Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Répteis e Anfíbios (RAN): 40 anos de história e conquistas

*Giovanni Salera Júnior e Rafael Antônio Machado Balestra

**Minuta de texto para publicação pelo RAN/ICMBio

A história do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Répteis e Anfíbios (RAN) sintetiza a própria trajetória do movimento ambientalista brasileiro ao longo dessas últimas 4 décadas.

Sua origem remonta aos anos 70, considerada por alguns estudiosos como a “grande década da ecologia”, quando surgiram inúmeras personalidades e iniciativas governamentais e da sociedade civil organizada que marcariam decisivamente os rumos do conservacionismo nacional.

Indubitavelmente, trata-se de um período extremamente fértil para o ativismo em defesa dos recursos naturais.

Uma prova disso foi o surgimento de importantes projetos de proteção da fauna, como: Centro de Estudos de Migração de Aves (CEMAVE), Programa Quelônios da Amazônia (PQA), Projeto Peixe Boi, Projeto TAMAR, entre outros igualmente relevantes – todos nascidos no “Departamento de Parques Nacionais e Reservas Equivalentes” do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), que era uma espécie de “bunker rebelde”, repleto de jovens idealistas e apaixonados pela natureza, que resistia e contrapunha com o “desenvolvimentismo” daquele período.

O engajamento desses jovens profissionais deu um caráter personalístico, que foi fundamental para romper as dificuldades e limitações iniciais, como a falta de empatia e pouco entendimento por parte de gestores públicos acerca da relevância daquelas iniciativas.

Começaram tudo, praticamente, do zero. A escassez de conhecimentos técnicos/científicos era vencida com uma boa dose de ousadia, criatividade e improvisação. Foram desenvolvendo as ações em cima de erros e acertos, sempre na vontade de fazer o melhor pelo País e pelas próximas gerações.

O idealismo gradativamente foi sendo fortalecido pelo conteúdo programático e metodológico, o que se deu em decorrência do envolvimento crescente de pessoas e entidades nessa causa.

A sistematização constante dos dados, o apoio de veículos de comunicação e a busca pelo aprimoramento por meio de parcerias com universidades e empresas foram fundamentais para a evolução das atividades.

Esses são aspectos comuns aos diversos projetos criados pelo IBDF ao final dos anos 70 e começo dos anos 80.

Contudo, o Programa Quelônios da Amazônia (PQA), idealizado por Vitor Hugo Cantarelli, em 1979, se destaca de todos os demais, em razão de suas inúmeras peculiaridades.

Por mais de 20 anos o Programa Quelônios da Amazônia (PQA) foi o carro-chefe do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Répteis e Anfíbios (RAN). Inclusive, foi a partir do PQA que surgiu o Centro Nacional de Quelônios da Amazônia (CENAQUA) e, posteriormente, o RAN.

Em 2007, o RAN passou a ser vinculado ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que foi desmembrado do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Em 2011, o PQA retornou à tutela do IBAMA por ser esse instituto o responsável pelo monitoramento e manejo de fauna silvestre não ameaçada de extinção e de interesse para exploração comercial. Assim, surgiu o Programa Nacional de Conservação dos Quelônios Continentais de responsabilidade do RAN/ICMBio.

O PQA conquistou resultados que nenhum outro programa de monitoramento e manejo de fauna silvestre obteve no Brasil nos últimos 40 anos.

O Programa Quelônios da Amazônia (PQA) é, sem dúvidas, uma das mais sólidas e exitosas políticas públicas para conservação da exuberante biodiversidade nacional, de reconhecimento internacional como um dos, se não o maior, programa de manejo de fauna silvestre existente do mundo.

Os números do PQA são realmente impressionantes!

- 93 milhões de filhotes da família Podocnemididae (a mesma da tartaruga-da-amazônia - Podocnemis expansa) foram protegidos e devolvidos aos rios e lagos da Amazônia. Além disso, mais de 890 mil matrizes foram monitoradas, esforços concretizados pela integração IBAMA, ICMBio e 62 entidades parceiras integrantes do Plano de Ação (PAN) Quelônios Amazônicos. Nenhuma iniciativa brasileira chegou perto desse resultado e pouquíssimos no mundo se assemelham a essa incrível conquista do PQA.

