Meu pai sempre viverá em mim

Hoje faz seis anos que meu pai não está entre nós. Naturalmente, as lembranças são mais fecundas nessas datas pontuais, assim como a necessidade de externá-las. Elas vêm em uma correnteza de pensamentos como se fossem peixes de várias espécies. Observando o caminho das águas, eu decidi jogar minha rede nesse rio de sensações e sentimentos e pescar apenas as boas recordações. Eu sei que a arte de pescar não é uma ciência exata e que não fisgarei apenas os peixes que eu quiser. No entanto, como disse, desejo compartilhar os bons momentos, que são cardumes infinitos. Quanto aos outros, que caberiam em um minúsculo aquário, caso venham a emergir, devolverei ao rio para que sigam seu percurso natural.

Uma das primeiras lembranças que tenho de meu pai é quando caminhávamos juntos para o seu comércio. Ele tinha um pequeno bar no centro da cidade. Eu deveria ter quatro ou cinco anos. O trajeto entre nossa casa e o bar, percorrido a pé, durava cerca de dez minutos. Eu andava com orgulho ao seu lado, mesmo sem saber o significado desse sentimento. Queria sincronizar meus passos aos dele. Até me esquecia dos braços. Logo ele me alertava: “Balance os braços, rapaz! Tem que andar balançando os braços.” Depois nós passávamos no canteiro central de uma avenida e eu subia nos bancos, corria, apanhava galhos, tampas. Tudo virava diversão, sempre ao olhar atento dele que, vez ou outra, dizia para eu não correr. Eu me sentia protegido e, ao mesmo tempo, livre para brincar.

Por falar no bar, confesso que é um dos lugares que mais me faz lembrar do meu pai. Até hoje, quando sonho com ele, quase sempre estamos lá. Ali ele me ensinou a respeitar as pessoas independentemente de poder aquisitivo, cor, sexo, religião, ideologia política, ou qualquer outra forma de pensar ou ser diferente. Ele nunca me explicou essas questões, mas me ensinou da forma mais eficaz: por meio do exemplo. Todos eram bem-vindos e bem tratados, até pessoas que eram vítimas de segregação por parte da sociedade, como pobres, prostitutas ou ex-presidiários. Penso, inclusive, que essas eram ainda mais bem recebidas. Nesse período meu pai me ensinou o que era respeito, tolerância, compaixão e humanidade.

Era como se ele, mesmo que inconscientemente, procurasse resgatar o sentimento de dignidade daquelas pessoas. A maneira como ele fazia isso variava, desde o simples jeito de falar com a pessoa, dar-lhe atenção, pegar na sua mão, até doar uma comida, uma bebida, remunerar os seus mandados, como uma limpeza no bar ou a entrega de algum produto em nossa casa. Houve um dia que até barbeiro ele foi. Um senhor que vivia em situação de rua chegou ao bar, querendo “tomar uma”, com a barba e os cabelos grandes. Mesmo sem um centavo no bolso o homem saiu dali com o cabelo cortado, a barba feita e a goela molhada.

Outro fato marcante que me vem à memória é quando fomos ao circo. Na época, como criança, o espetáculo me marcou muito: palhaços, trapezistas, mágicos. Havia até leões que pulavam entre rodas de fogo. Hoje, quando me lembro daquele momento, vejo o gesto de carinho que meu pai teve comigo. Pode parecer algo simples, corriqueiro. Mas, na verdade, nós não tínhamos o hábito de sair juntos. Nosso relacionamento era praticamente todo no bar. Até mesmo em casa convivemos bem menos do que eu gostaria. Aquela ida ao circo com meu pai foi como um oásis de alegria em meio a um deserto de aspirações.

Na minha infância tínhamos esse relacionamento mais próximo no bar, onde eu ia praticamente todos os dias. Lá eu brincava, vendia, anotava as compras feitas sob confiança – os famosos “fiados” – sentava com ele em umas bancas da feira que ficavam em frente ao seu comércio. Minha brincadeira preferida era tocar músicas em um som que ele tinha, sempre atendendo aos pedidos dos clientes/ouvintes. Discos de vinil, fitas k7, som três em um... essa era a infância no começo dos anos 90.

Na adolescência nossa convivência foi ainda menor. Saí de casa cedo para trabalhar em outro município. Logo me casei. Essa fase, na verdade, não vivi de forma tão plena como a infância. Mas me lembro que ele sempre me apoiou. Financeiramente, com palavras de incentivo, de todas as formas possíveis. Meu pai era um otimista por natureza. Para ele, tudo sempre estava bem e, ainda que não estivesse, ele tinha certeza que logo iria melhorar. Para mim, essa foi a maior lição desse período: o otimismo, a positividade.

Já na fase adulta convivemos mais. Eu passei a morar perto da casa dos meus pais e todas as noites ia para lá. Sentávamos à calçada, eu e ele, e conversávamos horas sobre todos os tipos de assunto. Mesmo que não concordássemos em alguns, como na política, ele sempre mantinha uma postura lúcida e democrática. Uma das recordações que tenho dessa época é quando passei a trabalhar como locutor em uma rádio. Meu pai era meu ouvinte. Quando eu ia ao seu bar, ele me apresentava às pessoas que ali estivessem pelo meu nome artístico. Fazia uma propaganda completa, falando o nome da rádio, o horário do programa, o tipo de música que tocava. Era uma profissão simples, mas eu sentia que ele se orgulhava.

Antes que eu completasse 26 anos, em maio, meu pai faleceu em abril. Tantos momentos deixamos de viver juntos, como a minha formatura em Direito, minha aprovação na OAB e quando eu recebi a carteira de advogado. Assim, como essas, tantas outras situações fomos impedidos de compartilhar. Por essa razão, vez ou outra me pego a imaginar como seria se ele ainda estivesse aqui. E, na verdade, sinto que está. Ele sempre estará. Sempre viverá. Nos meus valores, nas minhas condutas, nas minhas palavras. Meu pai sempre viverá em mim!