TEATRO - A ESCOLHA DE UM LÍDER

A Escolha de um Líder

Introdução:

Os anjos do Departamento de Harmonia e Ordem do Céu (DHOC) estão reunidos. Todos estão apreensivos, é que não param de chegar reclamações de toda parte do Paraíso. São várias queixas com relação aos animais que constantemente tiram a paz do ambiente que foi preparado para uma paz eterna. São discussões constantes, todos querem se intitular o chefe dos demais, o que acarreta falatórios e algazarra. E nessa auto-afirmação provocam grande alarido e desmando, tirando a paz dos anjos guardiões.

Assim, o Conselho Maior de Departamentos (CMD) convoca uma reunião para buscar a solução. Depois de muitas horas de debates, foi deliberado que o problema teria que ser definido na Terra e não no Céu, pois ali não era lugar de discussões, debates e política.

Foi determinado que um dos Anjos Guardiões teria que visitar a Terra e entrevistar cada animal, fazer uma rigorosa avaliação e trabalhar politicamente (na Terra pode) para que fosse escolhido, democraticamente, o verdadeiro líder que ficaria à frente de todos os animais, passaria a ser, então, o líder e representante de todos animais.

Para dar início à grande escolha, foi publicado, em local bem visível da floresta, um edito de convocação, onde cada um dos candidatos deveria apresentar-se diante dos anjos e procurar fazer sua própria defesa como candidato, tentando assim convencer sua plena condição de ser um verdadeiro líder.

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A Escolha de um Líder

CENA I

Ao abrir-se o pano vê-se um anjo sentado a uma mesa (de nobre aparência) e sobre essa mesa observamos pilhas de papéis; à esquerda dois aparelhos de telefone de cor branca e à direita (um pouco afastado) um de cor vermelha. No centro da cena, atrás do anjo, na parede, encontra-se um pequeno cartaz onde se lê:

DEPARTAMENTO DE HARMONIA E ORDEM.

O anjo, bastante estressado, passa a manusear e carimbar alguns papéis, resmungando algo ininteligível.

Um dos telefones que se encontram perto do personagem toca.

Um pouco contrariado, o anjo olha para o telefone sem atender e diz de si para si:

Anjo:

-Já sei que vem mais problema! É sempre a mesma reclamação (em falsete) “Esses animais estão tirando a paz do Céu!” - “O ambiente de paz deve ser preservado!”.

Após insistente tocar do telefone, resolve atender.

Anjo:

-Alô, Mikael falando! (E logo emendando a frase que já está gravada em sua mente de tanto repeti-la). Seu problema será solucionado!

Do outro lado da linha telefônica: (somente se ouve a voz).

Adão:

-Aqui é o Adão. Já ouvi esta resposta! (também em falsete) “Seu problema será solucionado”. É a centésima vez que ligo e sempre a mesma resposta. Você pensa que é fácil suportar as queixas da minha mulher? Ela vive dizendo que não suporta mais ouvir a barulheira feita pelos animais que constantemente tiram a paz do ambiente - e nisso ela tem razão - havemos de concordar que isto aqui foi feito para termos uma paz eterna, mas não, são discussões constantes, falatórios e algazarra, é um tal de cada um se intitular o chefe dos demais.

Anjo: (com voz solene)

- “No princípio Deus criou o céu e a terra. Ora a terra era solidão e caos, e as trevas cobriam o abismo; mas Deus...”

Adão: (interrompendo e completando)

- Sim, eu sei que Deus foi formando a terra a cada dia de sua criação, dando forma à natureza e disse Deus: “Fervilhe as águas de animais viventes e as aves voem por sobre a terra diante da abóbada do céu. E Deus criou os grandes cetáceos e todos os animais vivos rastejantes dos quais fervilharam as águas, segundo a sua espécie. E Deus viu que estava bem feito e abençoou-os...”

Anjo - (interrompendo e aproveitando para argumentar)

- “E Deus viu que tudo era bom!”.

Não vejo onde há motivos de reclamação, se Deus criou um casal de cada espécie, macho e fêmea e ordenou que se multiplicassem. Foi o que prontamente fizeram!

Adão - (apresentando certo nervosismo na voz)

- Sim, sim, já-já, meu bem! Alo! Mikael! Minha esposa deseja falar com você, vou passar para ela.

Eva:

-Alo Mikael! (voz mansa) Você lembra quando isso aqui era chamado de Paraíso?

Mikael:

-Claro como poderia esquecer. Tudo foi feito para funcionar na mais perfeita ordem (dando mais ênfase à voz) e temos que admitir que o Criador se empenhou ao máximo naqueles dias e tomou todas providências para que tudo funcionasse com plena harmonia. E foi assim que no sexto dia Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme nossa semelhança...”. A criação do homem foi como que o remate da sua grandiosa obra e “Viu que tudo era perfeito”. E Disse o Senhor Deus: - “Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliar”. Então o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono, e enquanto ele dormia tirou-lhe uma costela e formou uma mulher e apresentou-a ao homem. E o homem disse: - “Desta vez é carne de minha carne e osso dos meus ossos; ela chamar-se-á mulher, porque foi tirada do homem”. Lembra-se disso?

Eva:

-Claro que lembro! Como iria esquecer? (voz sonhadora) Oh! Que romântico! Aquilo era realmente o paraíso.

Mikael: (de forma incisiva e enérgica).

-E por falar nisso, você e seu marido estão lembrados das observações e orientações feitas pelo Criador para que as coisas fossem usufruídas sem nenhum problema?

Vocês foram criados para viverem e aproveitarem de toda criação. Mas não ficaram satisfeitos... Tinham tudo, mas queriam mais e...

Eva: (interrompendo a conversa, com voz chorosa).

-Por favor, falemos de outra coisa. Aliás, meu marido ligou para fazer uma reclamação, não vamos nos perder em lembrar o passado e fugir do problema.

Mikael: (já com pouca paciência)

-Volto a repetir, (com voz firme e cadenciada) — Seu problema será solucionado! (Desligando logo em seguida, passando a se ocupar de seus afazeres).