- Vale destacar que esse número é ainda mais relevante quando se verifica o tamanho da área de abrangência do Programa e as limitações que existem na sua execução. Os técnicos do PQA trabalham em 11 áreas e 212 sítios de desova, numa vastidão territorial que engloba os 7 estados da Região Norte (TO, PA, AP, AM, RO, RR e AC) e 2 estados do Centro-Oeste (Goiás e Mato Grosso). Obter bons resultados trabalhando próximo ao litoral, nas Regiões Sul e Sudeste, onde há ótima infraestrutura viária, hoteleira e de serviços é extremamente fácil. Outra realidade bem diferente é atuar nas áreas de cerrado e floresta, percorrendo estradas sem asfalto, navegando em rios e lagos, adentrando na mata fechada, sem comunicação adequada, longe dos grandes centros urbanos. Isso, sim, é algo de grande mérito!

- Diversas Unidades de Conservação de âmbito federal e estadual foram criadas por influência do PQA e com objetivo de proteger a fauna de quelônios aquáticos, tais como: Reserva Biológica Trombetas (PA), Refúgio de Vida Silvestre Tabuleiro do Embaubal (PA), Refúgio de Vida Silvestre Quelônios do Araguaia (MT), Área de Proteção Ambiental Meandros do Rio Araguaia (GO), Reserva Biológica do Abufari (AM) etc.

- Através da articulação e empenho do PQA as ações de manejo e proteção aos quelônios foram inseridas nos Planos Básicos Ambientais (PBA) no processo de licenciamento dos grandes empreendimentos executados na sua área de abrangência, como: hidroelétricas, projetos de mineração etc.

- O PQA foi reproduzido em todos os estados de sua abrangência e em diversos municípios. Atualmente, existem vários programas estaduais e municipais protegendo os quelônios nos rios da Amazônia e na bacia Araguaia-Tocantins. Nenhum outro programa do ICMBio ou IBAMA foi replicado com tamanha intensidade e capilaridade. A dimensão do PQA e de seus programas parceiros é verdadeiramente colossal!

- Existem outros aspectos que tornam o PQA tão admirável. Ao logo de seus 40 anos, ele contou com participação gigantesca de variados atores sociais, com destaque para comunidades indígenas, assentados, ribeirinhos e quilombolas. É fácil envolver moradores de cidades em programas de conservação, mas, conseguir envolver comunidades rurais, com a mesma intensidade e diversidade que o PQA consegue é algo sem comparação.

- Não é só essa diversidade étnica e social de colaboradores do Programa que chama atenção. O PQA também tem uma facilidade enorme para mobilizar e atrair pessoas das mais diversas faixas etárias e gênero, desde crianças, adolescentes, adultos e velhos, bem como pessoas com deficiência e necessidades especiais. Isso acontece, especialmente, nas ações de soltura de filhotes, que são momentos extremamente lúdicos e educativos. Não é necessário ter pleno vigor físico e cognitivo para participar das atividades de soltura nas praias. Nem todo projeto possibilita essa ampla participação de homens e mulheres, das mais diversas idades e condições físicas/cognitivas. Por exemplo: o projeto de manejo e combate ao fogo (Prevfogo) desenvolvido pelo IBAMA/ICMBio é extremamente significativo e abrangente, mas não oferece a mesma possibilidade de integração alegre e festiva como ocorre no PQA.

- O PQA, em razão de suas qualidades e atributos, tornou-se um dos maiores agentes de formação e conscientização sobre os cuidados e respeito com a natureza. Recrutou e capacitou uma quantidade imensa de pessoas, voluntários, estudantes, líderes comunitários, agentes públicos etc. para tornarem-se multiplicadores de Educação Ambiental.

