Crime na Academia

Fazia tempo que desejava praticar academia e nunca tinha decidido, mas a aproximação dos 40 me fez tomar coragem e lá estou assiduamente há quase um mês.

Desde o primeiro dia, uma coisa não me saia da cabeça, estudava visualmente aquele ambiente e não chegava a um veredito. Estava quase desistindo de tal ideia quando nesta semana me veio um súbito raio de criatividade, mas ainda queria saber se realmente era a melhor opção. Ontem, depois de fazer uma série, usando o mais simples dos aparelhos, fui falar com a assistente.

Ela estava sentada sobre um aparelho e observava os assíduos frequentadores do lugar.

– Preciso perguntar sobre uma coisa! – ela fez cara de quem se prepara para responder uma daquelas perguntas chatas.

Sentei em outro aparelho e fiquei diante dela.

– Se fosse cometer um crime, qual desses aparelhos você usaria?

O assunto inusitado a fez rir e ficou imediatamente interessada.

– Um crime?

– Não me refiro em amassar propositalmente o dedinho de alguém. Estou falando de um assassinato! – eu pensava que ela ia ficar assustada, mas os olhos brilharam.

– Você quer matar alguém? – indagou empolgada e baixo, já lançando um olhar ao nosso redor procurando o aparelho ideal.

– Eu usaria um peso desses! – e fez gestos com as mãos – Esmagaria a cabeça... com bastante sangue!

– Estou pensando numa coisa mais discreta, que pareça acidente! – respondi, certo de que tinha encontrado a parceira que precisava.

Outra vez, ela estudou rapidamente o ambiente e apontou um aparelho usado para trabalhar o peitoral, por sinal, muito desengonçado, mas eu tinha escolhido o meu preferido e fomos até lá.

O objeto em questão é uma maquina desprovida de motor em que a pessoa se posiciona e fica num formato de V um pouco mais aberto e a carga é empurrada com os pés, forçando os músculos das coxas.

– É mesmo! – disse ela – A gente coloca bastante peso aqui!

– É só destravar e o peso desce! – argumentei esperando obter a concordância dela.

– E ai, esmaga! – comemorou quase num sussurro e sugeriu – Agora vamos escolher quem você vai matar! – falou como se tramasse um segredo.

Então, expliquei que não se tratava de um crime da vida real, mas uma trama para um futuro romance policial.

Depois de vários anos atendendo pessoas, ainda me surpreendo com os nomes que de vez em quando aparecem.

Há alguns meses, atendi uma senhora que tinha cara de dona de casa e não chegava ser o que podemos chamar de, uma mulher de meia idade.

Ela queria fazer o CPF dos três filhos. Os nomes das crianças eram longos, parecidos e inventados por ela.

– Muito peculiar. Quem escolheu esses nomes? – perguntei.

Ela deu um risinho e declarou cheia de orgulho.

– Eu gosto de nome assim, diferente!

– Exclusivos, eu diria, né? – respondi torcendo que ela percebesse o mau gosto.

Minha vontade era recusar fazer os CPFs, mas infelizmente, não me deram tal prerrogativa e tive de fazer aqueles documentos com palavrões que pareciam nomes científicos de vegetais.

Em outra ocasião, dei de cara com uma situação muito parecida, porém, mais engraçada. Pelo menos, foi o que achei e tratava-se de uma senhora.

Como é norma, eu pedi a carteira de identidade e tive dúvida se estava lendo corretamente, o que considerei ser um erro crasso do cartório. O nome em si, não era estranho, a pronúncia era boa, mas a grafia: Wagna, era muito sugestiva.

Imaginei que o correto seria um V no lugar do W e faltava um i para formar silaba com o g, daí pronunciei mentalmente e várias vezes a palavra correta. Minha vontade era rir, mas só pude fazer isso com os olhos, pois o profissionalismo não pode ser abalado por um simples nome de pessoa.

Um nome desses, considerei na hora, é matéria-prima inesgotável para bullying, prática hoje em dia, muito em voga nas escolas. Desejei ser criança e estudar com ela na mesma sala de aula, pois a diversão estaria garantida por vários anos.

Os astrólogos dizem que o nome diz muito sobre a personalidade e até o sucesso da pessoa, mas particularmente, penso que revelam muito mais a falta de bom senso dos pais.

Eu queria aproveitar o feriado para fazer um passeio. Na véspera, passei no posto e enchi o tanque, não me assustei com o valor, porque sabia do preço da gasolina. Calibrei os pneus, toquei a viseira do capacete e fiz troca de óleo, pois uma viagem precisa ser realizada com segurança e em casa, procurei pela capa que fazia tempo não usava.

No outro dia, era ainda bem cedo quando rachei no mundo. Eu não tinha um lugar especial para ir, apenas estava com saudade de andar de moto e o feriado era um dia muito oportuno.

O sol me pegou, bateu na minha cara quando estava longe e já tinha passado por uma cidade. Muita gente teme as curvas e os morros, eu gosto e aprecio o vento, sem falar na paisagem que é sempre um encanto e chama a atenção.

Era por volta das nove e aproximava de uma dessas incríveis cidadezinhas do interior, quando dei de cara com uma blitz da polícia rodoviária, algo incomum por aquela região e presenciei um diálogo jurídico.

Tratava-se de outro motoqueiro que tinha sido parado antes de mim e esbravejava contra a atuação da polícia que fazia questão que o Código de Transito fosse seguido à risca.

– O senhor vai ser autuado – disse o policial – por não usar capacete!

– Como não? Isso é um capacete! – alegou batendo no objeto arredondado.

– O senhor não está usando o capacete! – acusou o homem da lei que pensava estar com a razão.

– Prova que não estou usando!

– O capacete está no seu braço, meu senhor! É na cabeça que usa!

– Qual é o problema? A Lei não diz onde deve ser usado! – falou nervoso e também achando que estava com razão.

O policial olhou para os colegas parecendo não acreditar e falou com firmeza.

– Subentende que capacete se usa na cabeça! E cotoveleira, no cotovelo!

– A Lei tem que ser clara! – disse o homem – E o Código de Trânsito não fala onde é para usar! Eu não aceito ser multado por esse motivo!

Aquela discussão era muito interessante, mas formava uma fila de carros e motos parados, e o contendor foi conduzido para a margem da rodovia.

Infelizmente, fui liberado e não pude acompanhar o desfecho daquele debate inusitado.

Segui naquela viagem refrescante e por um tempo pensei no confronto entre o policial rodoviário e o motoqueiro. Eu, no lugar do policial, aplicaria a multa, pois este é o entendimento atual sobre a Lei de Trânsito – capacete na cabeça e multa, caso não esteja. O motoqueiro, se considerasse a punição incorreta é que recorresse depois. Mas enfim, minha cabeça, além das agradáveis emoções da viagem, tentava esquecer um crime já antigo para planejar um novo. Isto é, já fazia tempo que trabalhava num assunto que se estendia por mais de dois anos, revisões que não acabavam mais e superava com louvor, três centenas de páginas. Estava cansado daquele caso e queria outro.

As viagens são muito uteis, ajudam espairecer, principalmente uma cabeça como a minha, mas logo voltei o pensamento para o crime da academia que era, há alguns dias, o assunto principal que ocupava meu pensamento, mas ainda faltava decidir sobre coisas muito importantes, pois um crime, não se faz às pressas, precisa ter paciência, esperar um momento oportuno e depois, é claro, preparar para as consequências, elas viram imediatamente.

Apesar de já ter em mente dois personagens para vítima e suspeito principal, eu precisava decidir entre um e outro, sobre quem ia morrer e quem ia ser suspeito e levar em conta que tanto vítima quanto suspeito, tem de ser alguém com bons perfis, não podiam ser qualquer um. O personagem tem de ser bom em sua criação e se for querido, ainda melhor, pois quem vai lamentar a morte de um canalha?

E depois, eu não poderia simplesmente esmagar uma pessoa num aparelho sem nenhuma justificativa, um crime precisa ter uma causa. O que iria dizer quando a verdade fosse descoberta?

– Ah, estava com vontade de matar alguém! – Claro que não. Isso é coisa de psicopata e eu não sou, pelo menos não considero.

Mesmo que neste caso, eu não tinha a intenção de esconder o corpo, era uma das coisas que eu precisava pensa, pode ser que na hora da execução, isso fosse necessário e no meu dia-dia, todos os lugares que olhava – caixas, banheiros, depósitos, cômodos fechados, montes de areia, tambores de lixo expostos na rua e os tão enigmáticos bueiros, tudo era observado.

Faço uma ressalva para os bueiros, são sujos e misteriosos, de boca aberta ameaçam todas as pessoas que passam diante deles – e imaginava um corpo ali dentro. Como ele ficaria e qual a reação de quem o encontrasse? A descrição precisava ser perfeita em todos os momentos.