Após um breve intervalo, o outro telefone, à sua esquerda, passa a tocar insistentemente. Mikael olha para o telefone, olha para os papéis, como que esperando que o telefone mudasse de idéia e parasse de importunar. Mas, como permanecesse a tocar, resolveu atender.

Mikael: (de forma ríspida)

-Alô! Departamento de Harmonia e Ordem. Mikael falando! (e logo emendando) —Seu problema será solucionado!

(Do outro lado ouve-se uma voz, mansa e bondosa).

-Alô Mikael! Como vai o meu grande amigo?!

Mikael: (com cara de espanto, afastando um pouco o fone).

- Amigo? Você falou amigo? Pois saiba que é a primeira pessoa nestes últimos dias que me chama de amigo! Todos só querem reclamar, reclamar, reclamar. Mas..., não estou reconhecendo a voz!

A voz: (de forma mansa e tranqüila)

-Aqui é o Noé. Não estou ligando para reclamar, pelo contrário, estou ligando para pedir.

Mikael: (com a mão no fone, tentando abafar sua voz, e como se fossem seus próprios pensamentos) — Quem não liga para reclamar, liga para pedir — será diferente?

Noé: (cada vez mais bondoso, continua).

-Sim meu amigo, é que estou sabendo que todo mundo está reclamando da algazarra dos animais, e minha preocupação é que algum deles sofra alguma violência. E quero pedir sua proteção para os pobrezinhos.

Mikael: (agora demonstrando grande alegria)

- Meu grande amigo Noé, que prazer em ouvi-lo!

Noé: (com humildade de quem não quer ser inconveniente)

-Pois é, você sabe como os animais são importantes para mim, aliás, é minha obrigação cuidar deles, — sabe..., são as ordens do Senhor...

Quanto a mim, sempre obedeci ao Senhor ao pé da letra. Lembro-me muito bem quando o Senhor disse: - “Fazei para ti uma arca de madeira, dividi-la-ás em compartimentos e untarás de betume por dentro e por fora... vou mandar o dilúvio...”

Mikael: (Já preocupado, prevendo o tempo que teria de perder para ouvir toda a história que já conhecia com profundidade, mas por ter grande admiração pela bondade de Noé, deixou-se levar pelas suas narrativas).

-Sim Noé, eu sei que sempre estivestes na presença do Senhor e atento em fazer o que lhe era ordenado. Aos olhos do Senhor sempre foste conhecido como um homem justo, o mais íntegro, entre seus contemporâneos. Sabemos que a terra estava corrompida aos olhos de Deus, e cheia de perversidade. E Deus disse para ti, Noé: -“Para mim, chegou o fim de todos os mortais, porque a terra está cheia de delitos por causa deles; e eis que eu os exterminarei...”

Noé: (prosseguindo em sua narrativa)

-Você sabe como foi difícil levar adiante a tarefa que me fora confiada. Primeiro tive que convencer a minha própria família - que trabalho meu amigo! - que trabalho! Todos se sentiam envergonhados pelas chacotas dos vizinhos. Ninguém aceitava a estranha idéia de construir um navio num lugar onde não existia muita água, nem um rio, e o mar estava a mil milhas distante. Portanto, não tínhamos a menor experiência sobre construção naval. Foi realmente uma difícil tarefa.

Mikael: (interrompendo)

- Ora, meu amigo Noé, Deus sempre capacita aqueles que escolhe para uma difícil missão.

Noé: (como perdido nos próprios pensamentos e recordações, continua).

-Ainda hoje lembro as palavras do Senhor quando me ordenou executar o plano que tinha em mente: -“...vou mandar o dilúvio. Contigo, porém, faço aliança: entrarás na arca com teus filhos, tua mulher e tuas noras. De todos os seres vivos introduzirás na arca, dois de cada espécie — macho e fêmea — para conservá-los vivos contigo”.

(Agora com a voz mais animada) - Foram dias de grande fadiga, mas eu não podia desapontar o Senhor em seus planos. Tão logo ficou pronta a arca embarcamos, eu, minha família e os animais. O dilúvio caiu sobre a terra durante quarenta dias e quarenta noites. As águas inundaram tudo com violência, e cobriram toda a terra, e a arca flutuava na superfície das águas.

(Após um pequeno intervalo no falar, como se estivesse antevendo a cena, Noé continua sua narração detalhada e minuciosa).

-Findo os dias de chuva, determinado pelo Senhor, lembrou-se Ele de nós e de todas os animais que estavam conosco na arca e fez soprar um vento sobre a terra e as águas baixaram. Foi quando abri a janela que havia na arca e deixei sair um corvo. O pobre animal foi em busca de lugar seco para pousar, não encontrando pôs-se de volta para o conforto de nossa arca.

- E assim, passados mais alguns dias, voltei ao mesmo processo de experiência, só que desta vez soltei uma linda pomba branca, a qual, porém, não achando onde pousar o pé, voltou a mim muito assustada, porque ainda havia muita água sobre a terra. Aguardei outros sete dias e de novo deixei-a sair. Ao entardecer, para minha grande alegria, ela voltou, trazendo um ramo de oliveira no bico. Pude então constatar que a água agora era pouca sobre a fase da terra. Todavia, por prudência, deixei passarem outros sete dias e tornei a soltar a pombinha, que desta vez não retornou.

Mikael: (interrompendo).

- Realmente, o Senhor tinha escolhido a pessoa certa. Zelo e prudência são características que nem todos as têm!

Noé: (prossegue, com toda calma e detalhes).

- Então eu disse aos meus filhos Jafé, Sem e Cam: - Vamos sair da arca, nós, nossas mulheres e todos os animais. Pois, segundo a vontade de Deus, a arca deverá parar no cimo de uma montanha, desceremos e pisaremos em terra firme, porque o Senhor já cumpriu a sua promessa, quando me disse: -“Resolvi dar cabo de toda carne; o mal domina a terra, quero fazer perecer os homens” - Pois agora já se cumpriu a promessa do Senhor e todos os homens pereceram. Tornaremos a descer a terra e ali viveremos no seio da paz da concórdia.

