Memórias de um Beijo - Parte II

Peguei os doze na escola já aflito e saí com aquele ticket para beijar. Os primeiros alvos foram meus primos. De parte de pai, nenhum comprou. Certo. Isso era esperado. Então procurei alguns de parte de mãe. Acertei em cheia. Dois ingressos se foram. Faltavam dez. Aquele papel coçava na minha mão. Precisava passar para outrem.

Apelei para minha sala. Oferecei para todo mundo, menos para a Keila. Havia um código de conduta dentro de mim que me impossibilitava de me aproximar dela. Vendi para a amiga dela a quem havia me declarado uns meses atrás. Vendi para todo mundo que sentava nas carteiras em volta dela. Para a Keila não.

Passei de sala em sala, inclusive na Sétima B, a turma que as meninas da Sétima A mais odiavam. Acho que nós, garotos da Sétima A, não tínhamos tantos escrúpulos quanto elas e conversávamos e jogávamos futebol com a Sétima B do mesmo jeito. Além do que, havia cada rostinho bonito lá que não dava para deixar de freqüentar. Também, o que as meninas chamavam de escrúpulos, nós chamávamos de frescura. Devia ser uma falha de comunicação.

Uma prima da Sétima B serviu de contato e me permitiu ficar livre dos ingressos restantes. Foi com felicidade que fui trocá-los na escola naquele dia. Saí com aquele prêmio iluminado pelo sol! Apontei para cima e olhei com orgulho para o passaporte para os lábios da Keila. Sorri para aqueles pedaços de papel coloridos! Que o dia das bruxas se tornasse o dia do beijo!

Uma lei cósmica, no entanto, fez o sorriso desaparecer da minha boca mais fácil do que chocolate na mão de criança. Minha felicidade se quebrou mais facilmente do que porcelana na mão da mesma criança! E a criança em questão era minha irmã. Acho que foi aí que defini o que era adolescência e o que era infância. Quando minha mãe falou:

- Dá um ingresso para sua irmã.

Eu olhei para aquela figura dois anos mais nova do que eu e alguns centímetros mais baixa com aquele sorriso torto e brilhante. Fiquei com raiva. Por sinal, o brilhante não é poesia, é insulto por causa do aparelho, que eu também usava, mas eu preferi me esquecer. Pensei então:

- Ela é uma criança, nem precisa ir nisso!

Acabei pensando alto, mas um olhar materno decidido transformou meus sonhos em poeira e a cozinha do diabo precisou se preparar mais uma vez para o plano do beijo. Ah, sim... A maquinaria nunca parava.