Esse assunto de ocultação não é muito agradável, devia cuidar disso sozinho, mas inadvertidamente, disse para minha esposa que no momento arrumava a sala de nossa casa:

– Dentro desse sofá, é um lugar bom para esconder um corpo!

Ao contrário da garota da academia, que ficou radiante e se colocou a disposição, ela ficou horrorizada. Fez cara de aborrecida, é assim que fica todas as vezes que falo de um crime, mesmo sabendo que se trata de uma ficção.

– Pedrito, você só pensa em matar alguém! Acho que tenho que ir embora, antes que seja eu mesma escondida aqui dentro.

E sem querer, ela fez uma observação valiosa.

– Esse não é um lugar bom para esconder um corpo, ele vai ser descoberto assim que começar feder.

Claro que sim, ninguém vai esconder um corpo dentro de um sofá e achar que estará seguro para toda a vida, mas é preciso pensar também num lugar provisório. Já ouviu falar no plano B? Tem de se pensar nele com muita seriedade, pois se o A falhar – o que não pode acontecer –, ele deve ser mais eficiente do que o que falhou e cada etapa precisa ser muito bem planejada. Qual é a graça de realizar um empreendimento sabendo que vai dar errado?

Apesar de tudo isso, eu não queria usar o plano B, e estava certo que não ia precisar de um esconderijo, já que o propósito era deixar o cadáver preso na maquina de musculação.

A ficção precisa ser mais interessante que a realidade, pois a realidade, muitas vezes é chata e cheia de momentos em que nada acontece. Por isso, precisa ser planejada e executada com o máximo de esmero e eu, continuava pensando em lugares apropriados para esconder o corpo, afinal, quando se pretende matar uma pessoa, é preciso decidir o que vai fazer com o cadáver e eu precisava de tal plano B. Apesar de descartar totalmente sua utilização, ele tinha de ser perfeito. A utilização de um segundo plano, significa que o primeiro falhou e isso é grave para um administrador, mas o plano alternativo tem de existir, por isso, não saia da cabeça a ideia de um local para esconder o aquele futuro corpo.

Fui numa lojinha de conveniência que ficava nas proximidades de minha casa. A dona era uma senhora idosa que estava por volta dos setenta; vestia com frequência camisa abotoada até em cima, combinando com saia e um tipo de tênis que foi muito usado no passado. O cabelinho muito ralo, amarrado na nuca por um elástico e usava óculos presos num cordão transparente de silicone. Por causa da idade, a cacunda estava um tanto curvada na altura dos ombros, parecia muito tímida e atendia pelo nome de dona Amélia.

Era de tarde, as luzes estavam parcialmente apagadas, numa clara medida para economizar energia elétrica. Muito séria, porém gentil, ela veio atender e trocou meu nome chamando de Pedro, mas muita gente faz isso, pensando que Pedrito é apelido.

Eu disse que precisava de duas ou três caixas de papelão, caso ela tivesse.

A parede dos fundos da lojinha era totalmente encapada por uma cortina que fazia tempo que estava ali. Ela levantou um lado do pano e descobriu uma porta.

– Uma porta escondida! – pensei imediatamente com a cabeça cheia de imaginação.

Ela empurrou a porta, olhou por trás dos óculos e parecendo levantar muito a cabeça para ver o meu rosto.

– Vem aqui! – disse ela.

O tal cômodo era uma saleta retangular, abafada e iluminada precariamente por uma luz amarela. Não havia quase nada que pudesse ser vendido e o chão estava cheio de caixas de papelão em que as maiores eram do tamanho de uma caixa de forno micro-ondas.

– Escolha as que você quiser! – disse dando passagem para que eu pudesse me mover.

Já dentro daquele cômodo sem a menor organização, olhei no chão e nas prateleiras e pensei alto.

– Esse lugar é bom para esconder um corpo!

Achei que ela fosse um pouco surda, pois se confundiu com o que falei.

– Um corpo? Onde está? Não fala uma coisa dessas, pelo amor de Deus!

Ela tinha entendido errado e preferi não insistir no assunto de ocultação.

– Falei do meu corpo, dona Amélia e a cabeça! Dói tudo.

– Corpo sem cabeça? Num embrulho? Onde está? Que eu não estou vendo! – e parecia apavorada diante dessa possibilidade.

Expliquei que estava com dor no corpo e dor de cabeça e ela, não mais assustada, olhou para cima mostrando o branco dos olhos e deu um risinho.

– Ainda bem, né? Já pensou um corpo escondido aqui?

Sim, eu estava pensando nisso, mas não respondi nada, não queria deixar aquela senhora preocupada. Escolhi duas caixas e coloquei uma dentro da outra.

Agradeci aquela senhora simpática e quando estava saindo ela disse:

– Essa caixa não cabe um corpo dentro, nem adianta tentar!

Velha danada, não era surda! Virei outra vez e disse no mesmo tom:

– A menos que seja um corpo de criança!

Ela fez um único aceno com a cabeça e riu com uma carinha quase malvada.

– De criança cabe, mas tem que ser criança pequena!

Fiquei admirado e me retirei sorrindo. Ela veio atrás e ouvi outra vez:

– Não vai cortar as pobrezinhas! São duas, né?

Apesar de saber como o atentado seria feito, havia uma preocupação sobre a eficiência do meio, ou seja, a máquina de musculação. Ela precisava ser examinada minuciosamente para checar sua capacidade no quesito periculosidade. Sempre há a possibilidade de falha e se falhasse, o que eu ia fazer? Correr ou sair no braço? Ter o risco de ser incriminado por uma tentativa de homicídio, ou ainda pior, ser morto pela pessoa escolhida para ser vítima?

Assim como pensava num lugar para esconder o corpo, também pensava na arma do crime e tudo lembrava esse item de suma importância.

A arma do crime precisa ser eficiente: – a pistola não pode falhar, a faca não pode quebrar, o barbante não pode rebentar e o veneno precisa ser forte. Há uma infinidade de coisas que podem ser usadas como arma e não vou descrever os objetos para minhas lembranças não ficarem tão assustadoras.

A maioria dos escritores, quase todos. Têm mais de uma profissão. Muitos escrevem para jornais, ou são colunistas em revistas. Eu trabalho num banco estrangeiro que finge ser brasileiro e um dia, atendi um sujeito que estava por volta dos 27 e de boa aparência.

O nome dele era alguma coisa com W e eu sempre impliquei com nomes que têm essa letra e por isso, não devia ter esquecido, mas vou chamá-lo de W até lembrar.

O W tinha aderido à nova moda, não a da barba que cobre todo o rosto, mas a do bigode lustrado e torcido para cima, do tipo que eu chamaria de guidão, mas ele, com mania de francês, chamaria de vintage.

Ele queria saber sobre uma conta e apresentou o cartão identificado com um nome de mulher.

– De quem é? – perguntei, e ele respondeu em francês quase fazendo biquinho.

– Mon petit.

Dei um riso um tanto debochado e perguntei olhando mais para o bigode que para aqueles olhos de gato quando acaba de almoçar um rato.

– Eu só falo português!

Ele deu um leve riso e os bigodes de Poirot moveram dos dois lados.

– Minha pequena! – traduziu. Certamente me achando um tosco por nunca ter ido trabalhar na França.

– Que idade tem a sua pequena?

– É minha esposa. – declarou.

– Ah! – fiz com cara de sério, mas o tom insinuava outra coisa.

Apesar de ser um jovem, eu o comparei a um homem de sessenta que casa com uma mulher de 18.

Expliquei que não podia dar a informação e ele ficou ofendido, pois era sua esposa e ele, eventualmente colocava dinheiro, inclusive mandava da França.

– Mesmo assim! O sigilo bancário é lei.

Eu não disse, mas se era o marido – na minha opinião – era um motivo a mais para não dar a informação, pois sempre considerei essa espécie (marido) a mais perigosa que existe e é capaz de coisas terríveis. Meu conselho é que nunca se deve subestimar um marido!

Como ele insistia, eu fechei a cara numa tentativa de desencorajá-lo, mas ele estava disposto a conseguir o acesso e chegou a dizer alguns desaforos.

– Só duas pessoas podem receber informação, os interessados e os xeretas, mon cher! – as duas últimas palavras, foram num francês rude, as únicas que eu sabia, aprendidas em filmes e faladas para mostrar que sabia alguma coisa de francês, o que foi uma besteira!

– Quem são os interessados? – quis saber numa esperança de conseguir o que queria.

– Os interessados são: Titular e procurador! Os demais fazem parte do outro grupo!

Claro que isso não é verdade, muitas pessoas não sabem sobre sigilo bancário, ou por causa da confiança e na maioria das vezes, não veem nenhum problema em saber da vida financeira do outro. Eu jamais diria aquilo se não tivesse sido insultado e ele não fosse tão pedante, mas enfim, ele foi embora e eu continuei no meu trabalho.

