DO CEARÁ VEIO, PARA O CEARÁ VOLTARÁ

Minha tia Rita, quanta saudade...

Hoje é 14 de agosto de 2021, são exatamente oito horas e trinta e sete minutos, um dia depois de uma sexta-feira treze. Resolvi escrever algo sobre ela, que é cearense e também nasceu naquele pedaço de chão em que meu pai nasceu, eles até são da mesma família apesar de serem primos de terceiro grau.

Como a maioria dos cearenses também transpirava diuturnamente o bom humor sarcástico em qualquer situação, acho que muitas vezes isso era uma forma de atenuar seus sofrimentos e angustias.

Digo saudade, porque ela nos deixou a uns dois anos atrás, fez a passagem em uma manhã de domingo. Morava em uma pequena casinha em sua terra natal e depois de trocar mensagens através de redes sociais no celular com amigos, dormiu o sono do para sempre sentada em uma cadeira de balanço. Que Deus a tenha em um bom lugar.

Muitas vezes conversei com ela e me lembro que sempre que tocávamos em um assunto, assim como o meu pai, ela saia com uma historinha relacionada a nossa proza. Outro dia comentávamos sobre as religiões que guardam o sábado e as pessoas que não trabalham e nem pegam em dinheiro neste dia.

Foi aí que num estalo ela disse:

- Vou contar pra você o que me aconteceu uma vez, com uma amiga que eu tinha e que revendia roupas e bijuterias.

Ela então me contou que havia comprado algumas peças de roupa a prazo, e que sem se aperceber que sua amiga guardava o sábado, foi até sua casa para fazer o pagamento de uma das parcelas. Segundo ela, ao dizer que estava ali para pagar uma conta, sua amiga foi logo lhe dizendo:

- Rita minha querida, me desculpe, mas hoje eu não pego em dinheiro, minha religião não permite.

Ao ouvir aquilo, minha tia disse que resolveu então fazer um esclarecimento para que sua amiga ficasse ciente do que poderia acontecer com aquela recusa.

Tia Rita disse que foi bem clara e explicita dizendo-lhe:

- Ouça bem o que vou lhe falar; - eu tenho outras contas para pagar, na verdade eu tenho mas contas do que dinheiro para pagar; - então fique sabendo que se outra pessoa que devo, chegar lá em casa até amanhã para me cobrar, se eu tiver dinheiro eu pago.

Qual a reação dela, perguntei-lhe em seguida e a tia me disse:

- Rapaz quando eu falei para ela isso, ela me pegou pelo braço, não tive tempo nem de tirar as sandálias para entrar de casa a dentro e já foi me levando até a porta da cozinha, levantou um tapete que havia na entrada, e me disse:

- Rita minha fia, coloque esse dinheiro aí em baixo que amanhã eu pego.

Sempre que tia Rita e seu Valdemar se encontravam nos almoços ou aniversários de família, eu procurava ficar próximo dos dois, atento e ouvindo suas histórias principalmente as que falavam do Ceará. Foi em uma dessas conversas e depois da tia ter passado uma temporada por lá, que ouvi seu Valdemar lhe perguntar:

- Hô Rita, me conta como tá aquele pessoal que era bem de vida naquele tempo? Aquele povo meio metido a rico.

E ela com um jeito irônico foi logo dizendo:

- Valdemar ali não tem ninguém rico não, eles não sabem nem o que é ser rico.

E completou;

- O mais rico dali, quando é domingo compra 200 gramas de carne pro almoço dele e da mulher e a filha que mora com eles com dois filhos que o pai abandonou.

O que mais me faz rir é o jeito que eles dialogam, não existe um sorriso, isso tudo eles contam bem serio como se verdade fosse.

A desgraça daquele povo já estava grande, mas não há nada que esteja ruim que não se possa piorar, é bem ai que o pai então entra em cena e passa a descrever a trajetória daquele rico até chegar em sua casa com aquele pedaço de carne:

- Então não mudou nada daquele tempo pra cá disse ele; - eu me lembro que eles iam no açougue e compravam aquelas 200 gramas de carne, e o açougueiro fazia um furo na carne porque não tinha sacola pra colocar, ele enfiava o dedo naquele furo e saia bem devagarinho pra todo mundo ver que ele tinha comprado carne, no caminho pra casa ele passava naquela pracinha da igreja e procurava um conhecido para ficar conversando, sempre com aquele pedaço de carne no dedo, depois de mais ou menos uma hora ele resolvia ir pra casa.

Antes de minha tia viajar para o Ceará onde não haveria de voltar, a levei para passar um domingo com meu pai, ela já em uma cadeira de rodas, pois não conseguia passar muito tempo em pé, meu pai com suas limitações no braço esquerdo, sequelas do AVC. Me emociono ao me recordar; os dois se despedindo no portão, com um aperto de mão e um quase abraço, confesso que como se fosse um pressentimento algo me dizia que aquela era a última vez que aqueles dois se encontravam, mesmo que depois de ter entrado no carro de minha irmã minha tia ainda tenha dado aquele aceno e dito:

- Vou te esperar lá Valdemar pra gente se encontrar com aquele povo.

Elton Portela
Enviado por Elton Portela em 17/08/2021
Reeditado em 16/07/2023
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