- A interação com as ações de pesquisa e conservação dos quelônios amazônicos é algo realmente especial! O contato com as pequeninas tartaruguinhas, tracajás e iaçás proporciona uma experiência ímpar, que fica marcada na memória e no coração por toda vida. Essa característica de envolvimento e encantamento com a natureza tem um efeito de promover mudanças nas atitudes e posturas em relação ao meio ambiente. O PQA oferece essa possibilidade de intensa interação com animais silvestres, que poucos projetos oportunizam.

- As ações de Educação Ambiental e manejo promovidas pelo PQA foram pioneiras em inúmeras localidades, tratando de temas diversos, promovendo mudanças de atitudes e comportamentos, fazendo com que muitos abandonassem a prática de atividades predatórias, bem como influenciando tantos outros na escolha/definição de suas carreiras e no direcionamento profissional e acadêmico.

- Os técnicos do PQA promovem mudanças nas pessoas e comunidades, recebendo de volta os benefícios positivos dessas transformações. É fundamental destacar essa característica subjetiva, que dificilmente é mensurada, mas que possui um valor grandioso. Isso pode parecer bobagem, mas quem milita na gestão e execução do PQA e demais projetos do RAN pode contar inúmeros relatos e estórias de pessoas que tiveram contato com os quelônios, em ações de educação ambiental e manejo, por exemplo, e que foram tocadas profundamente, mudando sua postura em relação à natureza. Um depoimento desses tem efeito extraordinário, pois contribui para que os agentes e gestores públicos deixem de lado as dificuldades pessoais e limitações institucionais, renovando suas forças e disposição para continuar batalhando em prol da proteção do meio ambiente. Os efeitos positivos desses acontecimentos sutis e não mensuráveis podem explicar, em grande parte, a paixão e dedicação de muitos ambientalistas que atuam no PQA. Não só do PQA, mas de todos aqueles que labutam com zelo e afinco nos órgãos de meio ambiente (IBAMA, ICMBio, FEMA, NATURATINS etc.).

Esses dados são parte de uma retrospectiva histórica, em especial das primeiras décadas dos trabalhos desenvolvidos. Contudo, vale ressaltar que existe ainda uma gama de outros resultados expressivos alcançados pelo RAN e parceiros em sua atuação relacionada a pesquisa e a conservação da herpetofauna, quais podemos citar:

- Em ações de relevância socioambiental realiza pesquisa, monitoramento e manejo de quelônios e crocodilianos para uso sustentável, com ações integradas, visando a organização e o desenvolvimento de uma nova cadeia de valores nas unidades de conservação federais de uso sustentável.

- Nas ações relacionadas às espécies ameaçadas o RAN coordena a avaliação do risco de extinção da herpetofauna continental brasileira e teve concluído seu primeiro ciclo (2009 -2014) com 1695 avaliadas, que resultou na publicação da Portaria nº 444/2014. Atualmente, encontra-se em execução o 2º ciclo de avaliação, que teve início em 2016, e finalizará em 2020, com avaliação de 1.922 espécies de répteis e anfíbios.

- Das 116 espécies ameaçadas de extinção (MMA 444/2014), 100% estão contempladas em Planos de Ação Nacional, com recortes regionais e biomáticos, muitas vezes multitáxons, com outros Centros, contando com parcerias em torno de 200 instituições para implementação das ações.

- Destaca-se também a pesquisa na ampliação das áreas de distribuição de espécies ameaçadas e com lacunas de conhecimento a exemplo das descobertas de novas populações do lagarto Placosoma cipoense, na Serra do Cipó, o cágado-da-paraíba (Mesoclemmys hogei), na Região Sudeste, o sapinho-narigudo-de-barriga-vermelha (Melanophryniscus macrogranulosus), na região Sul do Brasil, subsidiando com dados mais precisos a avaliação do estado de conservação dessas espécies.

