FLIN E A CIDADE ENCANTADA. CAP 3

Capítulo 3 –.

Escolhi um terno impecável naquela manhã, não só para destituir as rugas da minha aparência, já beirando a meia idade, mas também para disfarçar o meu desequilíbrio interior. Em passos largos pelo aeroporto Santos Dumont do Rio de Janeiro, rumo a São Paulo, para posterior viagem ao coração da selva Amazônica, enfrentava uma contida batalha emocional. Estava ciente do novo rumo de minha vida e procurei investir na aparência a confiança inexistente. Lembrara perfeitamente do ritual. Acordara naquele sábado com uma dor de cabeça insuportável e nem as costumeiras aspirinas fizeram efeito. Percorri as alamedas de Petrópolis usando um leve agasalho. Cidade bucólica serrana, cercada de hortênsias coloridas. O tempo ainda era perfeito naquele lugar. Apesar de a Primavera ter dado os seus últimos suspiros e as folhas verdes agora estarem secas e amortecidas pelo chão, o aspecto agradável persistia. O olhar tênue e brando contrastava nitidamente com o início daquela manhã cinzenta.

O aeroporto fervilhava naquela tarde chuvosa. As lojas e cafés estavam amontoados de pessoas e filas intermináveis para fazer o check inn. Estava atrasado. Olhei para o relógio de pulso, marcava 15h50. Meu vôo, caso não atrasasse ou fosse cancelado por causa da chuva, aconteceria dentro de meia hora.

Minha lembrança retornara naquela manhã, tantas árvores e o clima frio propiciavam um agradável momento, se não fossem os pensamentos e a constante dor de cabeça. Os cabelos em desalinho e a barba espessa, ainda por fazer ofereciam uma aparência rude, agravada pelos trajes amassados de minha calça amarrotada. Alguns adultos não tiveram infância na sua efetiva legitimidade, ou não puderam usufruir em tempo integral por diferentes motivos ou se recusaram a ter comportamentos infantis por mais que seus pais incentivassem a tê-las. Eu me enquadrara no item final.

Ser criança? Mas qual o objetivo? Qual o propósito de jogar bola, ralar o joelho e machucar as mãos? Sujar a roupa? Puro desperdício. Em dias difíceis ter uma roupa rasgada era prejuízo certo.

Minha mãe, Dona Manuela Freire Antenor era uma mulher encantadora, de família tradicional de classe média, personificava o exemplo de feminilidade e candura. Não compreendia as minhas opções, mas evitava comparações com o meu irmão mais novo, Frederico. Mãe zelosa e compreensiva amava os filhos e os respeitava em decorrências de suas predileções. Meu foco eram os livros, revistas e jornais. Procurava revisar e fazer críticas em tudo que lia. Já Frederico fazia o normal para qualquer criança da sua idade: brincar, brincar e brincar.

Nasci em Campinas, cidade do interior de São Paulo, em um dia atípico ensolarado, na manhã de uma quarta-feira às 09h15min horas de parto normal. Primeiro filho e por muito tempo único de um casal cujo princípio primordial era a tradição da família. E entende-se tradição da família definir carreiras profissionais.

Quando nasci, meu pai definiu toda a trajetória de minha vida. Seria médico ou advogado e estudaria na capital. Ele tinha uma banca de jornal, de onde era tirado todo sustento da família. Mamãe, era dona de casa e nas horas vagas bordadeira de mão cheia, vendia suas obras de arte, como chamava, para a redondeza da cidade, bazares e armarinhos. Papai dizia. __deixe sua mãe tecer estas coisas, serve como distração. No entanto não levava em conta a renda extra do orçamento familiar.

De acordo com as informações prestadas e previamente definidas, eu cresceria doutor. Com o passar dos anos meu pai se apoderou desta ideia e a oficializou para todos, excluindo qualquer hipótese de desafio. Sempre que podia me chamava de Dr. Benedito Antenor, melhor somente Dr.Antenor. Costumava enrolar as pontas do bigode com este orgulho eminente.

No entanto, já na fase da puberdade, desenvolvi aptidões contrárias à carreira médica. Assim que comecei a esboçar sussurros e posteriormente, escrever palavras, já demonstrava um instinto inato para redações. Mediante este desacato, a relação entre pai e filho ficou complicada. Meu pai decidiu manter-se firme no propósito de formar um médico, investiu massivamente em Frederico, que voluntariamente o correspondia, em troca de favores.

O tempo não volta ou retrocede jamais e infelizmente, arrependimento tinha os dois. Um por se calar quando deveria ter se pronunciado e o outro por falar, quando deveria ter silenciado. Hoje, tinha que reconhecer que a amargura e a culpa pesavam imensamente em minha vida como adulto. Mesmo após tantos anos de trabalho, jamais recebi um elogio. Tornara-me um repórter de renome na capital de São Paulo e a carreira já atingia a aclamada cidade do Rio de janeiro. Minha especialidade era nas coberturas de acontecimentos internacionais, o que me obrigava a viajar constantemente, pelo Brasil e o Mundo, contribuindo para que a distância entre nós ficasse ainda maior.

Esquecer a dor e a decepção nos olhos marejados de meu pai e presenciar o atrito familiar entre mamãe que me defendia, era demasiado doloroso. Ela, cansada, se refugiava no bordado para esquecer a amargura da rejeição. E por anos a fio foi definhando até a morte.