É incrível que muitas vezes, basta encontrar um estranho uma vez e passamos a nos deparar com ele todos os dias e isso aconteceu com o W. Eis que estava no supermercado, comprando aqueles itens de última hora, de longe, avistei o setor de churrascos e lembrei-me do assassinato. Era natural, pois ultimamente só pensava nisso e fui estudar os espetos. Chamou a atenção, um com duas hastes paralelas, cilíndricas, grande e com pontas afinadas. Não tinha dado importância a um sujeito que estava de costas.

– Com os homens gostam de carne! – pensei – Principalmente os mais jovens.

Ele já tinha me visto antes e apenas olhou meio por baixo.

– Alguém precisa morrer para que eu possa almoçar no fim de semana!

Só reconheci quando vi meio de lado aquele bigode que parecia um anzol.

– Na minha casa não se come carne! – eu respondi.

Ele ficou de frente. Deu um riso mostrando por baixo dos pelos, a coroa branca dos dentes e pensei que ele ia falar mais uma frase em francês e se falasse, eu ia repetir a mesma da outra vez – oh, mon cher!

– Por que um vegetariano iria ao supermercado comprar um espeto de pontas afiadas?

– Não estou comprando – respondi –, só preciso de uma arma eficiente!

– E tem de ser um espeto? – falou sem muito interesse e voltou os olhos para os objetos na prateleira.

– Para o que eu preciso não! Como vou espetar alguém numa academia usando isso?

Ele ficou um tanto desconfiado e ao mesmo tempo interessado.

– Alguém te ofendeu e você quer matar?

Contei, meio por cima sobre o projeto e ele considerou suspeito.

– Sério isso? Na minha opinião – falou testando a resistência do mesmo espeto que eu tinha examinado –, pode ser um pretexto. Você deve estar realmente interessado em matar alguém, mas quem vai provar ainda?

Nossa conversa durou cerca de cinco minutos e sai deixando o W com suas compras e a última palavra foi dele:

– Tenho certeza que os leitores do gênero estão ansiosos para ler a sua história!

No dia seguinte, encontrei o W na academia. Isso não é incrível?

O netinho de dona Amélia

– Vai na minha casa. – falou dona Amélia com aquele olhar curioso e debaixo para cima – Você precisa conhecer meu netinho. Está morando comigo agora, ele é um amor. Precisa ver que lindo que ele é.

Eu estava realmente interessado nos dotes criminosos daquela senhora frágil, porém, tinha percebido, que ao contrário de tola, ela era muito perspicaz. Na juventude, certamente, tinha sido perigosa e com uma boa amizade, tinha certeza, que ela contaria alguma coisa interessante sobre seu passado.

– Pedro. É Pedro, né? – perguntou levantando a cabeça.

– Pedrito!

– É mesmo, eu sempre esqueço. Você escreve aquelas histórias horríveis, sobre crimes e polícia. Eu até lia isso, apesar de não gostar muito, mas agora, com as vistas fracas, gasto meu tempo lendo coisas mais importantes. Leio muito os jornais, que hoje em dia não valem mais nada. Ou falam de política, por que são pagos pelos políticos, ou falam mal por que não são pagos por eles, e no fim é a mesma coisa – andou de um lado para o outro como se tivesse mania de arrumação –, mas ainda leio alguma de vez enquanto para não perder o saldável hábito.

– Ler mantém a mente mais ativa. – falei quando ela deu uma trégua.

– Se pensa que estou velha, ao ponto de fazer palavras cruzadas, está encanado, viu Pedro? Trabalho aqui e ainda arrumo minha casa.

– Como vai me receber em sua casa, se trabalha o tempo todo?

Ela fez uma cara de séria e procurou uma cadeira para sentar.

– Você está enganado. No sábado, eu não trabalho e meu netinho, agora me ajuda um pouco. Você precisa conhecer, ele é muito agradável.

No sábado, como prometi. Fui visitar minha fonte de pesquisa, a dona Amélia. Ela veio me receber no portão e estava vestida do mesmo jeito que se vestia para o trabalho – camisa com estampa desbotada abotoada até em cima, saia e tênis.

– Você veio, Pedro? Eu não esperava que viesse!

– Como não esperava? Se combinei com a senhora!

– Ah, claro que sim! Eu não esqueci, que cabeça a sua. Quero dizer que pensei que não vinha. – levantou a cabecinha, olhou no meu rosto – Ah, e seu nome nem é Pedro, né?

– Pedrito!

– Sim, eu sei. Você diz todas as vezes que eu erro. Não sei por que ainda me confundo.

O chão da casa estava limpo e como era de esperar, não havia tapetes, pois os tapetes, geralmente são inimigos de pessoas idosas. A sala não era exatamente um lugar bem arrumado. A iluminação também não era grande coisa e a claridade vinha mais de uma janela sem cortina.

No braço do sofá, tinha pelo menos três revista de palavras cruzadas e uma caneta sem tampa, já bastante usada e numa estante de madeira, já antiga e empoeirada tinha alguns livros e via-se que eram policiais e os jornais, que ela afirmou que lia, não tinha nenhum.

Olhou rumo a uma porta aberta que combinava para outro cômodo e chamou:

– Bento! Geraldo Bento! Vem aqui meu filho! – sentou à minha frente – Quero que meu netinho conheça você. Ele está muito sozinho, desde que chegou e ainda não fez amigos.

O netinho de dona Amélia, era um sujeito de mais de trinta anos e devia pesar pelo menos oitenta quilos. Estava vestido numa bermuda que deixava a mostra os joelhos que tinham o tamanho de uma bola de futebol e assemelhava a um jovem touro.

– O que foi, vó? – olhou para mim e para ela enquanto passava a mão numa coisa muito parecida com a barba de um velho samurai.

¬ ¬– Quero que você conheça o Pedro, ele está escrevendo uma daquelas historias idiotas, mas que muita gente gosta. Quem sabe, você pode ajudar ele!

O tal netinho ofereceu a mão pesada e falou timidamente:

– Como vai com o senhor?

– Meu nome é Pedrito. – o outro balançou afirmativamente a cabeça de forma incomodada e pensei que se tivesse saído a avó, ele certamente, seria um perigo social.

– Ele está preocupado com o que vai fazer com o corpo. – disse a velha –, e ainda não sabe direito, nem por que a pessoa precisa morrer!

– A morte dever ser de acordo com o personagem. Se for querido, o motivo deve ser torpe. – expliquei.

– Como torpe? – quis saber dona Amélia. – O motivo não tem que ser torpe!

– Coisa do tipo: matei por que era fumante!

– Matar uma pessoa por ela ser fumante? Que ideia! Isso não é motivo. As pessoas vão ficar indignadas.

– Então, motivo torpe deixa as pessoas indignadas. – justifiquei.

– Sabe, Pedro? Eu estou com medo de ser assassinada por você! Ainda bem que o meu netinho é mais forte que você. Se é capaz de matar uma pessoa só por que ela fuma, pode muito bem me matar por que sou idosa. – e olhando para no neto – Não me deixa sozinha com ele! – novamente me encarando sem precisar levantar a cabeça – Você já matou alguém de verdade?

– Não sou um assassino, dona Amélia!

– Ah, que pena! – lamentou – O meu neto já. – e outra vez olhando para aquele homenzarrão com cara de touro, sentado do meu lado e ocupando grande parte do sofá – Não já, Bento? Conta pra ele! Conta logo.

O Bento ficou um pouco envergonhado e demorou reagir.

– Conta, se não, eu vou contar!

– Vó. – disse ele – Eu nunca matei ninguém. A senhora fica inventando essas coisas... as pessoas ficam com medo da senhora.

– Bobagem. Tem que ficar com medo de você. Ele precisa de uma história e não tem que ser verdade, basta inventar um pouco. Ninguém aqui está querendo comprovação de nada. Conta que você matou! Como foi? Diz como foi! O que fez com o corpo? O que usou para matar? Conta tudo, anda!

– Vó, eu nunca matei. A senhora sabe disso! – protestou sem jeito.

Ele continuava envergonhado diante da insistência para que contasse uma história e por fim, eu quis saber dela.

– E a senhora, dona Amélia, já matou alguém?

– Mas como? Que ideia! Quando era menina, não podia por causa dos meus pais. Depois, não podia por causa do marido. Quando ele morreu, não pude por causa dos filhos, mais tarde, por causa dos netos e agora já sou velha! – ela deu um risinho e piscou os olhinhos com fascínio – Deve ser uma emoção grandiosa! Eu imagino que sim. Você aprontar, fugir da polícia. Inventar um álibi, enganar tudo mundo, ser mais esperto que eles...

– Ele morreu de quê? – perguntei esperando que ela entendesse a intenção da pergunta.

– Ele quem? O meu marido? Você devia perguntar claramente se eu o matei! Ele morreu de cirrose!

