O rude perfume da terra
À Memória de Luís Francisco,
falecido em 17.02.2013
Era difícil encontrar o Luís sem que ele estivesse com o “grão na asa”.
Qualquer pessoa interessada nos seus “préstimos” tinha de o avisar repetidas vezes, na véspera, para ter cuidado com a "pinga", pois as ressacas costumam ser o pesadelo do dia seguinte.
Apesar disso, lá ia ele invariavelmente todas as manhãs rumo à taberna para o “mata bicho” habitual: uma “patanisca de bacalhau” ou um “jaquinzinho” e um “parafuso” - raramente comia pão, pois fazia-lhe azia (dizia ele). Claro que era preciso colocar-lhe um travão logo ali pois, se não, os parafusos não paravam de marchar goela abaixo - e havia todo um dia de trabalho pela frente.
Naquele dia o serviço não era muito pesado (apanha de azeitona), mas mesmo assim não convinha facilitar. Às sete e quarenta já o patrão o fora chamar para lhe acabar com os apetites do vinho, enquanto o resto do pessoal foi aprontar o material necessário à lida: panos, cestos e baldes.
Partimos - uns no trator, outros na carrinha - e às oito horas em ponto estávamos a “ferrar ao trabalho”. A manhã estava fresca mas não chovera durante à noite, o que facilita muito este tipo de azáfama, num dezembro de inverno à porta.
Uns foram estender os panos debaixo das oliveiras, enquanto outros foram apanhando manualmente algumas árvores com menos fruta, às quais não se justificava derrubar a azeitona com a maquineta de sacudir as oliveiras.
O Luís ficou atrás a comer uma maçã (nem sei onde ele a foi desencantar), “ é p'ra ganhar balanço” – dizia ele, com um sorriso sacana. O trabalho decorreu normalmente e sem problemas, durante toda manhã.
Perto da hora do almoço, alguém do grupo foi buscar a comida - já cozinhada - a casa do patrão. Ficámos entretanto a saber que a ementa rústica desse dia era: batatas, grão, ovos e bacalhau, tudo cozido, para temperar com o bom azeite da casa. Para acompanhar, tínhamos azeitonas do ano anterior, curtidas e conservadas em água, sal e ervas aromáticas - ao bom jeito português.
Foi nesse ponto que eu fiz a malandrice: Trouxe uma quantidade de azeitonas cruas do olival e misturei com as outras da lancheira, sem que parte do pessoal desse conta.
Na hora de distribuir a comida, alguns foram cortando pão e comendo das azeitonas. O Luís também deitou logo as mãos a umas quantas (sem pão, que lhe faz azia) e vá de comer nelas. Para cúmulo da pontaria, trincou umas quantas daquelas intragáveis azeitonas cruas, que eu lá tinha colocado, e que logo cuspiu fora, com a careta mais feia que alguma vez vi.
De imediato se pôs de pé aos gritos, dizendo que o queriam envenenar, e “abalou” a pé, danado que nem uma cobra, para nunca mais lá por os pés.
Entre as gargalhadas dos outros colegas, percebi o olhar reprovador do patrão que acabara de ficar sem um trabalhador.
As brincadeiras às vezes têm destas merdas!...
12.02.2013, Abílio Henriques
* * *
GLOSSÁRIO DAS EXPRESSÕES DA GÍRIA REGIONAL PORTUGUESA
(assinaladas no texto entre aspas):
grão na asa – prestes a ficar ébrio.
préstimos – serviços.
mata bicho – primeira refeição da manhã.
patanisca de bacalhau – posta de bacalhau frita envolta em ovo.
jaquinzinho – carapau pequeno frito em óleo.
parafuso – copo de vinho de um decilitro.
ferrar ao trabalho – começar a faina do dia.
abalou – foi-se embora.
pinga - qualquer tipo de bebida alcoólica.
NOTA: Este texto é parcialmente ficcionado e, curiosamente, foi escrito em 12.02.2013, cinco dias antes da morte por atropelamento do Luís Francisco.
Publico nesta data em que acabo de ajudar a colher a azeitona ao amigo aqui referenciado como "patrão" (Silvino Carvalho), pois o mesmo efetuou uma intervenção cirúrgica há um mês da qual ainda está em convalescença.
Os meus votos de rápidas melhoras para o amigo Silvino!
Os meus votos de **Festas Felizes** para todos os autores e leitores do Recanto das Letras!!!
Abílio Henriques
12.12.2014