- Com a arca ainda a boiar sobre as águas, abri a portinhola do teto e meus olhos puderam alcançar o céu e pus-me a meditar sobre as obras do Senhor. Meus devaneios então foram interrompidos pelo som das vozes de meus filhos que vinha do interior da arca: - “Seremos os únicos na terra, e toda a terra será nossa. Todas as árvores nos darão os frutos, a vaca o leite, a ovelha a lã, o sol nos dará toda claridade e a noite todo o repouso, enfim, seremos donos de tudo ao nosso redor!”. E dispuseram a discutir como seria a vida de cada família a partir de então. Fizeram planos em viver em tendas separadas, onde cada qual faria o que lhe parecesse melhor. Plantariam, caçariam, lavrariam a terra etc... Mas, à medida que se empolgavam com as possibilidades de expansão no futuro, puseram a imaginar limites de território para cada um. E a discussão ganhou volume, cresceu, evoluiu. Já falavam até em levantar um muro para proteger suas terras para que não houvesse violação a propriedade alheia.

Então à medida que aquelas vozes e discussões chegavam aos meus ouvidos, provocavam-me indignação. Dirigi-me ao local onde se encontravam meus filhos, que continuavam em franca a calorosa discussão. Ordenei que dessem um basta àquela briga para não serem indignos da salvação e merecedores do castigo que atingiu os outros homens. E disse mais: - ainda não possuem a terra e já estão traçando e brigando por limites. Pois saibam que antes de descer da arca não quero qualquer ajuste.

(Novo intervalo no falar como se estivesse perdido em passado remoto)

Noé: (Voltando à realidade do presente, prossegue com voz embargada).

-Meu caro Mikael, que tristeza me acometeu tal fato. Que tristeza! Meus próprios filhos... Quanta ganância... Quanta discórdia....

Mikael — (interrompendo, pois percebera a tristeza na fala de Noé, e levando em conta que quando o assunto são os filhos, a conversa sempre se estende, retomou a palavra).

- Ora, meu bom Noé, são águas passadas! (risinhos, por conta do trocadilho). Nossos filhos sempre serão nossas crianças. Seu problema será solucionado, terei todo carinho e cuidado com seus animais. Um forte abraço e recomendações à família. (desligando em seguida).

Mikael volta à rotina de seu trabalho, mais carimbadas e assinaturas, só que desta vez mais calmo e até mesmo um pouco distraído, como que a refletir sobre os fatos que havia ouvido do seu último interlocutor.

Nesse momento toca o telefone afastado, à direita, aquele de cor vermelha. O toque do telefone arranca-o dos devaneios. Atento, apura os ouvidos, como que para certificar-se da realidade. Ao terceiro toque vence o receio. Com as mãos um pouco trêmulas, atende.

Mikael: (com a voz embargada)

-Pois não Senhor! (sem saber se deve benzer-se ou bater continência, “diante” da mais elevada Autoridade, atropelando-se no falar).

-Sim, Senhor! O nosso Departamento está atento às reclamações. Já convoquei reunião com os demais membros para chegarmos a uma solução.

- Não se preocupe, Senhor, o problema será solucionado! (um tanto receoso de ter soltado o chavão). Tomaremos todas as providências necessárias. Farei relatório e prestarei contas de todas as ....

Não houve tempo de maiores explicações, o interlocutor já havia desligado. Mikael sente-se aliviado, porém, muito mais apreensivo com relação ao grande problema que tem pela frente para solucionar.

Após relaxar por alguns segundos, pega um dos telefones à esquerda e põe-se a discar. Aguarda com impaciência que atendam.

Mikael¬

- Alô! Ariel? É Mikael falando. O Chefe acabou de ligar. Estava uma fera. Nunca o vi com tamanho mal-humor.

- Alô! Como, que Chefe?!

(cada vez mais nervoso e impaciente)

- Acorda criatura! Não vai me dizer que também esqueceu de nossa reunião? Afinal, foram horas e mais horas reunidos para chegarmos a uma solução com relação às reclamações dos animais barulhentos. Lembra? Ou já se esqueceu? Pois é, o Chefe não esqueceu e já está bastante contrariado pela nossa demora em solucionarmos o problema e exige uma solução urgente.

- Como já havíamos concluído naquela bendita reunião, realmente trata-se de uma saída política. Mas não devemos nos esquecer que o Céu não é lugar de política e políticos. Realmente, temos que encontrar um líder para organizar essa algazarra, mas isso deverá se dar na Terra, pois implicará em discussões e debates. Teremos que fazer rigorosa avaliação de cada pretendente.

(Já mais calmo, prossegue).

- A coisa é séria meu caro Ariel. Não dá para ficarmos adiando.

De certa forma eu acho até que vai ser muito bom, uma viagem para a Terra, será divertido, estou precisando mesmo de umas férias, é a oportunidade de me afastar desses telefones que insistem em tocar, dessas papeladas que não param de chegar e que tenho que examinar com minúcias.

Pois saiba, caro Ariel, estás convocado para essa nobre missão! Partiremos em breve, sim, nós e também Zarias. A situação requer paciência e Zarias é a pessoa certa.

CENA II

Abri o pano vê-se um tronco de árvore com um grande cartaz onde se lê (com grandes letras):

CONVOCAÇÃO. Ficam todos os animais convocados a participarem de um debate e posterior eleição para ser escolhido o líder dos animais que irá representar os demais etc, etc.... (e continua, só que as demais instruções com letras bem pequeninas).

Uma coruja se aproxima do cartaz. Coloca os óculos. E põe-se a ler atentamente o texto.

Após alguns minutos de leitura e reflexão, solta alguns murmúrios:

Coruja:

-Hum! Líder?! Hum! Quem sabe?! Quem Sabe?!

Com ar de superior, segue seu caminho, sempre murmurando.

Logo em seguida, aproxima-se um coelho. Vem em desembalada corrida. Ao ver o cartaz, pára bruscamente e põe-se também a ler com grande interesse.

