Como eu perdi a Karen



- Obrigada, Isa! Volte sempre!

- Você sabe que eu volto!

Me despedi da moça loira de cabelos cacheados com um breve aceno. Manuela é a dona da loja de confecções no centro do Rio e também uma velha conhecida minha. As vezes penso que talvez uma das maiores responsáveis por eu viver numa pindaíba sem fim. O sistema capitalista é cruel.

No alto do morro, onde o verde do Rio de Janeiro nos brindava junto ao céu azulado o primeiro barulho de tiro surgiu. O primeiro de uma longa e inacabável sequência. Apesar de não ser nascida em terras cariocas, já havia me acostumado a esse tipo de situação, mas dessa vez era diferente. Eram barulhos assustadores acrescentados a gritos aterrorizantes. O pandemônio se instalara no centro do Copacabana numa tarde que se mostrava tão calma quanto o Cristo Redentor que nos recepcionava.

Eram pessoas correndo, mães gritando e protegendo seus filhos. Então eu a vi no momento exato em que fora atingida por bala perdida, no outro lado da calçada, em frente ao ponto de ônibus. A primeira foi no peito, na altura do coração e a segunda no braço. Ela caiu de joelhos e com ela duas sacolas, mesmo atingida, seu primeiro instinto foi proteger sua barriga imensa.

Não pensei, simplesmente larguei todas as minhas sacolas e corri em direção a ela sem lembrar que eu também poderia ser atingida. Karen estava caída de lado, praticamente tendo os braços pisoteados pelas pessoas que passavam enlouquecidas.

- Ei! Ei! Karen! Olha para mim! – Me joguei no chão e coloquei sua cabeça em meu colo. Em seu estado de semi inconsciência, ela me olhou.

- Meu bebê...

- Karen, só fica de olho aberto, ok? Vai ficar tudo bem! – Algumas pessoas pararam para ver o que acontecia. Havia choque nos olhares, havia pena. – PELO O AMOR DE DEUS ALGUÉM LIGA PARA A POLÍCIA! CHAMA UMA AMBULÂNCIA!

Uma senhora de meia idade tirou seu celular da bolsa.

- Mantenha ela acordada!

Karen segurou minha mão firmemente e nos olhamos. Ela me olhou, na verdade. Ela realmente me olhou. E foi do tipo de olhar que eu nunca me esqueceria. Era o olhar de alguém que sabia que morreria nos braços da ex-namorada do marido.

- Isabela, me promete uma coisa... – A voz começava a se perder. – Promete que vai salvar minha filha.

- Karen você n...

E o grito de mãe foi do fundo de sua garganta era um pedido impossível de ser recusado.

- VOCÊ TEM QUE SALVAR A MINHA FILHA, ISABELA!

- Eu prometo. – Senti o seu aperto em minha mão afrouxar. Ela não resistiria muito tempo. Sem perceber, vi quando um pingo de lágrima meu caiu sob o rosto dela. Eu não sabia se chorava por ela, pelo bebê em sua barriga que não tinha noção do quão selvagem era a vida no Rio de Janeiro ou por tudo o que Leonardo passaria sem Karen.

Talvez eu chorasse por tudo isso.

- Ele sempre te amou... – Ela sussurrou, tentando a todo custo manter os olhos abertos. – Sempre... Ele nunca me olhou como olhava para você. Mas eu o fiz feliz como nem você seria capaz.

- Eu sei, Karen. E por isso que você o merece mais do que eu.

- Cuide dele... Cuide dele e diga que eu o amo, Isabela. Diga que eu o amo muito...

- Karen... Não! – Olhei para a senhora de meia idade. – UMA AMBULÂNCIA PELO O AMOR DE DEUS!

Primeiro os olhos fecharam e a pulsação diminuiu até se tornar inexistente. Havia uma vida ali naquele corpo lutando para se manter, mas não era a da esposa do único homem que amei. Karen morreu nos meus braços, segurando a minha mão. O rosto dela estava molhado devido as lágrimas. As lágrimas de uma mãe jovem que morrera no auge de sua vida. As lágrimas de uma esposa que nunca veria seu bebê ser segurado nos braços pelo pai e o marido que tanto amou. As lágrimas de uma vitíma do crime no Rio de Janeiro.