– Ela só lê coisas improprias para a idade dela. – disse o neto. – Por isso que tem essa mente.

Dona Amélia levantou, passou as costas da mão nas nádegas para descolar a saia. – Vou fazer um café! – anunciou.

Eu protestei, disse que não precisava se incomodar, mas ela não deu ouvidos e saiu.

Enquanto aquela senhora esperta estava ausente da sala, eu conversava com o neto sobre minha frequência na academia de ginástica, coisa que ele também estava interessado.

Ela voltou poucos minutos depois, não com uma xícara de café, mas com a garrafa e as xícaras numa bandeja e notava-se que eram usadas em ocasiões especiais.

– Está com medo de tomar meu café, né? – perguntou ao ver que eu olhava para a garrafa. – Eu não coloquei veneno não!

– Seria um motivo torpe! – respondi pegando o café que ela entregava.

– Por que motivo torpe? Não se sabe ainda por que eu mataria você! Eu poderia dizer que estávamos sozinhos, você me atacou e foi em legitima defesa!

– Ninguém mata alguém com veneno por legitima defesa, vó!

Ela pensou um pouco com cara de mocinha confusa.

– É mesmo, né? Que cabeça a minha, isso não funciona!

Ela sentou com sua própria xícara de café num pires e observei que suas mãos eram muito firmes, estudou atentamente a minha aparência.

– Parece que você não tem muita imaginação! Precisa de uma boa história e nós vamos ajudar. Não vamos, Bento?

Duas semanas depois, dona Amélia desceu de um táxi e bateu palmas diante do portão da minha casa e tentava encontrar uma fresta por onde pudesse enxergar do lado de dentro.

– É aqui que mora o Pedrito? – perguntou ao ser atendia.

– Pela discrição, acho que a senhora seja a dona Amélia. – respondeu minha esposa.

– Eu mesma. E você? Acredito que seja a mulher dele. Qual é seu nome? Você é uma graça!

– Somos quase xarás, meu nome é Amália.

– Se fosse uma daquelas histórias inglesas, seria senhora Avelã. Não é esse o sobrenome de família?

– É. – respondeu minha esposa – Só que eu não aderi ao sobrenome da família dele.

– Está certa! Eu odeio esse negócio de mulher mudar o nome por causa do marido. Isso é machismo! É a mesma coisa de marcar com ferro na pele da gente. Eu fui muito burra, mas na minha época, não tinha esse entendimento.

Dona Amélia ia falando e entrando.

– Rosas! – exclamou.

De um lado no terreno, entre a casa e o muro da frente, tinha um espaço quadrado, onde foram plantadas, quase uma centena de pés de rosa das mais diversas espécies e cores. Os pés tinham sido plantados muito próximos uns dos outros e escorados com treliças de construção e as ramagens iam sendo entrelaçadas a medida que cresciam. Somente os cachos pendiam e isso, diminuía as ameaças dos espinhos e facilitava a limpeza.

Ela parou para admirar as roseiras, mas como costumava omitir o que realente sentia, disse:

– Não suporto flores, lembram velório! E eu não gosto de velório, você sabe, né? Velório, pra mim, só se o defunto for muito importante, e olhe lá. O convite deve ser feito com a maior antecedência possível! Falando em velório, onde está o seu marido? Ele não está trabalhando numa coisa dessas?

– Ele está! Foi uma sorte encontrar ele em casa.

– Ah, Amélia! Duas Amélias juntas nuca dão certo.

– Eu sou Amália.

– É mesmo, é a segunda vez que você fala e eu vou continuar errando, mas como ia dizendo, eu prometi ajudar com algumas ideias e resolvi tentar a sorte.

Aquela velha falastrona entrou na casa com os olhos investigativos examinando cada canto da casa.

Eu estava no meu escritório e escrevia naquele momento em que minha esposa anunciou a presença daquela senhora tão peculiar.

Levantei de minha cadeira e dei com ela ainda pé na sela.

Dona Amélia começou um olhar de baixo para cima e terminou com a cabeça levantada. Firmou em meu rosto, por fim exclamou:

– Por que está vestido assim? Não devia estar de pirata. Devia estar de bandido! Já que quer cometer um crime.

Por insistência do meu filho que ainda não tinha quatro anos, mas já era fã de piratas, tinhas comprado fantasias para nós dois e incluía, além da roupa, bota, chapéu de três pontas e até próteses para os dentes e tínhamos brincado de piratas naquela tarde, até que ele dormiu de cansado e eu resolvi continuar fantasiado.

– Eu prometi ajudar e vim só para dizer que até agora não tive nenhuma ideia genial. De sua parte, como está?

– Estou fazendo uma sinopse.

– Está fazendo uma sinopse? Você é muito metódico! Acredito que no passado não se fazia isso, e olha que as histórias que valem apenas, são todas daquela época!

– A senhora, dona Amélia, é muito espontânea. – observou minha esposa.

– Espero que não se assuste com meu jeito, eu acho que já estou ficando caduca!

– Caduca? – indagou Amália – Senhora me parece é muito perigosa!

– Que cabeça a sua! Que mal pode fazer uma mulher da minha idade? – e voltando a mim, ela disse:

– Onde é o seu escritório? Quero conhecer.

Meu escritório era um cômodo de doze metros quadrados e ficava na frente. A mesa era de um modelo que obrigatoriamente tinha de ficar num canto, pois ocupava dois lados da parede, uma cadeira giratória muito confortável e na parede de atrás, tinha uma estante cheia de livros, a maioria era clássicos. Ela olhou a pequena sala quase vazia.

– Aqui não tem nada que possa induzir a sua imaginação. – levantou a cabeça para ver o meu rosto e ela parecia muito pequena quando fazia isso. – O ambiente que você está e os que você frequenta, não ajudam em nada! Você precisa de estímulos.

– A senhora, dona Amélia, já tentou escrever alguma história policial? Eu acho que deveria, pois tem uma imaginação e tanto.

Ela deu um risinho.

– Também acho! – sentou na minha cadeira, os pezinhos ficaram altos do chão. Puxou o teclado, posicionando as mãos – Eu não seria dessas pessoas que têm medo dos próprios personagens que cria. Quando não têm medo, têm pena. Você não pode ter pena dos personagens. Hoje não mais, mas eu já li muita porcaria. Outra coisa que detestava, era ser enganada por um autor incompetente que não sabe fazer isso direito e até hoje, se pego uma coisa ruim, minha vontade é telefonar para o autor e xingar ele. Dúvida que eu faria isso?

– Suas dicas, dona Amélia, são muito valiosas. – isso era verdade, eu pensava muito nas coisas que ela falava.

Aquela sincera senhora, levantou da minha cadeira e se prontificou para ir embora, já tomando o caminho da sala, encontrou com minha esposa que vinha da cozinha e ofereceu café.

– Você fez agora? Mas nem deu tempo! Eu não gosto de café frio.

A Amália riu daquela espontaneidade. – Quando a senhora chegou, eu estava acabando de coar.

– Se é assim, vamos tomar seu café! – e olhado minhas botas disse – Eu não sou fã de piratas. Na realidade, são ladrões.

Assim que tomou o café puro, pois recusou comer um pedaço de bolo, dona Amélia se colocou de pé e despediu ao mesmo tempo em que falava:

– Vou caminhando, precioso pensar um pouco. Ainda nessa semana terei uma ideia genial, ai, eu dou um jeito de você ficar sabendo. – e quando estava já chegando perto portão ela parou.

– Ah, minha filha. Já estava esquecendo! Faz pra mim umas mudinhas de rosa. Quem sabe eu tenho sorte!

Eu não sabia o que ela queria dizer com “ter uma ideia genial”, pois eu já tinha a minha história que estava bem encaminhada e só precisava pensar em alguns detalhes. Porém, não podia negar, aquela velha falastrona tinha boas ideias.

– Ela é tão espontânea! – disse minha esposa.

– É mentirosa! Tudo o que diz que não gosta, na verdade, ela adora! – expliquei.

Chamava a atenção que todas as pessoas que tinham tomado conhecimento sobre meu projeto, tinham, de alguma forma, tomado parte dele. Mesmo sem ter pedido ajuda, todos, incluindo minha esposa, de uma hora para outra tomou a decisão de frequentar a academia e no mesmo horário. Era impossível o tema de assassinato não ser o principal assunto, de forma que outras pessoas acabaram se envolvendo.

A própria a dona Amélia que há muitos anos cuidava de sua lojinha de conveniência passou fechá-la mais cedo duas vezes na semana e aparecia vestida naquele mesmo uniforme, caminhava por meia hora numa esteira e eu a comparava a um hamster velho na roda de exercícios.

Ela era, sem dúvida, a pessoa mais idosa daquele horário. Fazia seus exercícios, muito calada, certamente imaginando alguma coisa genial para ajudar no meu crime e nunca ia embora sem ir ao banheiro que ficava no fundo da academia e só Deus era capaz de saber o que passava por aquela cabecinha de cabelos pintados. Muitas vezes, parava, olhava aquelas pessoas fazendo muita força e examinava os aparelhos.

