AS PORTAS ESTARAM SEMPRE ABERTAS PODE VIR QUANDO QUIZER

Acredito que nem mesmo fazendo um esforço hercúleo conseguiria lembrar as vezes que ouvi esta frase dita por meus pais, quando acompanhavam até o portão de casa, algum parente ou amigo ou amigo dos parentes ou até conhecido dos amigos, depois de tê-los como hospedes por um dia ou alguns dias. Da parte de minha mãe sei que eram ditas de coração o que não posso afirmar em alguns casos por meu pai, para que não cometa injustiça ou mal julgamento, digamos que ele falasse com ressalvas ou condicionantes, sempre havia um certo resmungo, tipo:

- Rapaz como é que pode um cabra desses do interior, vir pra cidade passar esse tempo todo na casa dos outros, comendo, bebendo e dormindo, e não ter coragem de trazer meia lata de farinha, ou meia saca de macaxeira!? Que não trouxesse uma galinha mas que pelo menos comprasse um galeto ou um pedaço de carne pra ajudar na bóia.

As visitas destes parentes aconteceram até meados dos anos 80, pra ser mais preciso até 1986 quando nossa mãe nos deixou.

A origem de tudo se dá quando a família de minha mãe, depois de migrarem do Ceará no Nordeste para um pequeno município no norte chamado Mucajaí e que pertencia ao antigo território de Roraima, ali viveram até que ela e mas um casal de irmãos encontrassem suas cara metade.

Cidade pacata onde todos se conhecem e possuem laços de amizades e também intrigas. Quando adolescente e já sabendo ler e escrever, como naquele filme “Central do Brasil”, ela lia as cartas que chegavam aos moradores, amigos e parentes e de quem à lhe procurasse, também escrevia as respostas para serem postadas nos correios. A diferença para o filme é que não cobrava o dizimo e nem ficava com o dinheiro das postagens, que tornariam assim, as cartas, simplesmente palavras ao vento.

Seu Valdemar também migrante do Ceará mas que passara algum tempo no Amazonas, conhece minha mãe e ao conhece-la, passa a compartilhar amizade com todos que faziam parte do círculo de amigos e conhecidos da família. A maioria conterrâneo nordestinos, pessoas humildes que viviam da agricultura.

Sete anos após o casamento de meus pais, eles já haviam passado por três estados e quatro municípios, e ao retornarem para Roraima agora estão morando na capital Boa Vista, nesta época a família já havia crescido e a prole já podia se contar 3 filhos e 2 filhas.

Com muito sacrifício e juntando todas as migalhas inclusive se desfazendo de um imóvel em Manaus/AM, seu Valdemar conseguiu construir nossa casa. Chegamos ao nosso lar doce lar, nem tanto doce assim como me refiro, pois as portas e janelas eram improvisadas, o piso no cimento cru ou aguada como se dizia na linguagem dos pedreiros, a cerca por fazer, além do bairro, da rua e do número, nosso endereço também tinha um ponto de referência que até para um cego seria difícil de não chegar em nossa casa, estava localizada exatamente em frente das traves de um campo de futebol de um dos times que disputava o campeonato local.

Quando criança e até mesmo na adolescência acreditava que éramos privilegiados e aquele campo pra mim era a coisa mais bacana que poderia existir na frente de uma casa, mas com o passar dos anos e percebendo que minhas habilidade com o futebol não correspondia as expectativas nem como um jogador reserva de quinta categoria, passei a achar que se naquele campo houvesse casas teríamos mas amigos e vizinhos quem sabe aquela alma gêmea que se procura e deseja não estaria morando ali.

Apesar de nosso bairro hoje está praticamente no centro da cidade, costumo dizer a todos meus amigos da velha guarda, que o Bairro de São Vicente, até meados e final dos anos 90, era o bairro mais importante de nossa cidade, pois quase tudo estava lá. Me refiro ao:

- Maior mercado, que era o Romeu Caldas de Magalhães.

- O melhor embalo dos sábados à noite, Studio 55.

- Se alguém comete um crime ia para o São Vicente, pois estava lá a única penitenciaria.

- Se for viajar para perto ou longe a rodovia também ficava lá.

- Se fosse viajar para bem longe para nunca mais voltar, teria que ir para o São Vicente, pois lá estava localizado o único cemitério.

Voltando a origem deste texto em homenagem a seu Valdemar, o tempo passa e o tempo voa e já se foram quase duas décadas desde que meus pais se casaram, aquelas pessoas que conheceram no interior, hoje são seus compadres ou amigos de longas data.

Muitos destes seus compadres quando vinham para capital, chegavam em caminhões da feira do produtor, junto com seus produtos que traziam para comercializar, outros vinham de ônibus ou carona, quando precisavam resolver algo geralmente se falava em um documento do INCRA que tinha que pegar ou mesmo resolver problemas de saúde, muitas vezes o destino era um só a casa do compadre Valdemar.