Coelho:

- Hum! Líder?! Será que finalmente terei oportunidade de mostrar meus dotes de liderança? Não custa nada tentar. Serei candidato. Ah! Serei. Mas antes, irei espalhar as noticias, quem sabe não consigo alguma torcida. Na hora da escolha uma boa torcida e alguma influência não fazem mal a ninguém. E continua em disparada carreira.

CENA III

Sobe a cortina. Vê-se aparecer uma comprida mesa com três cadeiras posicionadas em forma de assembléia, sendo a do centro com espaldar mais alto, como que para ser destacada. Sobre a mesa, em frente às cadeiras, pequenas plaquetas com o nome de cada ocupante. Um pouco mais para ponta da mesa, à esquerda, encontram-se mais duas cadeiras, sendo que estas mais simples.

Também um pouco afastada da mesa, à direita, vê-se uma pequena e simples tribuna.

Os anjos entram. Vão ocupando seus lugares. Ao centro, senta-se Mikael, à direita Ariel e à esquerda Zarias.

Mikael dirige-se aos companheiros, num breve cumprimento.

Mikael: (com certa solenidade)

- Bem, irmãos e companheiros de labuta, muito me alegro que tenham aceitado a nobre incumbência que nos foi solicitada.

Os dois anjos retribuem ao interlocutor com um sorriso amigável.

Mikael: (continuando em tom baixo, como quem conta um segredo).

- Além de nos livrarmos de todas aquelas reclamações, ainda podemos gozar de umas merecidas férias.

Mal acabara de proferir essas palavras, entra em cena uma cobra. Esguia e sinuosa, lançando olhar astucioso, aproxima-se da mesa, provocando certo embaraço entre os anjos que, em sentido de defesa, põem-se de pé.

Mikael: (Demonstrando sua liderança e tomando a palavra)

- Antes de mais nada, devo avisar, que aqui não é lugar para serpentes provocadoras! (E apontando para o cartaz, que continua fazendo parte do cenário). Trata-se de uma convocação para escolher um líder entre os animais. A escolha deve ser ordeira, clara e sem subterfúgio.

(Foi o bastante para a cobra manifestar sua indignação com um caloroso protesto).

Cobra: (com voz um pouco embargada, porém sibilante).

- Alto lá! Serpente não.

- As serpentes são consideradas perigosas, malignas, cruéis. Eu sou uma simples cobra, do latim colubra. Sim, um inofensivo representante da família dos ofídios. E saibam mais, meus parentes mais próximos sempre tiveram grande destaque entre os animais, por exemplo, minha prima Naja – assobia, chocalha, sibila, silva, e é, com toda certeza, a rainha do guizo, em fim, possui uma profunda vocação musical.

(Os anjos, a uma ordem de Mikael, sentam-se, mantendo, porém, postura de prontidão. E dirigindo-se à cobra).

Mikael:

- Por favor, minha senhora, se deseja ser candidata, queira ocupar a tribuna, pois é de lá que todos deverão se apresentar. Por favor - (apontando para a tribuna).

Cobra: (prosseguindo, já ocupando a tribuna, assumindo atitude de grande importância).

- Pois é, saibam que minha família tem contribuído, e muito, para a cultura, por exemplo, já ouviram falar na Cobra Nonato? (sem esperar resposta, vai logo emendando) Trata-se de folclore. Um mito amazonense – é um belo jovem, de nome Honorato, encantado, sob a forma de serpente, isto é, de cobra (corrige para não se contradizer), que em altas noites desencanta e vai aos bailes dançar.

(Ariel, interrompendo o discurso, de forma ríspida, deixando transparecer sua afamada falta de paciência).

Ariel:

- Era só o que nos faltava, uma cobra intelectual!

- Irmãos não vamos nos deixar levar por essa peçonhenta, Satanás serve-se dela – está escrito: “Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais do campo, que o Senhor Deus tinha feito”, vindo a enganar a mulher e trazer a perdição ao homem. É por isso que foi condenada pelo próprio Senhor. Também podemos constatar sua condenação nas Escrituras: “Então o Senhor Deus disse à serpente: “Porquanto fizeste isso, maldita serás tu dentre todos os animais domésticos, e dentre todos os animais do campo, sobre teu ventre andarás, e pó comerás todos os dias de tua vida. Porei inimizade entre ti e a mulher, e entre tua descendência; e esta te ferirá a cabeça e morderás seu calcanhar”.

Mikael: (intervindo)

- Calma, irmão Ariel. Não vamos também falar “cobras e lagartos” de qualquer um que se apresenta como candidato, todos terão oportunidade de se exporem e fornecerem seus argumentos, que serão levados em conta na escolha, conforme explicitado na convocação. Nossa obrigação é ouvi-la e avaliar.

(A cobra retorna ao seu discurso, cada vez mais empolgada).

Cobra:

- É verdade. Todos têm que ter a mesma chance. Não posso permitir qualquer tipo de discriminação.

Ariel: (tentando se conter e resmungando)

-Essa agora! Além de intelectual também pretende ser política. Era só o que faltava!

Cobra: (com ares de desafio)

- Não vamos esquecer que entre os animais recolhidos por Noé lá estávamos, (também citando as Escrituras): - “... Farás entrar na arca todos os tipos de répteis da terra. Estarão condigo dois de cada espécie, macho e fêmea...”.

-Se não houvesse a necessidade de perpetuação da espécie haveria esse cuidado?

Cobra: (continuando, com ares de nobre importância).

- Além do mais, nós as cobras, sempre estivemos presentes na história de todos os povos. No Egito antigo, por exemplo, houve um verdadeiro culto à serpente (outra vez corrigindo) – à cobra. Os encantadores de serpentes (novamente se corrige) - de cobras, gozavam de grande consideração e com elas exerciam artes mágicas. Entre outras coisas, podiam conduzi-las estendidas em forma de bastão...