Aquela assistente que foi a primeira pessoa com quem falei do assassinato, fez uma pergunta muito interessante.

– Se acontecesse um crime aqui, a academia seria fechada?

Ela estava por volta dos vinte e dois, não mais que isso, e atendia pelo nome de Taysa. Apesar de magra, o corpo não era tão definido. O que significava que era nova naquele trabalho.

Dei uma olhada geral ao nosso redor e ela fez a mesma coisa.

– Um crime capaz de fechar a academia? – minhas sobrancelhas pesaram um pouco – Só se for o dono! – falei.

– O dono? – ela riu e concordou – Sim, só a morte do dono poderia fechar a academia. Ia dar um falatório. A cidade nunca esqueceria – pensando um pouco, ela indagou: –, mas por que matar ele?

Eu dei de ombro, a princípio, não tinha intenção de responder, mas ela estava muito interessada.

– O autor tem de se virar e apresentar uma razão convincente!

Eu não entendia por que todas aquelas pessoas, de uma hora para outra, tinham ficado tão interessadas num crime de ficção e não importava onde, tinham, necessariamente de falar do assunto. E aquela moça, normalmente tão tímida, brilhava os olhos todas as vezes que falava, ou ouvia falar num assassinato. Isso não é muito comum, pois as pessoas têm é pavor.

Geralmente, gostam do assunto, mas quando acontece longe, com gente que não conhecem e era incrível que todos estivessem querendo um crime.

– Ah, Pedrito. Imagino cada coisa para essa história. Mas eu queria mesmo era ver um crime de verdade! Nesse bairro não acontece nada e os crimes, são todos muito interessantes. Você já percebeu que as pessoas socialmente mais conhecidas nunca morrem assassinadas? Quando muito, morrem de overdose de cocaína, ou de acidente de carro. Os ricos, principalmente, gostam de dirigir bêbados e morrem por causa disso, mas assassinadas, essas pessoas nunca morrem.

– As pessoas conhecidas, têm motivos para serem conhecidas e são mais precavidas, não costumam se envolver com certas coisas violentas.

– Isso é verdade, mas e daí, está confirmada a morte no leg press?

– Parece que ele não é muito eficiente. – respondi um tanto desanimado. – Ele não é capaz de causar a morte de alguém. A queda é noventa graus, mas a distância... – ela ficou pensativa e parecia lamentar a minha dúvida. – é muito curta. Não acha?

– Sim. – Concordou sem convicção – E aquele peso que eu falei? Na cabeça... dá traumatismo craniano.

O W, que acabava de aproximar, parou perto, secava o rosto numa toalha e tinha cuidado para não esfregar o bigode que continuava brilhoso e com as pontas torcidas como chifres de búfalo e não parecia muito amigável. Eu pensava que era por causa da má impressão do nosso primeiro encontro.

– Tem se falado muito no seu crime. Cuida para não decepcionar. Parece que já tem até um mutirão para ajudar!

Eu não sabia disso e não me importei, achei que era implicância.

– Leitores – continuou ele –, são como crianças, se se frustrarem, você terá dificuldade para ganhar a confiança! ... Tem até torcida.

O netinho de dona Amélia fez uma saudação um pouco distante e o W saiu com ele, falavam qualquer coisa que não era possível ouvir por causa da música, mas aquele não era um ambiente onde as pessoas se interessavam umas pelas outras, muito menos pelo que elas falavam, por isso, não dei importância para a amizade deles, pois todos ali, estavam muito mais interessados em praticar seus exercícios e olhar nos espelhos.

Quando você está realmente envolvido com alguma coisa, tudo ao seu redor lembra aquela coisa. É como quando sua mulher está grávida, parece que o número de grávidas no mundo, aumenta a enésima potência e nas vitrines, você não vê outra coisa a não ser os produtos infantis: coloridos, fofos e caros.

Nas ruas, maioria das mulheres, se não estão gravidas, estão levando uma criança pelo braço ou no colo, tamanha é a obsessão e quando começa planejar um crime, é assim também.

Eu lembrava o tempo todo e todas as situações, eram mentalmente comparadas sobre o prisma de dar certo ou não, em caso de relacionar com um crime.

Dona Amélia, um dia disse que são poucos os assassinos que se preocupam com o que vão fazer com o corpo, na maioria das vezes, ele fica abandonado na cena do crime e ela tem razão, pois o criminoso, quase sempre, foge desesperado para não ser apanhado e não se preocupa nem com os vestígios do ato.

– Sim. – eu respondi –, mas a ficção precisa ser mais caprichosa. Posso mudar de ideia e querer esconder o corpo, isso pode ser mais emocionante... Registra o desaparecimento do fulano e depois começa a busca pelo corpo, isso ajuda no mistério.

– Olhando por esse lado... – disse ela.

O fato é que esse era um problema ainda não resolvido e certamente, só seria quando o assunto já estivesse devidamente escrito.

Cheguei, era por volta das cinco da tarde. Meu filho que ainda não completou quatro anos veio ao encontro e estava totalmente insatisfeito.

– Onde eu posso encontrar um corpo? Você me ajuda encontrar um corpo?

– Por que você quer encontrar um corpo? – perguntei.

– Pra nada, mas eu quero encontrar!

– Ele já vasculhou todos os cantos da casa e o quintal, procurando um corpo! – disse minha esposa – E a culpa é sua, que fica com essas conversas perto da criança. Ele é muito novo para esses assuntos!

Eu não lembrava de ter tratado sobre ocultação na presença do menino, mas julguei, a princípio, que pudesse ter falado, já que o assunto surgia por toda parte.

Eu estava acomodado no sofá da sala e ele, ainda pensado na mesma coisa veio perguntar.

– Onde posso encontrar um corpo?

– O cemitério e o necrotério, são os lugares mais prováveis.

– Estes não! Quero encontrar um que ainda não foi encontrado!

– Quando for grande – respondi – e se você virar um policial, será mais fácil de encontrar.

– Policiais procuram corpos também?

– Às vezes!

Minha esposa, um tanto nervosa, veio pegar o menino pela mão.

– Isso é assunto algumas pessoas adultas! Não fica pensando nessas coisas. Vai brincar de pirata. – aconselhou enquanto levava para outro lugar da casa.

– Estou querendo encontrar um corpo! – insistiu com um gritinho e eu, sinceramente não me lembrava de ter falado sobre isso na presença dele e fiquei intrigado, pensando quem teria falado.

O crime aconteceu no finalzinho da tarde de uma segunda-feira, por sinal, um dia muito estranho para matar alguém. Geralmente, os assassinatos são cometidos nos fins de semana, ou em alguma festinha. Principalmente naquelas sem muita segurança e com pouca iluminação. Ninguém espera que alguém vá praticar um atentado em plena segunda-feira, principalmente numa academia, lugar, para muitos, de lazer diferenciado.

Ainda mais, num horário em que tinha pelo menos quinze pessoas e o intrigante é que só foi percebido dois ou três minutos depois, quando o criminoso estava na mesma posição das outras pessoas.

A turma daquele horário era na maioria, de jovens homens. Alguns já estavam bem parecidos com gnus: grandes na parte da frente e pequenos na parte de trás. Efeito causado pelo excesso de peso e as tentativas de superar as próprias marcas atingidas nos dias anteriores. Também mulheres jovens e senhoras que tentavam com certo êxito manter a boa forma. Tanto se dedicavam aos exercícios que não prestavam muita atenção uns aos outros.

A atenção era dada, totalmente ao próprio desempenho e vaidade, e assim, ficavam olhando a execução dos movimentos nos grandes espelhos que estavam espalhados por todas as paredes a trinta centímetros do chão.

O som ligado, com musicas sem intervalos, abafava os barulhos e os sopros causados pelas dores musculares na hora dos levantamentos e só foi percebido quando a carga de mais duzentos quilos de ferro do leg press, tinha caído do nível de noventa graus causando morte imediata.

O peso estava parado sobre a caixa torácica, tinha sangue saído do nariz e do ouvido.

A vítima, era um homem de quarenta e dois anos, musculoso, duas entradas frontais aumentavam um pouco o tamanho da testa. As pernas estavam caídas para o centro do aparelho, os braços estendidos no chão e a cabeça virada para um lado torcendo um pouco o pescoço, o tinha feito o sangue escorrer para o lado de baixo e tinha pingos no chão escuro.

A tentativa de socorro foi imediata, mas não tinha mais o que fazer, ele já estava morto.

– Vamos tirar daqui. – Ouviu-se alguém dizer e numa pressa acelerada iam começar remover os pesos de cima dele.

– Que cabeça é a de vocês? – gritou dona Amélia em protesto – Não se mexe na cena de um crime! – olharam uns para os outros e ficaram surpresos.

