esse tempo. Ele argumentou, entretanto, que briguei muito no tempo em que trabalhei no Jornal. Lembrei-lhe, contudo, que eu brigara, mas fora para proteger e melhorar a qualidade das edições do jornal. Encerramos a ligação com sua solicitação que lhe ligasse na sexta-feira para marcar reunião a fim de acertamos os detalhes.

Era terça-feira e eu vencera o orgulho, podendo daí visualizar a solução da dívida na pensão e o tempo que poderia procurar minha namorada e explicar-lhe a situação que dificultara o contato, pois jamais desistira dela. Isso me custaria, porém, voltar a trabalhar numa empresa que eu não acreditava, cujos princípios de relacionamento e motivação dos funcionários eu achava retrógrados e onde eu achava que trabalhar seria um retrocesso profissional. Porém, trabalhar e ter renda, podendo investir no aperfeiçoamento profissional, seria a única maneira de sair da situação real de retrocesso que eu vivia.

Na quarta-feira, porém, o Calabró me passou uma ligação, no mínimo, inusitada. Para minha surpresa, o homem do outro lado da linha identificou-se como Juarez, dono da Proequipe Propaganda, que eu já ouvira falar que era a segunda maior e melhor agência de propaganda da Região Nordeste do Estado do Rio Grande do Sul. E disse que me ligara para me convidar para fazer-lhe uma visita e tomarmos um uisquinho para falarmos da possibilidade de eu ir trabalhar nessa agência. Seria possível eu ir trabalhar com eles, perguntou. “Imagina! Claro que sim”, afirmei com convicção.

Entre outras coisas, na entrevista lembrei ao Juarez que, segundo conhecido sujeito espalhava, eu era ladrão. Ele, porém, disse que as palavras do tal sujeito não tinham valor, pois sua má reputação era bem conhecida.

Após a entrevista, que percebi que não terminou bem por causa de algo que falei, ele despediu-se, dizendo que logo me procuraria. E, sendo que entendi que ficou certo que seria contratado com aquele exuberante salário, nem tinha porque marcar entrevista com o Eduardo do Pioneiro. Entretando, os dias foram passando e fui entendendo que não me chamaria. Perguntara-me, porém, o que o levara a me procurar e fazer convite tão excelente que eu havia destruído por algum motivo. E a resposta que o Calabró me deu quando com ele compartilhei essa dúvida é que o Claudio Abreu fora trabalhar na Proequipe e certamente por sua indicação o Juarez chegara a mim. Rapidamente liguei para o Claudio na Proequipe e sondei com ele o que eu falara que desmotivara o dono da agência. Ele explicou que certamente fora eu ter dito na entrevista que jamais tivera que cumprir horário e bater ponto, pois sempre fora comprometido com o trabalho e jamais me negara a trabalhar o quanto uma meta requeresse. É que o dono da agência estava justamente querendo me contratar para substituir a um funcionário que não tinha essa mesma visão e se achava no direito de chegar e sair quando bem entendia, chegando no mais das vezes após as dez horas da manhã.

Após me desculpar com o Claudio por ter cuspido com minha prepotência na excelente oferta que ele me proporcionara, pedi-lhe que intercedesse com sua coerência junto ao homem, explicando-lhe que durante o ano em que prestei serviço militar fui muito bem disciplinado e sempre soube cumprir horários, sendo que meu boletim no quartel era repleto de elogios superiores as minhas qualidades.

Passados dois ou três dias, o Claudio me ligou dizendo que já falara com o homem, recomendando que então ligasse para marcar nova visita. Ao telefone, quando marquei nova entrevista com o dono da agência, disse-lhe que me recebesse somente mais essa vez, pois eu aproveitaria uma única oportunidade para provar-lhe que podia bater ponto e cumprir o horário que ele estabelecesse. Na nova entrevista, solicitei que me contratasse por apenas um mês e eu mostraria que seria a melhor contratação que ele faria. Ele concordou, mas disse que, embora tivesse passado um mês da primeira proposta, quando ele me ofereceu mil e quinhentos cruzados por mês, e os salários já tivessem sofrido o “gatilho” (aumento automático em torno de trinta por cento ao mês por conta da inflação galopante), ele não aplicaria esse “gatilho” sobre o salário da proposta, mas aplicaria o “gatilho” do próximo mês e daria mais oitenta por cento de aumento real caso eu cumprisse o horário e ele se agradasse dos meus serviços.

Na primeira semana que trabalhei nesse novo emprego, jamais me esquecia de que estava sendo testado e que me comprometera não só com o diretor de ser sua melhor contratação, mas também com o amigo Claudio que por duas vezes comprometera sua própria reputação para me indicar a mesma vaga. Porém, fui mandado para o estúdio de artes e praticamente esquecido lá, me vendo obrigado a disfarçar que fazia alguma coisa, fazendo assim o rabisco do que eu achava que deveria ser a logomarca de uma indústria exportadora de rodas de caminhões cujo anúncio de página eu via sobre a mesa à qual me assentava. Quando, num desses dias, o diretor de criação entrou no estúdio de artes somente para descontrair e falar qualquer coisa, não vendo os outros dois colegas, se dirigiu à mesa onde eu estava, pedindo-me para desvirar o papel sob minhas mãos e mostrar-lhe o rabisco que eu tentava esconder. Vendo o esboço da logomarca que eu fazia, ele pediu que finalizasse o desenho, aplicando-o a projetos de material de expediente, uniformes, veículos, fachada, etc., pois eles apresentariam a empresa que era cliente da agência. E, após apresentarem na empresa o projeto de sua nova logomarca, o diretor de artes adentrou ao estúdio muito satisfeito, dizendo que tinham vendido meu projeto por uma quantia que eu levaria alguns meses para ganhar, embora meu salário fosse realmente excelente. E assim comecei nesse emprego com o pé direito, fazendo muito mais do que me tinha sido exigido, indo além e fazendo o que nem tinha sido solicitado, resultando que a agência faturou um bom dinheiro.

Por conta de todo o sucesso que comecei a fazer por iniciativas nessa empresa, ganhei excelentes salários e lá trabalhei até que o Plano Collor levou-a à beira da falência. E seguidamente ia à sala do Claudio confabular sobre muitas coisas e, às vezes, quando víamos, todos os colegas lá estavam reunidos conosco, debatendo sobre muitos assuntos, inclusive sobre a campanha presidencial que logo se travou. Nesse tempo comecei a formar minha consciência política e por esse mesmo tempo comecei a sentir o desejo de expressar meu otimismo em textos filosóficos, alugando também aí o amigo Claudio Abreu para ouvinte, crítico e instrutor.

Wilson do Amaral

Autor de Os Meninos da Guerra, 2003 e 2004, e Os Sonhos não Conhecem Obstáculos, 2004.