(Zarias, que até então só observava a candidata e fazia suas anotações, resolve intervir, em alta voz):

Zarias: “E os egípcios saberão que Eu sou o Senhor, quando tiver estendido minha mão contra o Egito para tirar os filhos de Israel do meio deles” (Êxodo 7,5ss). “Falou, pois, o Senhor a Moisés e a Arão: Toma a tua vara, e lança-a diante do Faraó, para que se torne em serpente. Então Moisés e Arão foram ter com o Faraó, e fizeram assim como o Senhor ordenara. Arão lançou a sua vara diante do Faraó e dos seus servos, e ela se tornou em serpente”.

Cobra: (retomando a palavra para si, bastante contrariada e em atitude de desafio, emenda).

- “O Faraó também mandou vir os sábios e encantadores; e eles, os magos do Egito, também, fizeram o mesmo com os seus encantamentos. Pois cada um deles lançou a sua vara, e elas se tornaram em serpentes”.

Zarias: (contra-atacando)

- “... mas a vara de Arão tragou as varas deles”. (Olhando o opositor com ares de vitória, dá um leve sorriso, e prossegue em suas anotações, como se nada houvesse acontecido).

Cobra: (lançando seu olhar de desprezo ao oponente, prossegue em sua narrativa).

- Não devemos nos esquecer que também já fomos sinal de salvação (Num. 21, 8-9). Quando o povo de Israel partiu do monte Hor, pelo caminho que leva ao Mar Vermelho, já se encontrava cansado e desanimado. A alma do povo impacientou-se e puseram a murmurar contra Deus e contra Moisés. Diziam: “Porque nos fizeste subir do Egito, para morrermos no deserto? Pois aqui não há pão e não há água”.

(Dessa vez quem interfere na apresentação é Ariel).

Ariel: “Então o Senhor mandou entre o povo serpentes abrasadoras, que mordiam; e morreu muita gente de Israel”. Não é correto desafiar o nosso Deus. Mas o povo, arrependido, veio a Moisés e disse: “Pecamos, porquanto temos falado contra o Senhor e contra ti”. E foram mais humildes ao pedir a Moisés: “Ore ao Senhor para que tire de nós estas serpentes. Moisés, pois, orou pelo povo”.

Cobra: (contrariada pela interrupção, prossegue)

- É aí que nós entramos, como salvadoras daquela situação difícil. “Então disse o Senhor a Moisés: Faze uma serpente de bronze, e põe-na sobre uma haste; e será que todo mordido que olhar para ela viverá”. E assim que Moisés pôs a serpente de bronze na haste, como fora solicitado, e todo aquele que era mordido, ao olhar para serpente de bronze, vivia.

Mikael: (tomando a palavra, faz a citação de João 3, 14-15)

- “E como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado; para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”.

(Dirigindo-se ao público, assumindo uma postura didática, prossegue Mikael)

- A serpente de bronze foi conservada como recordação da cura prodigiosa das venenosas mordidas das serpentes, tornando-se verdadeira relíquia da era mosaica. Mas com o correr do tempo o povo, supersticioso como sempre, cercou-a de crenças e práticas abomináveis, com evidente perigo de idolatria. Para cortar o mal pela raiz, Ezequiel não hesitou em despedaçá-la.

Cobra: (mais aborrecida ainda, pela interrupção, não se contém e reclama).

-Creio que esteja havendo uma certa má-vontade em me ouvirem, pois não param de me interromper. Como já disse no início, não gostaria de ser prejudicada em meus anseios de candidata (agora já de forma mais branda e com a voz chorosa).

- Isso não é justo!

Mikael: (retomando a palavra, também com voz mansa e conciliadora).

- Gostaria que todo mal-entendido fosse sanado. Afinal não temos a pretensão de sermos injustos com quem quer que seja. Tudo que a prezada candidata falou e expôs, será levado em conta na hora da escolha. Todos nós estivemos atentos às suas palavras, fizemos nossas anotações e faremos relatórios de sua exposição, e assim será com relação a cada candidato, tudo na mais completa lisura.

Mikael: (Pondo-se de pé).

-E para provar que não há entre nós qualquer ressentimento, gostaria de convidá-la a sentar-se à mesa conosco. Afinal de contas estamos em plena democracia.

Cobra: (Demonstrando ainda estar magoada, limpa uma lágrima que cai. Lança um expressivo olhar aos demais anjos. Manifesta, logo em seguida, contentamento pelo convite e não se faz de rogada).

- Realmente, fico muito alegre pelo convite. Já havia terminado mesmo a minha apresentação, haveria muito mais a acrescentar, porém vou me abster.

(E, como que com medo de que fosse dado um contra-convite, apressa-se em assentar-se, sem perder a oportunidade de novo olhar, dessa vez vitorioso, dirigido ao anjo mais próximo. Ameaça sentar-se ao lado de Zarias. Lança um olhar de desafio ao anjo. Por um breve momento de indecisão, resolve-se pela cadeira mais afastada, ficando uma vaga entre ambos).

Toda atenção é dada para a nova personagem que aponta na entrada de cena.

É uma linda ovelha que vem se aproximando, vagarosamente. Olhar de assustada, um pouco apreensiva, ou talvez indecisa. Olha para um lado, para o outro.

Os anjos lhe dão boas vindas, ficando em pé, com um largo sorriso nos lábios. Sentam-se logo em seguida.

Ovelha: (Ainda um pouco acanhada, dirige-se ao anjos).

- Senhores, muito obrigada pela acolhida. Mesmo não sendo do meu feitio afastar-me de meu rebanho, resolvi candidatar-me assim que tomei conhecimento de que haveria a escolha. Coisa que nunca esqueço, porém, é que: “O Senhor é o meu pastor que me conduz; não me falta coisa alguma”. Já me encontro totalmente arrependida pela minha ousadia e pretensão. (Ameaça a sair de cena).

Mikael: (Pondo-se de pé, dirigindo-se a assustada ovelha).

-Por favor, Senhora Ovelha, pode ficar à vontade. Realmente o amor de Deus é comparado ao carinho que o pastor tem por suas ovelhas. E citando Ezequiel 34: “Assim diz o Senhor Deus: “Vede! Eu mesmo vou procurar minhas ovelhas e tomar conta delas. Como o pastor toma conta do rebanho, de dia, quando se encontra no meio das ovelhas dispersas, assim vou cuidar de minhas ovelhas e vou resgatá-las de todos os lugares em que foram dispersadas...”