– É um crime? – a revelação deixou a todos muito surpresos e recuaram imediatamente.

– Parecem que não veem? Logo de cara dá para perceber!

Assim que a morte do dono da academia foi declarada como crime, aquelas pessoas, amedrontadas, fugiram como ratos a procura de um esconderijo, talvez, por causa das constantes conversas sobre assassinato que aconteciam diariamente naquele horário.

Num instante, a academia ficou vazia. Além do morto, somente seis pessoas permaneceram. Penso que o envolvimento com a história original nos tivesse mantido ali, e isso, a meu ver, não era méritos de coragem, mas de curiosidade.

Pelo menos eu, estava me sentindo muito incomodado com aquela execução, que tudo indicava, tinha sido de surpresa e a sangue frio.

– Que desgraça! – eu pensei. – Um crime com todas as características que eu tinha planejado. – e pensava ainda sobre as consequências disso quando dona Amélia chegou do meu lado e falou baixo usando um pouco de malícia.

– Foi você, não foi? – senti como se tivesse água gelada escorrendo pela espinha. A voz dela, ao mesmo tempo sorridente e insinuante me assustou e olhando para o corpo espremido por aquela grandiosa carga de ferro, demorei um tempo para reagir e por fim falei abobalhado:

– Senhora acha?

Olhando para cima com o branco dos olhos aparecendo fora dos óculos, ela meneou a cabeça.

– Não tem escapatória! Tudo mundo vai achar. – puxou no meu braço e andou afastando-nos por um ou dois metros. – Essa história vai render muito! – falou num cochicho. – Fizeram o crime para você! Não desperdice as emoções. Se prenda no escritório hoje mesmo e escreva sem parar. – sugeriu.

– Não é hora de falar besteira, dona Amélia! – disse minha esposa que estava perturbada e parecia um pouco tola diante do corpo espremido.

– Eu não disse nada, minha filha! – disse a velha – Já ouviu dizer que perguntar não ofende?

– A senhora tem mais cara de criminosa do todos aqui!

– A proposito – continuou ela –, você viu quem foi? Então, não pode defender ninguém, viu Amélia?

– Amélia é a senhora, eu sou Amália, tá? – respondeu zangada.

Foi dada atenção a um choro muito histérico. Era Taysa, a assistente que estava sentada no chão com os tornozelos cruzados, as costas curvadas e demonstrava um grande desespero.

– Agora todo mundo vai pensar que foi eu!... vai sim, todo mundo vai pensar que foi eu, só porque...

– A polícia não pensa, menina! A polícia investiga. – disse a velha com o olhar pousado na cabeça da garota. – Se você não fez nada, porque está tão apavorada? Faça igual eu. Olhe se estou com medo! Parece até que ouviram minhas preces, outro dia mesmo, eu falava que devia ser emocionante...

– Vó, não é hora de falar nada, fica quieta e vamos embora. – ao dizer isso, Geraldo Bento, o netinho dela, pegou pelo braço para levá-la para casa.

– Me deixa, estou achando muito divertido! Eu nunca estive na cena de um crime!

Menos de dez minutos após o corpo ter sido encontrado e a academia ter ficado vazia, a polícia chegou e foi entrando direto para os fundos, onde estava o corpo e as seis pessoas.

Os policiais olharam, fotografaram e anotaram nomes. Dona Amélia tentava responder todas as perguntas e a maioria das repostas eram negativas.

– O que pode ter acontecido? – quis saber um policial grandalhão que atendia pelo nome de Iuri e tentava fazer cara de malvado.

– Você ainda não viu que é um crime? – disse ela – Já pensou? Não existe mais lugar seguro. Você não concorda?

– Como a senhora sabe? A senhora viu?

– Não vi nada, policial. E pelo jeito ninguém viu! Mas como você não percebeu ainda? Está sangrando pelo nariz e pelo ouvido! O que matou ele não foi esse peso de uma tonelada! Foi outra coisa.

– Fica quieta, vó. A senhora não sabe e não viu nada! – falou baixo o neto tentando desanimar a velha.

– Eu não vi, mas sou muito esperta! – e para o policial, ela disse – Sangramento no ouvido e no nariz é sinal de traumatismo craniano, não está vendo? E esse peso, por acaso bateu na cabeça dele?

O policial analisou a trajetória que o peso tinha percorrido e viu que a cabeça estava fora da rota. Passou a mão na cabeça do morto e sentiu que o osso estava afundado.

– Alguém bateu na cabeça dele... e o peso caiu. – concordou.

Foi até a garota que chorava sentada no chão e perguntou:

– Você trabalha aqui?

Ela respondeu balançando a cabeça.

– Tem câmera de vigilância? – ela balançou dizendo que não.

Depois de várias fotografias e perguntas que foram devidamente anotadas, aquele policial grandalhão que era um substituto de comandante, tirou o celular do bolso, deu alguns passos para se afastar dos outros e fez a segunda ligação.

– O meu chefe é muito amigo seu e disse que você está de férias por aqui... não quer dar uma olhada?

O telefonema, eu soube depois. Era para um jovem que trabalhava na polícia investigativa de uma cidade chamada Salto do Céu e era muito competente nessa área. Assim que terminou a ligação e enquanto esperava a chegada do colega desconhecido, ele conversava com os suspeitos.

– A senhora viu alguma coisa? – perguntou e pelo tom de voz, considerava que se tratava de uma idosa frágil e ingênua.

– Não vi e não sei de nada, mas todos aqui temos ideias muito boas a esse respeito. Acho que você vai gostar de saber!

– Ideias, dona Amélia? A gente precisa de pistas!

– Não sei se vocês vão chamar de pistas, mas esse é o crime que todos nos queríamos ver. Estamos aguardando por ele há dias – ela olhou para cada uma daquelas pessoas visivelmente incomodadas – Estávamos planejando esse crime, digo, essa história, para um livro de ficção e alguém veio aqui e fez isso. Você não acha incrível?

– Dona Amélia! – gritou minha esposa – Não seja indiscreta. Cala essa boca!

– Fica quieta vó. – foi ao ouvido dela e cochichou – Eles precisam descobrir sozinhos.

Os policiais fizeram um circulo e ela ficou quase no meio. Os olhos sempre voltados para cima brilhavam de contentamento.

– É mesmo, né? – disse ao neto e virou para os policiais – Ele acaba de me lembrar, o meu gatinho está preso desde cedo, a idade já está me prejudicando, que cabeça a minha! Esqueci o pobre sem água e sem comida! – saindo do circulo virou-se para os homens – Estou tão empolgada! Vocês me deixam participar das investigações? – ela baixou a cabeça, pendeu para um lado e segurou no braço de um policial – Pega minha bolsa. Lá tem o meu remédio de pressão. – disse ao neto.

– Vó, senhora não trouxe a bolsa.

– Ah, essa minha idade ainda vai acabar comigo. – lamentou – Eu preciso do meu remédio, a pressão subiu. Com tanta emoção assim... – olhou para o rosto do policial – Você deixa eu ir embora? Não precisa anotar meu endereço – apontou na minha direção e falou – ele sabe onde eu moro. – trocando o apoio para o braço de neto – Vamos meu filho, tenho que tomar o remédio.

Assim que se retirou, ainda dentro da academia, ela se livrou do braço do neto.

– Você acha que eu me saí bem? – quis saber satisfeita com o próprio desempenho.

– Vó, senhora é um perigo!

– Você acha? – sorriu considerando um elogio.

Alguns minutos depois, o salão grande e cheio de aparelhos estava silencioso e sombrio. Pairava um clima de nervosismo e de tensão, as vozes, raramente ouvidas, eram baixas e trêmulas.

O agente da polícia investigativa que atendia pelo nome de Cérbero que ainda tinha duas semanas de férias, chegou lançando um olhar vesgo para todos os lados. Pegou na mão do Iuri, o policial grandalhão e fez um aceno de cabeça para as outras pessoas, cumprimentando todos de uma só vez.

– Só te chamei por que disseram que você ia gostar de ver esse caso. – desculpou-se. Chamou a um canto em particular, contou algumas coisas sobre aquela morte e quando voltaram para perto do corpo, o novato já tinha abandonado as férias para trabalhar naquele caso incomum.

– Quem é aquela mocinha? – Perguntou olhando para a assistente que tinha levantado do chão. Estava agora sentada num aparelho, porém, continuava com a cabeça abaixada, num chorinho repicado e com a mão na testa.

– Funcionária. O morto era patrão dela!

Cérbero olhou o sangramento pelos ouvidos e pelo nariz. Estudou a trajetória do peso que ainda estava sobre a caixa torácica do morto. Desconfiado, passou a mão na cabeça e sentiu o crânio amassado.

– Já sabiam disso? – perguntou aos colegas.

– Uma senhora muito interessante que acabou de ir embora, percebeu e nos contou.

