UM HAICAISTA VISIONÁRIO

 

Recentemente um amigo perguntou-me qual autor influenciou a minha modesta trajetória de cultor de haicais. Na oportunidade eu respondera não se tratar de nenhum nome japonês ou brasileiro famoso. Fora um intelectual autodidata de uma cidade do interior da Bahia, Cruz das Almas. O seu nome: João Gustavo da Silva (1918-1967), amigo e companheiro de ideal político nas décadas de 1950 e 1960. Foi ele quem me apresentou ao haicai, deixando-me fascinado pela concisão e formusura estética desses três versos de 5-7-5 sílabas. Os seus haicais, embora precisos quanto à métrica e o uso inteligente de metáforas, fugiam à ortodoxia do gênero japonês puro, por focalizar temáticas que extrapolam à natureza e por conferir título aos versos. Essa talvez seja a característica mais forte que me influenciou, porquanto mantive por muito tempo o hábito de intitular os meus haicais.
 
Tive o privilégio de conhecer o João Gustavo e com ele conviver na minha juventude. Testemunhei em ações, muito mais que em palavras, o exemplo comovente de amor ao próximo, acurada sensibilidade social e visão política que fizeram desse companheiro um bastião da causa dos oprimidos e injustiçados.
 
Poeta, escritor, jornalista, João Gustavo foi um misto de lirismo e realidade avultando na luta por um ideal que buscou atingir acima de tudo. Como poeta cantava a alma do povo, a sua luta pela vida, tradições, aspirações e sofrimentos. Sonhava com uma comunidade onde todos fossem iguais, menos sofredores, alimentando por toda a vida esse ideal, constante inspiração de sua obra e ação política .
 
Político idealista, como militante foi vereador por Cruz das Almas no período de 1958-1962. Foi também um dos fundadores da Frente Nacionalista naquela cidade num período que fervilhava a luta pelo petróleo e defesa da indústria nacional ameaçada pelo que na época se chamava o trust internacional.
 
Jornalista, João Gustavo escreveu para Nossa Terra, O Nacionalista, A Tarde e Correio de São Felix revelando extrema preocupação com problemas sociais, principalmente afetos à Região do Recôncavo baiano onde os plantadores de fumo encontraram no vibrante escritor, autêntico e vigoroso defensor.


Era um próspero comerciante até que a falência bateu à sua porta, principalmente em razão de seu obstinado apoio ao movimento grevista dos tarefeiros da Escola Agronômica da Bahia. Por longos meses sustentou o fornecimento "fiado" de gêneros alimentícios do seu “Armazém Bom Sucesso” aos trabalhadores grevistas que tiveram seus salários cortados ou foram demitidos.
 

De uma visão política extraordinária, lembro-me que nos dias que precederam o golpe de 1964 ele era, entre os companheiros, a única voz realista que previa o desastre iminente. Todos acreditavam no dispositivo militar de sustentação do Governo Jango e sobretudo no apoio popular para as chamadas reformas de base. O célebre comício do dia 13 de março, na Central do Brasil, ouvímos juntos pela radio Mayrink Veiga. Estávamos Tipografia Nossa Terra que editava o jornal O Nacionalista. Para quebrar a tensão, eu armava torres com as peças tipográficas que moldavam as chapas para impressão. De repente puxei a peça inferior e a estrutura balançou. Irônico, eu dizia que assim estava a burguesia, animado com a movimentação dos sargentos e praças e pela aliança operário-estudantil que prometia barrar qualquer tentativa golpista. João Gustavo jogou água fria no meu entusiasmo e daí a 15 dias, a eclosão do golpe daria razão a ele.
 
Deixando de lado o aspecto político da biografia de João Gustavo, quero transcrever alguns textos que compõem a sua obra, mais precisamente um soneto e oito dos seus haicais. Comecemos pelos haicais.


1. FUTEBOL ATÔMICO

A bola do mundo
Vai ser já movimentada
Dando início ao jogo

2. O PODER DO ENTENDIMENTO

Da harmonização
Entre o bombo e o violino
Nasce a melodia

3. RIGIDEZ CADAVÉRICA

Ao morto feliz
Que viveu sempre a chorar
Pouco importa a vida

4. SOCIALISMO DIALÉTICO

O homem sem Deus
Como bicho evoluindo
É sempre mortal

5. DIALÉTICA DIVINA

O homem com Deus
Com Deus evoluindo
Deus tornar-se-á

6. HEROISMO CRISTÃO

Era ele invencível!...
Mas preferiu ser vencido
Por amor à paz

7. NACIONALISMO ABORÍGENE

Ao mundo abraçando
Diz o povo brasileiro:
Não me explore irmão

8. NACIONALISMO INTERNACIONALISTA

Como o corcovado
Quer o povo brasileiro
Abraçar o mundo

9. NACIONALISMO ANTIJACOBINISTA

O Brasil é nosso
E de todos os que queiram
Mais engrandecê-lo


SONETO

“De um louco para os outros”, obra que reflete a angústia existencial e o desespero do homem moderno ante as conturbações filosófica, espiritual e social, foi uma de suas mais belas páginas. Em “É tétrico, mas é luminoso”, como que prevendo a sua partida que aconteceria dois anos depois, ele introduz um soneto como uma espécie de testamento, pronunciando-se nesses termos:

Lá, temos todos, eu, meus amigos e inimigos, encontro marcado. Por mais que queiramos fugir a esse encontro, jamais o evitaremos!
Aqui não me curvei ao direito da força, imposição de quantos 'por não saberem laborar o mel destroem cortiços'.
Lá, serena e tranquilamente enfrentarei a força do direito, onde não prevalecem o brilho do ouro, o tilintar das moedas e tantas outras banalidades tonificadoras da arrogância dos ídolos de barro.
E se na hora de partir daqui para lá me fosse dado despedir-me, assim o faria:

ATÉ LÁ... AMIGOS E INIMIGOS

Sinto da minha vida a taça se esgotando
Meu corpo se ultimando estou desfalecendo,
Enquanto vou morrendo alegre vou lembrando
Tudo... Tudo por que vivi sempre gemendo.

Em lutas me empenhei, somente paz sonhando
O mal desintegrando, o bem fui promovendo
Dos maus vivi sofrendo o combate execrando
Apoiado nos bons, mais vivo estou morrendo.

Se não resplandeci, também não ofusquei
Ao ódio que gerei nutri com tolerância
Eu mesmo fui a dor dos sofrimentos meus.

Como religião, no amor acreditei
Junto a mim encontrei com sublime constância
Toda vez que fui bom, a presença de Deus.


 

Com a transcrição desse poema composto em 16/05/1965, encerro essa singela homenagem ao amigo, poeta, escritor e visionário companheiro João Gustavo da Silva, uma das figuras mais inesquecíveis da minha formação. Honra lhe seja!