-Aqui todos os candidatos têm as mesmas chances. Portanto, queira tomar seu lugar na tribuna (apontando para a pequena tribuna).

Ovelha: (Já demonstrando calma e auto-controle, dirige-se para a tribuna).

- Nós, as ovelhas, sempre fomos reconhecidas como os mais dóceis dos animais.

Mikael: (Emocionado pelas palavras da ovelha).

-Bem colocada sua observação. Muito bem colocada!

-Realmente deve ser muito bom ser uma criatura tão especial. São várias as citações feitas nas Escrituras com relação a um animalzinho com aparência tão frágil. Com toda certeza, se uma ovelha deixar o seu caminho para outro rumo seguir, o Pastor deixará todo o rebanho e irá procurar a fujona e a trará com carinho em seus próprios ombros, cuidará de suas feridas, haverá alegria e festa pela sua volta ao rebanho. Mas, por favor, prossiga em sua apresentação.

Ovelha: (Agora mais calma, aparentando estar mais à vontade).

-Desde os mais antigos tempos, nós ovelhas, sempre fomos de vital importância para o povo hebreu. Representávamos verdadeira fortuna para aqueles que possuíam um grande rebanho, pois fornecíamos nossa lã para seus agasalhos para enfrentarem o frio do inverno rígido. Com nosso leite faziam coalhada, alimento tão apreciado por aquele povo. E também éramos levadas aos lugares santos como holocaustos e sacrifícios, muitas vezes como oferta voluntária e em outras ocasiões como oferta de expiação de pecados cometidos pelo povo.

Mikael: (intervindo, à guisa de explicação).

- Os sacrifícios eram determinados pelo Senhor: “Um altar de terra me farás, e sobre ele sacrificarás os teus holocaustos, e as tuas ofertas pacíficas, as tuas ovelhas e os teus bois. Em lugar em que eu fizer recordar o meu nome, virei a ti e te abençoarei” (Ex.20:24). E também as ofertas e sacrifícios eram feitas em expiação dos pecados. Muito bem lembrado!... Muitas ovelhas tiveram suas vidas abreviadas em favor de pecadores. Sem dúvida, uma nobre missão.

Cobra: (pondo-se de pé e com certa agressividade na fala sibilante).

- Ora, vejam só! Quanta bajulação! E ainda dizem que não há predileção na escolha, não é o que se vê.

Mikael: (levantando a mão).

- Por favor, vamos manter a ordem!

Ovelha: (retornando a explanação)

- Muitos profetas tiveram contado direto com rebanhos, apascentando e protegendo cada ovelha das feras do campo, cuidando de suas feridas e de todas suas necessidades.

Também as mulheres são contadas entre aquelas que tiveram como profissão e ocupação, cuidar das ovelhas, dentre elas, não podemos nos esquecer de Raquel, filha de Labão, que encantou Jacó com sua formosura quando a viu retornando com as ovelhas de seu pai, indo em direção a um poço para dar de beber ao rebanho.

Quando Jacó viu Raquel, adiantou-se e removeu a pedra da boca do poço e deu de beber as ovelhas, que mataram suas sedes e puderam presenciar o nascimento de um grande amor.

Cobra: (intervindo com zombaria)

-Mas que romântica. Chego a me emocionar com tanto amor e ....

Mikael: (tomando a palavra, interrompendo a cobra).

-Por favor, vamos respeitar a candidata que está se apresentando. Todas as observações deverão fazer parte somente de anotações, sem interferência verbal.

(E dirigindo-se à ovelha, como que querendo desculpar-se pela interferência).

-Senhora ovelha, queira prosseguir, por favor.

Ovelha:

-Também escolheu Deus a Davi, seu servo e o tirou dos apriscos, onde apascentava as ovelhas de seu pai, como um valoroso guarda. Sempre que vinha um leão, ou um urso, e tomava um cordeiro do rebanho saia em seu encalço em defesa daquela vítima, retornando vitorioso em sua empreitada. Reconhecendo Deus seus valores, fez dele um grande rei.

Mikael: (Mencionando mais uma passagem bíblica).

-“Preparais à minha frente uma mesa, bem à vista do inimigo...”. (Dirige um discreto olhar à cobra, que se encontra sentada na ponta da mesa, observa a cadeira desocupada, e num gesto de grande cortesia, indica esse lugar a ovelha).

- Por favor, senhora ovelha, gostaria de tê-la conosco à mesa.

Cobra: (Em tom de desafio, demonstrando uma certa inveja).

- É como eu disse. Nunca vi tanta bajulação e proteção!

Ovelha: (Retornando ao seu estado de acanhamento, reflete por um breve instante. E, obediente, dirige-se ao lugar sugerido. Ficando posicionada entre o anjo Zarias e a cobra).

Zarias: (Fazendo uma certa mesura)

- Fico muito contente com sua presença ao meu lado.

Cobra: (Remedando o gesto do anjo e com um olhar provocante)

- Também fico muito contente com sua presença ao meu lado.

(Entram em cena, juntos, o boi e o burro. Aproximam-se da mesa. São interpelados por Mikael).

Mikael: (Com a mão estendida em direção à dupla)

- Por favor, senhores, os candidatos deverão se apresentar individualmente.

(Os dois pretendentes ao cargo encaram-se, por um breve momento. Finalmente o boi dirige-se ao burro com exagerada mesura).

Boi: (curvando-se)

- Por favor, compadre, primeiro você.

(O burro, um pouco embaraçado com a presteza do amigo, ameaça a retribuir da mesma forma, porém resolve aceitar o convite).

Burro: (tomando seu lugar na tribuna e em exagerada atitude de menestrel)

Aos senhores peço vênia para me apresentar

Sou de nobre estirpe da raça dos muares

Estou sempre presente em todos os lugares

Sirvo tão bem para carga como para montar.

Ariel: (voltando ao seu mau humor)

- Oh, Céus! Um burro poeta. O que mais nos falta?!.