– Uma senhora? – perguntou lançando ao colega um olhar que demonstrava certo nível de suspeita.

– Ela já tinha percebido isso! – declarou se sentindo um tanto despreparado.

– Por que ela foi embora? – quis saber.

– Se queixou da pressão, disse que precisava tomar remédio. É bastante idosa, não tem menos de setenta.

– As velhas de hoje, são muito diferentes das velhas de cem anos atrás. – declarou num tom de alerta como se conhecesse dona Amélia.

– E essa é uma graça, você vai conhecer! – disse Iuri.

O W – continuo chamando assim, por que, apesar de vê-lo todos os dias, não nos falávamos, quando muito, dizia um oi sem intimidade – ele permanecia por perto e fez um ar de riso ao ouvir, mas tive a impressão que somente eu vi isso.

– Só vocês estavam aqui, além da senhora que foi embora? – perguntou diretamente a mim.

– Tinha umas quinze pessoas. – afirmei.

Aquele homem de um metro e setenta e não tinha ainda trinta e cinco anos, observou a todos ali presente.

– E fugiram?

Olhou para o alto das paredes a procura de câmeras de vigilância e foi falar com a assistente.

– Mocinha! – chamou a garota e eu considerei que esta expressão ficaria muito bem, se falada por um homem idoso – Não tem câmera de vigilância?

Ela balançou a cabeça, ao mesmo tempo em que lançava a ele um olhar choroso.

– Não tem. Mas eu não vi nada! Foi tão rápido, acredito que foi assim que terminei de falar com ele. Eu preciso avisar a família. – Dizendo isso, saiu à procura de um telefone.

Estavam ali, além dos quarto policias e da assistente, o W, minha esposa e eu.

– Nós temos alguma utilidade aqui? – perguntou ela sentada num daqueles aparelhos.

Como ninguém tinha visto nada, depois de algumas anotações, eles nos liberaram com explícitas ameaças para não sair da cidade.

Encontramos a assistente dentro de uma repartição muito parecida com um balcão de bar. Estava com as duas mãos no queixo e os olhos lembravam o choro de quatro ou cinco minutos atrás.

O W, muito sério debruçou sobre o balcão e ficou bem perto dela.

– Você estava ansiosa por um crime de verdade, não estava?

– E você, não? O que você falou outro dia? – ela olhou para mim e depois para ele – Você queria...

– Segura sua língua! – e vimos pelo tom da voz que era uma ameaça. – Todo mundo queria um crime. – a mim ele disse: – E você, está satisfeito? Você tem uma grande história. Bem que eu suspeitava que talvez estivesse a fim de matar alguém. Aproveita e começa escrever logo, mas se foi você, ela será escrita à mão. Duvido que permitam um computador na cadeia! – Ao dizer isso, ele saiu e nós também fomos para casa.

Não sei quanto tempo a polícia demorou em liberar o corpo, mas a pobre e desesperada assistente, foi muito eficiente em fazer contato com a família que morava em outro estado e seguindo orientações dela, incrivelmente rápido, contratou os serviços funerais mais eficientes do mundo que em pouquíssimas horas, já tinha preparado o corpo para viagem, os papéis do translado e levado para sepultar junto da família.

Na cidade de Torquato, depois daquele momento na cena do crime, ninguém teve contato com cadáver e a academia, jamais voltaria abrir as postas para atender o seu público.

Satisfazia assim, a curiosidade da assistente por um crime capaz de fechar o estabelecimento.

Uma faixa de pano preto, cumprindo um ritual fúnebre, foi estendida na porta. Certamente, mais um trabalho da assistente, ou de outra pessoa de relações próximas. E aquela morte, de motivos ainda inexplicáveis, como acontece nas cidades de pequeno porte, se transformou no assunto principal de quem ficava sentado do lado de fora dos quintais olhando as pessoas passarem na rua.

Também, como desejava a garota, era um crime que a cidade nunca ia esquecer.

Bem que eu gostaria de começar escrever imediatamente aquele assunto, mas as emoções eram muito grandes e eu nunca consegui trabalhar sob pressão. Estava preocupado e chateado, por alguém ter cometido um crime com todas as características que eu tinha planejado e justo no momento que eu estava no local.

Já que a academia estava fechada e ainda com o pano preto na porta anunciando a morte do proprietário que tinha o nome de Montiver, resolvi ocupar minhas tardes fazendo caminhada nas calçadas irregulares, cheias de buracos, degraus e muretas que atrapalhavam a passagem. Passei a encontrar o neto de dona Amélia e o W, que tudo indicava, tinham se tornado grandes amigos e curiosamente, decidiram fazer o mesmo percurso que eu. No primeiro dia, paramos para um minuto de conversa e percebi que o Bento, era realmente um homem feito e adulto. O jeito de adolescente mimado era uma coisa da avó. Longe dela, ele parecia ser uma pessoa que sabia muito bem o que queria e tinha cara de inteligente.

– Alguma informação sobre o inquérito? Já falaram com você? – Perguntou.

– Parece que a polícia não está interessada nisso! – respondi.

– A justiça do Brasil – ele disse – é muito lenta. A média é de cinco anos para resolver um problema.

– Eu não estou nem ai! – falou o W sem parecer preocupado.

– Se coloca no lugar dele. – sugeriu o outro olhando para o rosto suado do amigo que preferiu fazer um comentário.

– A demora da polícia está ao seu favor. – de forma impiedosa acrescentou – Você está aproveitando o tempo?

– O assassino – respondi –, ao invés de ajudar, prejudicou completamente minha inspiração e perdi totalmente o gosto pelo projeto. Já não sei se ele ainda vai acontecer. – eles se olharam com surpresa, como se não acreditassem no que tinham ouvido.

– Como assim? – o W me encarou e depois para o amigo – Acredita numa coisa dessas?

– Não entendo por que as pessoas, de uma hora para outra, resolveram interferir no meu trabalho! – o W começou torcer um lado do bigode. Deixei os dois ainda parados e segui minha caminhada de final de tarde.

Em minha casa, estava instalado um real clima de suspeita, gerado pela investigação policial que seguia silenciosamente e chegava duvidar se estavam mesmo cuidando de descobrir o autor da morte. Tudo era inda mais difícil, pois Amália, ficava pensativa, falava pouco e claramente preocupada com o desenvolvimento do enredo parado numa sinopse de algumas páginas. Tinha momentos que eu achava que ela estava mais preocupada com a minha demora em começar escrever do que com a investigação secreta sobre os cuidados do agente Cérbero e chegava a pensar na possibilidade de ela estar, de alguma forma, envolvida no crime, mas eram pensamentos que não confessaria nem a mim mesmo, pois a Amália, sempre foi uma pessoa passiva e de minha total confiança.

– Você não vai começar logo? – perguntava – Aproveita esse momento de emoções fortes. A emoção é muito importante para um autor, você sabe disso. Sua história é fantástica, literalmente, tanto é que alguém achou de cometer um crime igual. Isso já aconteceu antes?

A preocupação de minha esposa era compreensível, pelo menos, eu pensava, mas e as outras pessoas? Por que tinham tanto interesse num romance policial que estava sendo planejado? Normalmente, isso não é uma coisa que interesse muito. No entanto, eu não queria mais a história.

O investigador Cérbero, era filho de mãe branca e pai negro, um moreno grande, com os cabelos quase raspados e um pouco vesgo. Fiquei sabendo depois que morava sozinho e tinha muitas manias. Estava em Torquato, de ferias por duas semanas em casa de uma tia que emprestava o carro para cuidar das investigações daquele crime sem pé e sem cabeça.

Ele tinha tomado conhecimento sobre a história de ficção relacionada ao crime. Considerou absurdo que alguém resolvesse cometer tal crime e quis investigar primeiro, as pessoas que estavam mais ao meu redor. Pouca importância deu, às outras que estavam na academia na hora do ocorrido e uma semana depois, ele foi a minha casa.

Eu já esperava que a polícia viesse e estava admirado com a demora, mas em fim, um dia de tarde, ele bateu no meu portão.

Diferente de dona Amélia que tentava enxergar por alguma fresta, ele olhava para os lados e para cima até que o portão foi aberto.

Ele entrou na casa e foi recebido na sala. Não tinha uma cara de alguém muito preocupado, nem tentava fazer o tipo malvado que muitos policiais fazem para intimidar as pessoas.

– Esse crime é o menos cruel, porém, o mais incrível que já vi. – disse ao abordar o assunto – Acho que os arranjos dele serão únicos no mundo inteiro.

Assim que aquele policial chegou e começou falar do motivo de estar ali, minha esposa, imediatamente saiu dizendo que ia fazer uma visita.