- Atuação em mais de 100 unidades de conservação (UC), com inventários das espécies ocorrentes para subsidiar criação, planos de manejo, diagnósticos e análises dos efeitos negativos das espécies exóticas e invasoras à fauna local, com propostas de controle e erradicação; estudos sobre efeitos do fogo, de atividades antrópicas; atendimento a emergências ambientais; monitoramento no âmbito do programa monitora; ações de educação ambiental e capacitações voltadas à conservação da biodiversidade da UC, apoio de fiscalização, entre outros.

- Produção científica nos últimos 10 anos, 57 artigos, 137 publicações como capítulos de livros, livros, manuais, protocolos.

- Outra linha de atuação do RAN de grande importância é o Sistema de Informação em Biodiversidade (SISBIO) para atendimento e prestação de serviço aos pesquisadores quanto à concessão de autorizações de pesquisa e licença permanente, voltadas à herpetofauna, correspondendo o atendimento de 100% da demanda dentro do prazo.

- Não se pode deixar de citar também o cadastramento da série histórica de dados do monitoramento e manejo reprodutivo de quelônios provenientes do PQA, que foi unificada em um sistema de Gestão e Informação dos Quelônios Amazônicos (SisQuelônios), cujo banco de dados atualmente hospedado no IBAMA, necessitando de aprimoramento do sistema, em atendimento as exigências técnicas atuais, para o seu perfeito funcionamento.

Puxa, quanta coisa! Olha que estamos falando apenas brevemente. Imagina se formos detalhar e esmiuçar todas essas ações de pesquisa e conservação da herpetofauna que o RAN desenvolve. Que tamanho esse texto vai ficar?

Os gestores, técnicos e parceiros do RAN têm ou não têm motivos para se orgulhar e comemorar? Certamente que sim!

Tanto o PQA como o RAN passaram por várias etapas e transformações, vivenciaram mudanças estruturais e programáticas, modificaram suas nomenclaturas e vínculos institucionais (IBDF, IBAMA e ICMBio), entretanto, preservaram aspectos valiosos e suas essências.

O RAN tornou-se mais pragmático/burocrático e menos idealista/romântico, tendência que acompanhou todas as demais políticas públicas do governo federal. Reestruturou suas prioridades e amplificou suas ações, deixando o foco exclusivo dos quelônios amazônicos, ampliando o leque de atuação a totalidade dos répteis e anfíbios.

Se a missão do RAN em proteger os “bichos de casco” já parecia demasiadamente ousada, imagina, então, propor abarcar essa enorme miscelânea de animais (jacarés, lagartos, cobras, sapos, pererecas, salamandras etc.). Essa proposta foi considerada por muitos a declaração de total loucura institucional. Contudo, felizmente, o ceticismo e a descrença se mostraram infundadas.

O RAN conseguiu dar uma resposta à altura aos críticos e pessimistas, alcançando inumeráveis resultados positivos, o que se deve em grande medida a dedicação de um grupo de profissionais aguerrido e apaixonado. Isso mesmo! Não pense que a paixão foi totalmente substituída pela fria razão e o chato tecnicismo.

O fervor passional ainda está presente, bem presente, mesmo que de um jeito diferente, mais contido e discreto, mas está aí, como uma força motriz, fazendo a diferença na obtenção de frutos valorosos, como acontecia nos primórdios do PQA e CENAQUA.

O RAN possui uma equipe técnica extremamente competente e qualificada que é referência para outras instituições. Gostaríamos de citar todos os nomes das centenas de profissionais que deram contribuições relevantes, mas tornaria demasiadamente extenso o presente texto.

Diz o ditado popular que a vida começa aos 40. Certamente que há ainda muito a fazer em prol da pesquisa e conservação dos répteis e anfíbios brasileiros.

Se depender da bela história desse quadridecênio do RAN, podemos afirmar com total certeza que as próximas décadas serão de valiosas e imensuráveis realizações.

Parabéns a todos os dedicados e apaixonados ambientalistas que fizeram parte dessa conquista!

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Palmas - TO, Julho de 2020.

Giovanni Salera Júnior

E-mail: salerajunior@yahoo.com.br

Rafael Antônio Machado Balestra

E-mail: rafael.balestra@icmbio.gov.br