Talvez, só talvez suponha, se tivesse vivido os acontecimentos de cinco anos atrás a tempo de recuperar tanto dissabor, resgataria as palavras não pronunciadas e as alegrias não vividas. Quem sabe então, contribuiria para que ao menos alguém, viesse a deslumbrar toda a imensidão das alegrias e tristezas percorridas durante o meu percurso na Terra Amazônica__ Terra do Sol, e dissipar a dor da desventura com maior carinho, para que enfim, conseguisse reconhecer que às vezes magoamos a quem amamos, não por intenção, mas por omissão de uma palavra.

Quando fiz 12 anos, conheci Adolfo Bezerra, dono da padaria local do bairro, turco baixinho e calado. Arqueava a sobrancelha todas às vezes que eu adentrava ao seu estabelecimento colando em suas pilastras externas a propaganda do jornal do bairro. Eu ganhava R$ 025 centavos por cada tarefa executada, e o direito de interagir no ambiente tipográfico do jornal. Com certeza só pelo segundo motivo eu faria tudo de graça.

__ Bom dia Sr. Adolfo__ nesta edição tem uma folha inteira sobre a sua padaria e os deliciosos bolinhos de canela que ela produz. Tenho certeza que esta propaganda tornará mais popular o seu estabelecimento.

Adolfo era sem dúvida o meu único amigo. Apesar do ar austero de agir ele tinha um coração enorme e bondoso. Sem filhos, de um casamento sólido e estável, sentava no final da tarde na mesa central da padaria para um copo de leite e deliciosos bolinhos de canela. Na maior parte do tempo, falava de sua terra Natal, a Turquia, de sua infância amorosa e de seus descendentes. Mantinha assim uma cumplicidade, na qual desejava ardentemente, ter tido com meu pai. Ele falava, eu escrevia, rabiscava imagens e imaginava o quanto deveria ter sido enriquecedora a sua vida, fantasiava histórias que o próprio turco nem sabia.

__você deve ao crescer, ir para capital menino Benedito, as faculdades de Jornalismo de peso estão todas lá, fora o poderoso mercado de trabalho, tão escasso aqui em Campinas. Franziu a sobrancelha __não tema. Estarei sempre aqui se precisar de mim. _disse baixinho.

___ eu sei Sr. Adolfo, mas meu pai insiste na carreira de médico e já temos uma relação bastante difícil porque não gosto da maioria das coisas que ele gosta. Quase nunca nos falamos, e depois que Frederico nasceu, há quatro anos, a situação ficou muito mais complicada. Até mamãe se distanciou de mim para poder dividir a atenção entre nós. Sou um estranho dentro de minha família. __ abaixou a cabeça amuada.

___não pense desta forma, seu pai só quer o melhor para você. Frederico é um lindo menino e para o seu pai sua maior esperança, já que você Ben, já tem seu destino escrito nas estrelas. __ apontou para o céu estrelado.

___não acredito em destino. Creio que conseguimos fazer e alcançar qualquer coisa única e exclusivamente por nossos próprios méritos. Não sou muito de fantasias. __ disse convicto.

Quanta saudade eu tinha de Adolfo e daquelas horas no final da tarde, onde tudo era perfeito. Nada de amarguras naquele papo diário, nada de cobranças ou brigas desnecessárias. Desejei muitas vezes ser o filho do padeiro. Com o passar do tempo pude perceber que sempre desejamos estar, ser ou fazer coisas que não estão ao nosso alcance.

Adolfo ainda permaneceu vivo até o ano de 2002, mantendo contatos esporádicos comigo entre um aniversário e outro. Era colecionador de todas as minhas reportagens e mamãe quando escrevia, falava da padaria, do local exclusivo de todas as minhas edições. Todos os prêmios alcançados e notícias estavam publicados, na padaria do Adolfo.

Uma das coisas mais intrigantes foi quando lhe informei por carta em 2001 meu objetivo de fazer a reportagem sobre as Seringueiras e o desmatamento da mata Atlântica e de como parecia interessante e oportuno abraçar este documentário. Adolfo na época, não me retornou como de hábito, o que causou estranheza por dias. Quando já não dera mais conta de um retorno, recebi uma ligação no meio da noite.

__meu jovem benzi, à hora já se adiantou depressa. Preciso lhe dizer algo.

Pisquei os olhos, aturdido. Olhei as horas. 03h10min da manhã.

__Sr. Adolfo? É o senhor?

__ sim, sei que é tarde, mas preciso lhe informar de um ocorrido. Ou melhor, de algo que ainda está para acontecer. Não parece certo o que vou te dizer nesta hora, mas um dia tudo vai ficar claro e escuro em sua mente, e determinadas coisas vão aparecer. Não se surpreenda com os acontecimentos benzi, faça por merecê-los, pois nem sempre escolhemos, mas somos escolhidos.

___ A ligação está péssima, Sr. Adolfo? Algo lhe preocupa? —Olhou a volta e viu o reflexo cintilante da Lua sobre a janela.

___ siga o seu coração, na dúvida, siga sempre o seu coração.

Foi o último contato que tive com certo Padeiro. Tentei retornar por diversas vezes a ligação naquele dia e só após o amanhecer, consegui falar com meu irmão, médico da cidade local e tomei conhecimento do falecimento às 04h00min da manhã, do meu querido amigo.

Só depois de algum tempo, as palavras do velho sábio tomariam verdadeiro sentido e eu faria por merecê-las.

brisse
Enviado por brisse em 29/08/2018
Código do texto: T6433442
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