Parte do céu parecia ter perdido seu brilho com mais aquela vida que se fora tão jovem. Tudo aquilo ao meu ver era cruel e inaceitável, porém, as pessoas ao meu redor pareciam ter se acostumado com a facilidade em que vidas e mais vidas acabam no Rio de Janeiro.

Não vi mais nada do que aconteceu após Karen falecer nos meus braços. Me recordo muito vagamente de Jorge me segurando, tentando me trazer para a realidade. Não sei como ele parou ali, talvez eu mesma dentro do meu choque tenha ligado para a única pessoa que saberia lidar com aquilo tudo e principalmente com Leonardo. Eram melhores amigos, se conheciam, se entendiam. Eu não poderia lidar com aquilo.

Num piscar de olhos, mediante a toda aquela tragédia, a noite chegara e eu estava no hospital, mas em outra sala, longe da possibilidade de encontrar Leonardo. Jorge entrou na sala e ficou ao meu lado. Pela primeira vez me permiti desabar. E foi um choro que doía demais. Doeu, me fez perder o ar, me fez odiar Deus, o universo, me fez odiar Leonardo. E pensar em Leonardo me fez chorar uma oitava acima. Imaginar a dor dele fez doer em mim. Imagina-lo recebendo aquela notícia tão cruel me fez ter vontade de ir até ele e abraça-lo e dizer que eu faria qualquer coisa para ter mantido Karen viva. Mas aquilo tudo era muito além de mim, dele e toda a nossa história. Perguntas começaram a me corroer, tornando o meu choro além de ininterrupto, também angustiado. Eu, de todas as pessoas do mundo era com certeza a última que Leonardo gostaria de ver.

- Jorge, eu... – Tentei falar, mas soluços de choro me impediam. – Eu juro, Jorge...

Mesmo que não fossemos mais tão íntimos, me apeguei ao abraço de Jorge como fosse o último.

- Eu sei, eu sei. – Ele me apertou nos braços dele. – Eu sei que você tentou, Bela. Ela também tentou resistir, mas não conseguiu.

- Jorge, ela não queria morrer! Eu tentei fazer com que ela ficasse viva... – E mais lágrimas vieram, me impedindo de pronunciar uma frase coerente. – Eu sinto muito! Diga ao Leo que eu sinto muito.

- Ele está internado, Bela. – Jorge respirou fundo, e vi que ele lutava contra a vontade de chorar. – Eu precisei... – Ele balançou a cabeça em um não incompreensível. – Eu precisei contar para ele. – Foi a minha vez de abraça-lo. – Leo teve uma crise nervosa e foi internado. Os médicos estão tentando salvar a Bárbara. Os pais dele e também os dela estão aqui.

- Foi horrível, Jorge. Foi horrível. A pior cena que eu já vi na minha vida.

- Eu imagino. Eles estavam tão bem. Planejando a chegada da bebê. De verdade, não sei o que vai ser do Leo.

Jorge e eu vimos quando um médico passou para uma sala ao lado e por algum motivo que jamais entenderei, me levantei e o segui até seu destino.

De costas para mim, vi quando ele respirou fundo, passou as mãos uma na outra e entrou na sala. O silêncio durou apenas 5 segundos.

Jorge parou ao meu lado e juntos nós ouvimos o primeiro grito de desespero. Era da mãe de Karen. Nunca existirão palavras suficientes para descrever a profunda dor materna naquele grito. Depois a mãe de Leonardo parecia confortar a dor da outra mãe. Mães se entendem, mães compreendem a dor de uma perda desse tipo, mães sabem como não é natural um filho partir antes dos pais.

Me agarrei a Jorge novamente e agora nós dois chorávamos.

- E a bebê? – A mãe de Leonardo perguntara, chorosa. Como sua voz era mais receosa, imaginei que ela o chamou num canto para perguntar.

Dentro da minha cabeça a resposta do médico pareceu em câmera lenta, mesmo que ele não tenha demorado nem 5 segundos para responder.

- Sobreviveu. É uma linda menina!

Tamiris Vitória
Enviado por Tamiris Vitória em 09/06/2017
Reeditado em 15/02/2022
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