Tudo bem, eu poderia receber sozinho aquela desagradável visita policial, desde que ele não fizesse objeções. Ele deu de ombro como se a presença dela não fizesse qualquer diferença. Fiquei surpreso com essa atitude dele, pois ela, estava junto comigo na cena do crime. Era de se esperar que quisesse falar com ela também, mas Cérbero não fez questão, assim, ela saiu sem dizer para onde ia e levou a criança.

Apesar de já saber de tudo, ele quis ouvir de minha boca o que eu planejava e para quais pessoas eu tinha falado a respeito. Pensei um pouco de descrevi: Amália, minha esposa; dona Amélia, a senhora de setenta anos; Geraldo Bento, o netinho de dona Amélia; Taysa, a assistente da academia; o W, cujo nome eu não lembrava e me recusava perguntar todas as vezes que o encontrava e não sabia em que trabalhava.

– Você conhece um rapaz chamado... – depois de pensar um pouco ele tirou do bolso uma caderneta e leu – Wolfgang?

Levantei a sobrancelha: – Claro que não! – respondi.

– Usa um bigode vintage! – explicou.

– Ah, sim! É W. Eu o chamo assim, por causa desse nome patético. Eu não gosto dos nomes que tenham W, ou que tenham mais de duas consoantes juntas. Penso que as pessoas que têm nome assim, deveriam ter acesso imediato à justiça e opção de troca. Você concorda comigo?

Ele deu um risinho e discordou:

– Esses nomes, na maioria das vezes, são homenagens, ou influência do meio. – voltando ao Wolfgang, ele disse:

– Ele foi um dia ao seu trabalho, lembra?

– Não faz muito tempo isso. Queria informações sigilosas de outra pessoa. – recordei.

– Não exatamente. – contestou o policial que parecia ter feito uma investigação bastante aprofundada. – O pedido de informação era um pretexto.

– A conta era da esposa. – eu insisti.

– Se tivesse sido mais atento, teria notado que não tinha uma aliança na mão esquerda. Ele não é casado!

– As alianças de casamento não são muito usadas ultimamente. – declarei – Muita gente vive em união estável ou apenas convivem juntas e não usam aliança. É tão comum que...

– O objeto daquela visita não era a informação, era conhecer você! Saber sua ética, se era capaz de cometer algum tipo de irregularidade. Alguma coisa que pudesse ser chamada de crime.

– Discutimos e ele chegou falar em francês! – falei já duvidando do primeiro encontro com ele.

Cérbero demonstrou um ar de riso e ficou sério.

– Ele não fala francês e nunca esteve na França! Eram argumentos para intimidar e conseguir a informação que não tinha nenhuma importância.

– Por isso que nunca mais falou em francês! – observei.

– Exatamente! – concordou. – Depois desse dia, ele te seguiu por vários dias. – Lembra os espetos no supermercado?

– Sim. Perfeitamente.

– Ele te seguia muito perto e virou de costas para esconder, mas você foi onde ele estava, pensou que tinha sido reconhecido e falou com você.

– Foi por isso que começou frequentar a academia? – eu estava surpreso e preocupado com aquelas informações.

O policial mexeu afirmativamente a cabeça.

– Por quê? – eu quis saber.

– Precisavam descobrir coisas a seu respeito. Definir sua personalidade.

– Parece que esse cara não gosta de mim!

– Gosta. Todos eles gostam em excesso.

– Quer dizer que são várias pessoas?

– Cinco pessoas – respondeu – e investiguei uma por uma.

As cinco pessoas investigadas, naturalmente, eram além de mim.

– Têm haver com a morte do dono da academia? – perguntei.

Ele balançou a cabeça quase raspada e eu, apreensivo tentava estudar sua calma inteligente.

– Tem haver com uma armação! – declarou – Aquela garota da academia que você transformou em confidente para o planejamento de sua obra. Ela na verdade, estava encarregada de descobrir toda sua história. Por isso, incentivava e dava sugestões de como matar alguém, é fanática de livros, filmes, e séries policiais. Em constantes conversas com aquela senhora de setenta anos que ninguém dá nada por ela, surgiu a ideia de um tipo de conselho deliberativo para ajudar no desenvolvimento da sua história. – ele parou de falar por alguns instantes, como se tentasse estudar meu pensamento confuso – As duas são amigas de emprestar livros uma para a outra. – deu uma risadinha e concluiu – A velha e a mocinha são terríveis! Juntas, pensaram sobre o que tinham de fazer e aquele marmanjo, que ela chama de netinho, na verdade é um artista, convidado para participar de um plano muito criativo.

– Um artista? – duvidei.

Nada era o que parecia. Eu estava cada vez mais surpreso com aquelas revelações e com medo do que mais ele tinha para contar.

Cérbero balançou a cabeça e isso o fez parecer muito inteligente.

– Trata-se – continuou – de um artista que faz maquiagem corporal para o dia das bruxas. Já fez algum trabalho para uma produtora de cinema, mas atualmente está desempregado.

– O que faz um maquiador numa cena de crime?

– Me fiz essa mesma pergunta e fui procurar a resposta. Aquela velha danada, fez contato pela internet. Contou sobre sua história e o plano que estava sendo arquitetado para auxiliar você no desenvolvimento do projeto. Ele aceitou de imediato e voluntariamente, desde que alguém o hospedasse e ela então, o hospedou adotando provisoriamente como netinho.

– Ela me convidou e fui a casa dela para conhecer esse cara! – falei indignado por ter sido tão facilmente enganado.

– Ele precisava te conhecer e fazer amizade.

– Nos deixou sozinhos e foi fazer café! – falei.

– Ela tinha de arrumar um jeito de vocês ficarem sozinhos e ele precisava de um motivo para frequentar a academia junto com você, sem levantar suspeitas, pois o trabalho dele, era o mais importante na execução do crime. Uma maquiagem perfeita, que se confundisse com sua história e capaz de enganar a polícia.

– Minha esposa tem culpa nisso também? – perguntei com o coração batendo fora do lugar.

– Ela foi peça importantíssima! Sem a ajuda de sua esposa, essa organização não teria êxito. Lembra-se de uma despretensiosa visita de dona Amélia? – balancei a cabeça e a mim me pareceu um gesto muito tolo, pois era a reação mais forte que pude ter – Naquele dia, ela veio aliciar a Amália, sua esposa, para ser cumplice e ela aceitou.

– Elas conversaram o tempo todo na minha presença! – aleguei confuso e sem querer acreditar que minha esposa fosse uma homicida.

– Quando a velha ia embora, você não acompanhou e foi quando deu o recado. Se encontraram aqui nesta sala para tratar da ocultação do corpo.

Então lembrei o dia em que cheguei do trabalho e encontrei meu filho tão interessado em encontrar um corpo, pois nesse dia, certamente, tinham falado sobre isso e ela acusou a mim. E quando falei, ele me olhou com firmeza.

– Claro que sim! Você falou com as três sobre a ocultação de um corpo... e elas levaram muito a sério. E o mais importante – disse ele – é que não houve assassinato nenhum! Nessa história ninguém morreu.

– Ah, não mataram o dono da academia?

– O dia do crime – continuou tranquilamente – foi escolhido com muito cuidado e tinha motivo para isso. Sabe qual é? – eu apenas o olhei abobalhado – Sem o devido preparo, o leg press noventa graus não mataria. No fim de semana, quando a academia estava fechada, cortaram o aparelho para que o peso pudesse sair dos trilhos e ficou interditado durante todo o dia para outras pessoas não usarem! É nessa faze que cada um entra com sua especialidade, pois o rapaz do bigodão, além de bom investigador, trabalha com serralheria. Quando se posicionou no aparelho que você queria para a execução do personagem, o escolhido para morrer já estava com uma prótese implantada no couro cabeludo para simular o traumatismo e a carga extrema de peso foi colocada sobre um colete de chumbo. O sangue no nariz e no ouvido, foi aplicado por aquela assistente e eu, na hora que cheguei, notei que as gotas no chão não correspondiam com a trajetória vinda daqueles lugares.

Levar o corpo para sepultar em outro estado foi uma forma de ocultação, mas na verdade, ele foi embora estudar e ficar junto dos pais.

– Por que fizeram isso? – era a pergunta que me fazia desde que ele começou falar.

– Com o único proposito de fazerem parte da história de um livro!

– Tudo não passou de uma grande mentira?

– Não! – disse Cérbero – A presença da polícia foi verdadeira e eu abandonei minhas férias por causa de uma coisa assim.

– Então não houve crime?

– Ai você se engana! Teve crime de falsa comunicação de crime.

– Como descobriu tudo isso? – era a pergunta que me restava fazer. Ele riu silenciosamente.

– Tenho meus métodos.

Fim

Para Jaqueline,

essa história feita de improviso .

E agradecimento a todos que

se divertiram comigo nesse crime.

Alvorada do Oeste, 02 de abril de 2017

Gilmar Batista da Costa
Enviado por Gilmar Batista da Costa em 24/11/2017
Código do texto: T6181258
Classificação de conteúdo: seguro