O HERÓI E A LUVA

O HERÓI E A LUVA – 14 SET 14

(Este não é um conto de fadas, mas adaptação em versos de um fato histórico;

os pormenores também são reais, tanto quanto pode ser real a história que

nos contam os vencedores. Versão poética de William Lagos)

O HERÓI E A LUVA I

Quando Francisco Primeiro era o Imperador

do Império Austro-Húngaro, que abrangia,

igualmente, boa parte da Alemanha,

foi certa vez os seus domínios visitar,

por toda parte recebido com louvor;

levou a corte, um certo dia, à propriedade

dos marqueses Eszterházy, lá na Hungria,

uma fazenda de extensão tremenda,

que até partes da Polônia ia englobar

e da România, também, na realidade...

Muito orgulhosa era a família do Marquês,

por suas riquezas e suas extensas terras,

unidas a um título de nobreza secular.

Deste modo, o Marquês quis se exibir

e assim um grande espetáculo se fez,

para mostrar a sua prosperidade,

minas de prata explorando nas suas serras,

largos trigais, cem moinhos a girar,

mil impostos dos servos a exigir,

que então gastasse com liberalidade...

Entre outras coisas, um circo foi montado,

arquibancadas bem além do picadeiro,

com palhaços e ilusionistas de magia,

saltimbancos, pelotiqueiros, equilibristas...

A um sinal, alto gradil foi elevado,

para garantir dos espectadores a proteção...

E no seu centro, foi solto, bem ligeiro,

para espanto e maravilha de quem via,

de um subterrâneo oculto sob as pistas,

já rugindo de furor, jovem leão!...

Mais um sinal, e um tigre libertaram,

as duas feras rugindo e se encarando,

mas de um lado, cada um, do picadeiro...

A um terceiro sinal, novo gradil

foi aberto... E na arena se lançaram

dois guepardos da maior ferocidade,

que ao leão se jogaram, atacando...

Entrou o tigre na refrega, bem ligeiro,

para alegria daquele povo vil,

que dos romanos imitara sua maldade!

O HERÓI E A LUVA II

De fato, pensara o Marquês organizar

um torneio também de gladiadores,

mas disso o dissuadira o capelão:

“Aqui na marca só temos bons cristãos... (*)

Não há tempo de russos capturar

e não dispomos de turcos prisioneiros...”

Os ortodoxos, para esses bons senhores,

eram hereges de uma outra religião,

até piores, segundo suas convicções,

do que os pagãos, judeus ou forasteiros...

(*) As marcas eram províncias nas fronteiras do Império; daí o

título de “marquês” dado aos nobres encarregados da sua defesa.

Ora, de fato, o Marquês ambicionava

casar Erzsébet, sua filha, com o herdeiro

do trono, que a comitiva acompanhara,

o Arquiduque Karl, jovem belo,

que ginástica e esgrima praticava

e até gostara da linda marquesinha...

Para o Marquês, seria muito lisonjeiro

que sua filha com o príncipe casara,

para viver em seu imperial castelo,

com todos os privilégios de rainha...

Infelizmente, ela era caprichosa,

egoísta e orgulhosa como o pai

e enquanto namorava o pretendente,

que já lhe declarara o seu amor,

foi tentada por ideia perniciosa

e uma luva na arena então soltou...

“Meu querido, se me ama, você vai

buscar a minha luvinha, certamente...”

O Arquiduque encarou-a com horror:

mal podendo acreditar no que escutou!

Porém, “nobreza obriga” e sua coragem

não dava margem para uma recusa,

saltando assim para o rude picadeiro,

de sangue fétido já todo avermelhado...

Pensou a plateia estar a ver uma miragem,

mas as feras mal lhe deram atenção,

na fúria mútua que sua carne abusa...

A luva resgatada, subiu inteiro

pelo gradil, sem sequer ter apressado,

nessa proeza, o bater do coração!...

O HERÓI E A LUVA III

Em aplausos, explodiu a galeria,

mas o Imperador prendeu a respiração!

Também Eszterházy, por motivo diferente...

Karl inclinou-se perante a marquesinha,

pingando sangue a luva que trazia...

“Aqui tendes vossa luva, minha senhora!”

Ela esperava mostras de adulação

ou galanteios, como ouvira tão frequente...

É um herói o namorado que hoje tenho!...

Até um pedido ela aguardava nessa hora...

Mas o Arquiduque falou-lhe, simplesmente:

“Se por capricho me expusestes à morte,

ou arriscastes que eu pudesse me aleijar,

percebo bem vossa futilidade

e não desejo ver-vos novamente:

todo interesse perdi no vosso amor!...”

A luva lhe lançou, marchando o corte

do vestido de brocado com o sangue

dos animais, que seu podia ter sido, na verdade.

E deu-lhe as costas, sem maior favor...

Falou-lhe o Imperador: “Mas que loucura

foi essa que fizeste, herdeiro meu?”

“Erzsébet pediu-me e eu a atendi,

mas nunca mais quero vê-la pela frente!

Mau coração esconde sua formosura...”

Viu o Marquês perdida sua esperança...

Em seu orgulho, porém, a defendeu...

“Os seus motivos desde o início eu vi,”

disse-lhe Franz. “E não serei nisso indulgente!

Matar meu filho por um capricho de criança!...”

“Eu lhe agradeço por sua hospitalidade,

mas me permita retirar-me agora!...”

Aprestaram os cavalos e as carruagens

e retirou-se o imperial cortejo...

Eszterházy conservou sua dignidade,

mas seu orgulho fora assim manchado

e convocou suas tropas nessa hora.

Houve batalhas, massacres e carnagens,

alfim o Marquês exilado nesse ensejo:

Luís de França recebeu-o de seu lado...

EPÍLOGO

Sempre existiu feroz rivalidade

entre os reinos austríaco e francês:

durante séculos duraram os combates...

Erzsébet com aristocrata se casou.

Seus irmãos retornaram, na verdade,

após a morte do Marquês, porém suas terras

bem reduzidas se tornaram dessa vez.

Foram as feras enviadas para o abate:

Eszterházy nas coitadas se vingou,

mortas a flechas no interior de suas encerras...

Os descendentes de Erzsébet conservaram

o sobrenome Eszterházy dos ancestrais;

muitos séculos depois, um foi traidor

da França, em favor da pátria antiga

e a Dreyfus injustamente condenaram,

por manifesto de Émile Zola indultado,

que provou, com argumentos nos jornais

e com o prestígio de sua obra de escritor

sua inocência, que a reabilitação consiga,

qual personagem de um romance atribulado...