SAUDADE DO AMIGO MILTON

Hoje já se vão três anos que Milton partiu. Pouco antes nos encontramos na entrada de um Shopping em Brasília. Relembramos bons momentos do Mestrado em Comunicação da UnB, onde ele fora meu professor, nos idos de 1977. Anotamos e-mails e nos prometemos retomar o contato, o que não aconteceu. Estranhei a falta de resposta à minha mensagem e somente no mês passado entendi tudo. Encontrando casualmente o professor Salomão, conversa vai, conversa vem e assim fiquei sabendo de sua partida, provavelmente alguns dias depois do nosso último encontro.

Conheci o professor Milton Cabral Viana, em um dos momentos mais ricos de minha vida acadêmica. Fora selecionado para a segunda turma do curso de mestrado do Departamento de Comunicação da UnB e novos horizontes se abriram para o aprendizado em áreas até então alheias a um agrônomo. Ele era doutor pela Universidade de Paris, tendo como orientador Roland Barthes.

Como bom discípulo de Barthes a sua proposta de curso era refazer as dimensões do processo de comunicação através do eixo da linguagem, onde significante e significado em relação dialética dão sentido à significação.

Foi navegando nessa barra de significantes e significados que chegamos ao delírio de uma  nova leitura do processo de comunicação. As aulas eram um verdadeiro show de erudição. No entanto tudo era construído de forma participativa tendo como como norte a praxis, entendida como ação e reflexão a um só tempo.

Estudando com o Milton conheci figuras importantes como a Julia Kristeva que na sua Introdução à Linguística me instigava a pensar, logo no prólogo:  "se existe um pensamento independente da linguagem ou se a linguagem é  ela própria pensamento".  Ou  Maurice Merleau Ponty em O Homem e a Comunicação: "...não encontramos jamais nas palavras dos outros nada além do que nós mesmos colocamos nelas, a comunicação é uma aparência, não nos ensina nada de verdadeiramente novo. Como seria ela capaz de nos levar além do nosso próprio poder de pensar, já que os sinais que nos apresenta não nos diriam nada se nós  já não possuíssemos por inclinação a sua significação?".

Proposições instigantes como essas eram sempre debatidas dentro de um enfoque multidisciplinar que transitava desde Lakan a elementos da cultura popular. Ao final do curso fragmentos dos trabalhos dos mestrandos foram reunidos e publicados numa edição especial do Jornal Laboratório do Curso de Comunicação do Ceub n° 36 de novembro de 1976. O tema central era Brasília: do projeto ao processo. Lá na p. 7, deixei também alguns haicais alusivos ao tema, ao lado de um texto curto e forte do Milton que transita na barra dos significantes e significados  com destempero verbal e fina ironia. Chama atenção o enigmático D.M. da última frase, na minha leitura, uma alusão à ditadura militar que meses mais tarde o expurgou da UnB):


Cidade: desejo - linguagem - história

A PONTE DO DESEJO
E diz a ponte: passarás e não verás a água, mesmo que que me batizem com outro nome.

O NOME
Pela sua transgressão, o simbólico se fraciona, a história se fragmenta. O sujeito emerge.

A BACIA
Aqui refrescará a cabeça ou o rabo. Aquele que estiver mais quente.

O PALITO
Função: coçar depois refrescar.

SÃO TRÊS
Dividir para reinar

ESPLANAÇÃO
Se cada um urinar à sua própria porta, jorrará eternamente a fonte da justiça.

INSTINTO DE MORTE DE D.M.
Ele o pôs aqui, sem alvoroço, mas era ainda o toque da madrugada: dia virá. 


De Milton, guardo a simpatia do seu sorriso largo de nordestino feliz com a vida, sua imensa generosidade e ternura para com o outro e a força daquele  aperto de mão ao cumprimentar as pessoas.  Sempre polêmico e irreverente, não posso me esquecer de sua entrada no auditório de uma reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, realizada em Brasilía, em 1977. O tema parecia ser linguística e comunicação, não me recordo bem. Só sei que à mesa já estava o outro debatedor da Universidade de São Paulo, todo formal de colete, paletó e gravata quando é chamado o professor Milton Cabral Viana.

Eis que surge do fundo do auditório aquela figura meio mística trajando bata e calça brancas, usando tamancos, toc, toc,  e de charuto na boca, possivelmente um daqueles Davidoff que eu costumava presenteá-lo toda vez que voltava de Cruz das Almas (o gerente da fábrica era conhecido dos meus sobrinhos).

Pois bem, em sua apresentação Milton prestou uma homenagem à nossa turma, afirmando que o trabalho ali apresentado era uma construção coletiva, um refazer de proposições, algo que na sua excentricidade dizia para ser ouvido ao som de Refazenda de Gilberto Gil. E tinha uma razão de ser: semanalmente, após as aulas a turma se reunia com ele num barzinho muito frequentado por estudantes na 405 Norte, de nome O Intelectual. Não sei se ainda existe. O som que rolava era esse. Em seu aniversário, em 1977, a comemoração saiu do barzinho e terminou em sua casa. Não me esqueço de uma ligação que ele recebeu de sua mãe, naquela noite, parabenizando-o. Ele dizia estar muito feliz rodeado de amigos entre os mais queridos. 

Saudade de você, Milton querido. Muito triste por só ter sabido de sua partida três anos depois,  quero aqui homenageá-lo por tudo que você acrescentou à minha vida acadêmica e de tantos outros alunos que tiveram a chance de conviver com esse intelectual brilhante que você foi.