No começo só eram os compadres e amigos de meus pais, mas com o passar do tempo passamos a ter também como hospedes, os compadres de seus compadres e os amigos de seus amigos. Uma vez seu Valdemar depois de receber em casa, mas um hospede, desta vez seria um conhecido de seu primo que morava no interior, me disse com aquele seu jeito engraçado e com a habitual facilidade para descrever com requintes de detalhes e sempre, digamos, não mentindo, mas turbinando a verdade em toda sua plenitude e nuances:

- Meu filho, eu fico imaginando meu primo passando meu endereço pra esse senhor que acabou de sair daqui de casa, depois de passar quase uma semana, e que eu nunca vi na vida. Meu primo com aquele jeito bacana deve ter falado pra ele; - Olha compadre tu não te preocupa onde tu vai ficar lá em Boa vista, que eu tenho um primo lá e você vai ficar é na casa dele. O compadre dele deve ter falado pra ele; mas rapaz teu primo nem me conhece. Acho que ele nem esperou o compadre terminar de falar e já deve ter dito; - Deixa de besteira! O meu primo é muito gente boa, abasta tu dizer que foi eu que te mandei que ele já vai conseguir na hora um lugar pra te armar tua rede. O rapaz deve ter dito pro meu primo; - tá bom já que é assim, se der pra você anotar num papel o endereço dele já facilita pra mim, quando eu chegar lá pego um taxi e mostro o endereço ele vai bater lá na casa do seu primo. Nessa hora meu primo deve ter dito pra ele; - Não faça isso! Não precisa pegar taxi coisa nenhuma, você vai chegar lá, vai atravessar a BR que fica em frente da rodoviária e vai perguntar da primeira pessoa que você ver, onde mora Valdemar o taxista do corcel vermelho, ali todo mundo conhece ele, mas se de repente a pessoa que você perguntou não conhecer, você faz o seguinte, pergunta onde fica o campo do São Raimundo, pronto você tá em casa, dai de onde você tá até o campo você gasta uns dez minutos se você for de joelhos, a casa dele fica em frente do campo.

Muitas coisas aconteceram neste tempo com relação ao nossos hospedes, algumas hilárias, outras sem explicação e não aceitável para os padrões de meu pai. Tentarei usando o poder de sintaxe descrever uma de cada:

Primeiro a hilária, e para ser hilária tem que ter velhinho ou velhinha. Havia uma senhorinha já bem idoso que sempre que ia se consultar com um médico ou tratar de algo relacionado a sua aposentadoria, batia na porta de casa, apesar de nossa casa ter um quarto para os meninos e outras para as meninas, a velinha era colocada no quarto dos meninos, acredito que por se tratar de uma senhora que usava um vestido longo com dois bolsos, sendo um para o fosforo e outro pro papel e tabaco, ela tanto fumava como mascava, então para não empreguinar aquele aroma de arapiraca no quarto ou nas meninas, ela dormia em nosso quarto.

Em uma dessas estadias da velinha, meu irmão, o do meio como sempre, chegou para mim e disse:

- Mano eu vi uma coisa que essa velha faz que tu não vai acreditar.

Perguntei o que foi que ele tinha visto e ele foi logo me dizendo:

- Presta atenção na velinha na hora que a mãe colocar o almoço, ela sempre é a que chega primeiro e a última que se levanta, mas eu quero que tu preste atenção quando ela estiver colocando o prato, a velha pega um bife coloca no prato, joga o feijão o arroz e a farinha por cima e de novo pega outro bife coloca por cima.

De fato, era exatamente assim que a velinha se servia, não consegui guardar segredo e contei para o pai, ele riu e disse que ia ver se era verdade.

Colocado o almoço na mesa, lá estava a velha como sempre já uns dez minutos sentada em seu lugar, enquanto minha mãe trazia os pratos pra mesa, seu Valdemar só observando. Quando a senhorinha terminou de colocar o prato o pai lhe perguntou se ela estava ficando esquecida.

Ela quis saber porque:

Ele então, lhe disse que já havia colocado o bife debaixo da comida.

Ela então deu um gritinho e devolvendo o bife falou:

- É mesmo Valdemar, eu acho que é a idade.

Meu irmão então disse bem baixinho:

- Eu também acho que é a idade, todo dia a mesma idade.

No outro caso aquele sem explicação, trata-se de um compadre, que até hoje não sei se ainda está vivo e se vivo, ainda considera meu pai como seu compadre. Esse senhor era daqueles que como dizia meu pai, vivia em um lugar onde nada que se plantasse dava, ele falava isso porque jamais trouxe a farinha ou mesmo a macaxeira. Ao chegar disse que ficaria uns quatro dias no máximo, seria o tempo suficiente para resolver todos os problemas que lhe traziam a cidade. Passados uns seis dias seu Valdemar começou a observar que ele nem mesmo saia de casa, foi quando resolveu lhe perguntar se já havia resolvido tudo. Ele pacientemente lhe respondeu que sim e que teria dado tudo certo. Foi bem aí que o pai começou a abrir a casinha dos cachorros, e lhe perguntou se não se preocupava com seus filhos e sua mulher que haviam ficados sós no meio do mato, e porque ainda não havia retornado pra sua casa.

Deveria ser terça ou Quarta-feira e Seu compadre com jeitinho lhe respondeu:

- Valdemar sabe o que é? – Eu estou acompanhando essa novela que está passando, e como você sabe no interior não tem televisão, ela vai acabar sexta-feira e eu tô pensando em ficar até sexta-feira e viajar sábado de manhã, e quanto ao pessoal lá, pode ficar tranquilo que lá é sossegado.

Foi bem aí que o pai soltou de vez os cachorros pra cima do compadre, olhando bem serio pra ele lhe intimou dizendo:

- Meu compadre eu tenho muita consideração pelo senhor, mas vou lhe pedir uma coisa e quero que você me atenda.

E continuou:

- Amanhã bem cedo o senhor tome um cafezinho, pegue sua bolsa e procure o caminho de casa porque isso não é motivo pra um pai de família tá longe de casa. Eu vou pedir pros meus filhos prestarem bastante atenção nesse último capítulo da novela pra quando o senhor vier de novo por aqui eles lhe contarem.

Elton Portela
Enviado por Elton Portela em 13/08/2022
Reeditado em 15/07/2023
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