Cobra: Mas vejam só! Um Burro poeta. Pose tem bastante, mas..... Ora, ora! Um burro metido a besta (e põe-se a rir em exagero da própria piada, em demonstração de deboche e zombaria pelo candidato).

(Instaura-se um princípio de tumulto, pela pretensão de menestrel do Burro)

Mikael: (Intervindo com energia, se pondo de pé).

- Senhores, por favor, vamos manter a ordem, não há motivo para falta de respeito para com o candidato, se insistirem na algazarra a sessão será encerrada. E a senhora dona Cobra, faça o favor de se comportar e não volte a intervir nas apresentações.

(Dirigindo-se para o candidato, demonstrando contrariedade pelo incidente).

- Por favor, senhor Burro, prossiga, mas procure ser mais simples em sua explanação. Menos teatro e mais fatos. Não se trata de interpretação e sim argumentação. Prossiga.

Burro: (Contrariado pelas observações e o tumulto ocasionado, retorna à palavra de forma mais simples e um pouco acanhada).

- Bem senhores, devo dizer que sou um animal bíblico. Desde a antiguidade tenho servido de transporte de cargas e passageiros.

Também fui importante no Brasil no fim da escravatura, substitui a força de trabalho escravo e até hoje sou meio de transporte de cargas pesadas.

(E dirigindo-se de modo especial a Mikael, como que sondando sobre sua postura na apresentação).

- Estive presente, por três vezes na vida de Jesus.

No nascimento, diante da manjedoura, lá estávamos nós.

Mikael: (intervindo, como que procurando socorrer o candidato).

- É verdade. Os primeiros adoradores de Jesus foram os animais e não o homem, entre os animais domésticos os mais simples humildes e submissos são o boi e o burro.

(E assumindo a costumeira postura de professor, dirigindo-se aos demais presentes).

- Estavam José e Maria em Belém, para cumprir o recenseamento decretado por César Augusto, quando chegou o tempo em que Maria havia de dar à luz. E teve o seu filho primogênito; envolveu-o em faixas e o deitou em uma manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem.

Burro: (Voltando a falar, já mais à vontade e confiante).

-Na fuga para o Egito, também fomos de grande utilidade.

Para fugir da perseguição de Herodes, por advertência de um Anjo do Senhor que apareceu a José em sonho e disse: -“Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito e ali fica até que eu o fale, porque Herodes procura o menino para o matar”. José tomou um jumento, colocou sobre ele Maria e o Menino e se puseram em fuga rumo ao Egito e lá permaneceram até que o perigo terminasse.

Ovelha: (Na sua simplicidade).

-Céus, quanta maldade, perseguirem uma pobre criança!

Burro: (Prosseguindo).

- Na entrada triunfante em Jerusalém, no domingo de Ramos, também marcamos nossa presença.

Conforme nos conta a Bíblia, quando Jesus e seus discípulos se aproximavam de Jerusalém, chegando a Betfagé, Jesus enviou dois dos seus amigos, dizendo-lhes: -“Ide à aldeia que está defronte de vós e logo encontrareis uma jumenta presa, e seu jumentinho com ela, desprendei-a e trazei-ma”

Zarias: (Interrompendo suas anotações, faz sua intervenção).

- Ora isso aconteceu para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta Zacarias. –“Alegra-te muito, ó filha de Sião; exulta-te ó filha de Jerusalém; eis que vem a ti o teu rei; ele é justo e traz a salvação; ele é humilde e vem montado sobre um jumento, sobre um jumentinho filho de uma jumenta”.

Burro: (Retomando a palavra).

- Realmente lhe trouxeram a jumenta e o jumentinho e sobre eles puseram os seus mantos e Jesus montou e a multidão clamava: -“Hosana ao Filho de Deus! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana nas alturas!”. Sem dúvida, foi um grande momento.

-Também estamos presentes no Alcorão, livro sagrado do Islamismo, que nos conta que entre os animais que Maomé levou para o céu está uma jumenta.

Mikael: (Percebendo que o burro já havia terminado sua explanação, agradece sua presença e pede para entrar o próximo candidato).

(Entra o Boi, aproxima-se da mesa e de forma simples e humilde cumprimenta os componentes e se dirige para tribuna).

Boi: Após a brilhante apresentação do meu compadre, não me resta muita coisa a acrescentar. Como já foi dito pelo Mikael, diante da manjedoura de Jesus lá estávamos nós, eu e meu compadre. E bem disse o Profeta Isaias: “O boi conhece o seu possuidor, e o jumento a manjedoura do seu dono...”.

Zarias: (Parando suas anotações e dirigindo-se ao candidato).

- Sem dúvida, trata-se de uma criatura muito especial. Várias citações nas Escrituras nos dão conta da sua importância. Possuir um grande rebanho demonstrava fortuna.

Mikael: (Também intervindo).

- Como já havia dito, os sacrifícios eram determinados pelo Senhor em expiação dos pecados. E sem dúvida muitos bois também tiveram suas vidas abreviadas em favor de pecadores.

Boi: (Alegre pelos comentários prossegue).

- Na parte religiosa, devo lembrar que também houve fatos que nos trouxeram certo embaraço e como exemplo podemos citar a passagem bíblica que nos relata que quando Moisés demorou a descer do Monte Sinai, o povo ficou inquieto. Persuadiram então Arão a tomar seus brincos de ouro e outras jóias para fazer um bezerro de ouro para ser adorado.

Mikael: (Intervindo).

- É verdade, este é um dos mais infames casos de idolatria, relatados na Bíblica. E quando Moisés desceu da montanha, ficou horrorizado com tamanha rebelião e idolatria. Sua indignação chegou ao extremo de lançar ao chão as duas tábuas de pedra com os Dez Mandamentos, quebrando-as.

(A apresentação é interrompida por um grande alarido fora de cena, seguido de grande estrondo. Era o elefante que desejava entrar, e é contido. Todos têm medo de que venha destruir todo o cenário).

Ariel: (Chega ao extremo de todo seu nervosismo e falta de paciência).

- Precisamos convocar reforço. Alguma coisa precisa ser feita.

Zarias: (Sempre paciente e procurando uma saída diplomática, procura acalmar Ariel. Sai de cena indo ao encontro do Elefante).

Boi: (Um pouco assustado com os acontecimentos, dá por encerrada a sua apresentação).

- Bem senhores, não creio que tenha muita coisa a acrescentar agradeço a atenção.

Zarias: (Voltando ao seu lugar).

- Chegamos ao consenso de que não precisa o concorrente estar presente, basta que alguém o represente para ser qualificado e avaliado como os demais concorrentes.

(Todos concordam com a sábia saída)

Entra em cena o leão. Olhando para trás como se esperasse que com ele entrasse também mais alguém. Traz uma coroa sobre a cabeça e uma grande capa. Faz uma breve parada na entrada de cena, aguardando que o papagaio se ponha à sua frente, em clara submissão a sua realeza.

Mikael: (Contendo o riso por tão grotesca encenação).

- Senhor Leão é bom ser lembrado que mesmo sendo considerado o rei dos animais aqui na Terra, “Vossa Alteza” terá que se apresentar como candidato e se submeter as e avaliações como os demais.

Leão:

- Não creio que tenha que me apresentar. Todos aqui já me conhecem o suficiente para que eu seja aclamado como verdadeiro líder.

Papagaio: (Dirigindo-se ao centro da mesa, em direção a Mikael,).

- Peço venia para defender meu constituinte. Afinal de contas trata-se de uma pessoa nobre e como todos sabemos, não fica bem um rei se prostrar diante de uma banca de examinadores e se expor ....

Mikael: (Interrompendo de imediato, tentando evitar mais um alarido e algazarra).

- Deve estar havendo um engano. Todos foram convocados a serem candidatos de uma liderança, isto é, espontaneamente se apresentaram e aceitaram as regras da convocação. Portanto, ninguém está sendo submetido a um interrogatório ou coisa que o valha, necessitando de um advogado para sua defesa. O regulamento é claro e deve ser cumprido na íntegra.

(Papagaio dirige-se ao Leão e começa a confabular em particular)

Papagaio:

- Sua Alteza prefere se ausentar sem maiores delongas. Portanto, com licença.

(E sai de cena segurando a grande capa do Leão, que por sua vez lança, um olhar de indignação aos presentes e segue adiante).

CENA IV

Logo após todos se apresentarem Mikael, solenemente, dá por encerrada a apuração.

Mikael.(enxugando o suor do rosto)

- Ufa! Finalmente terminamos. Parece que todos os inscritos se apresentaram.

Inicia-se então uma grande algazarra. Todos querem ver de imediato o resultado do pleito, com a conseqüente proclamação do vencedor.

Instala-se um verdadeiro caos. Todos falando ao mesmo tempo, alguns já bem exaltados. Após grande confusão, Mikael com sua autoridade, consegue fazer retornar a ordem.

Mikael: (demonstrando estar bastante exausto, com seu humor nada agradável)

- Atenção, por favor, atenção, o regulamento é muito claro (apontando para o quadro com o anúncio que ainda se encontra fixado na árvore) — (com voz solene, cadenciadamente põe-se a ler o último item, aquele com letras bem miúdas, quase imperceptíveis: - “Será escolhido o líder para liderar no céu”- Senhores, alguma dúvida?

Após muitos Ohs! Faz-se um breve silêncio.

Mikael: (prosseguindo)

-Portanto senhores, devemos fazer cumprir o regulamento.

(Levantando, num gesto exageradamente solene, dirige-se até a urna, pegando-a anuncia:)

Mikael:

- Muito bem, senhores, para proclamar o vencedor e encaminhá-lo de imediato até o seu nobre posto, chamo a Senhora Dama de Negro, que terá o prazer de conduzir o vencedor.

(Olhando em redor, examina se há algum pretendente, depõe solenemente a urna sobre a mesa, dirige um olhar acompanhado de um sorriso sarcástico, para os anjos, que permanecem ao seu lado, que em cumplicidade retribuem também com um sorriso).

Ouve-se uma música bastante fúnebre. Grande expectativa. Entra uma mulher vestida de negro, com o rosto coberto por um véu, também negro.

Dando um sonoro e maroto sorriso, anuncia:

Dama de Negro:

- Então, vamos acabar logo com isto, estou pronta para cumprir a minha obrigação e conduzir o “sortudo” eleito.

(Silêncio total)

(Insistindo na espera, volta a indagar).

Dama de Negro.

- Então, quem está pronto a assumir seu cargo?

(Prossegue-se grande silêncio.)

(Logo após, todos retornam ao alarido inicial, só que com as opiniões modificadas. Prontamente concordam que apuração e posse do vencedor deverá se dar no Céu).

Lentamente a “Dama de Negro” aproxima-se da mesa, toma em suas mãos a urna e se afasta, com ar demasiadamente solene.

Os animais, um a um vão se retirando de cena. Uns com cara de medo, outros com aparente satisfação de ter conseguido escapar da arrepiante companhia.

Os anjos se levantam, vêem até o centro do palco e iniciam suas despedidas, quando de repente surge uma tartaruga. Enxugando o suor do rosto e resmungando, se apresenta:

Tartaruga: (Arquejante, respirando com dificuldade. Após um breve descanso, finalmente diz:)

- Olá Senhores!... Assim que tomei conhecimento da convocação, saí correndo para me candidatar e, aqui estou.

Mikael (com cara de espanto e um sorriso sarcástico)

- Pois é, minha senhora, acredito que tenha se esforçado bastante, mas lamento que não tenha conseguido, pois a apresentação dos candidatos, devidamente inscritos e a escolha, já foram encerradas, (e apontando para o cartaz) — o regulamento é muito claro quanto ao prazo.

A tartaruga aproxima-se do cartaz, coloca seus enormes óculos, examina com ar de desânimo. Faz algumas observações não inteligíveis e se retira de cena em passos miúdos.

(FIM)

Laerte Creder Lopes
Enviado por Laerte Creder Lopes em 12/01/2010
Código do texto: T2025289
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