A carona


- Sim, eu sei que você precisa ir a faculdade, mas minha mãe esqueceu de um pequeno detalhe: eu estou sem minha moto.

Marine o seguiu pela sala, até pararem na cozinha. Ela revirou os olhos e bufou, impaciente. Sabia que Renan estava fazendo de tudo para irrita-la, além, claro de agir como se não tivesse acontecido nada entre eles na noite anterior. Isso feria o seu ego, mas optou por não demonstrar. Ele parou próximo do armário e se encostou, relaxado. Vestia uma calça jeans preta e uma camisa branca, mexeu nos cabelos, tranquilamente e olhou para a garota com certo desdém.

- Bom, você precisa aprender a andar em São Paulo também, certo? – Ela cerrou os olhos, friamente. – É um bom momento.

- Ah, você acha isso? – Ela mexeu no vestido jeans que usava, fingindo calma.

- Sim, acho.

- Bacana. Vamos perguntar o que sua mãe acha? – E tranquila, voltou para a sala, mas Renan a segurou pela cintura. – O que foi? Será que sua mãe vai gostar de saber que por birra você está se negando a me levar na faculdade?

- Primeiro, cala a boca. Segundo, vou resolver isso. Me dá um minuto.

Ele a empurrou para o lado e foi até o quarto pegar seu celular, voltou alguns minutos depois.

- Arrumei uma carona para você.

- Com quem?

- Meu amigo. Ele trabalha perto da faculdade, dá para te deixar lá tranquilo.

- Ótimo. – Marine foi para a sala, conferiu os documentos na bolsa e fitou Renan, no mesmo desdém. – Não fez mais que sua obrigação.

Antes que conseguisse cruzar a porta da casa, Renan a puxou para seus braços.

- Acho que você vai gostar de conhecer o meu amigo. – E sorriu, maldoso enquanto ajeitava o vestido dela. – Leonardo é o nome dele. - Renan a virou em direção a saída e deu um tapinha na bunda dela. - Tchau, prima!

Bastaram poucos minutos para que Marine, já no carro de Leonardo, o reconhecesse. Ela o estudou em silêncio e viu no semblante masculino que ele temia por isso. “Ele está diferente, mas eu não esqueceria esse olhar de sonso nunca!”. – Pensou.

- Espera. – Pediu, e segurou o rosto dele. Fora um gesto tão natural que nem se dera conta do quanto aquilo se tornara estranho. – Eu conheço você.

- Conhece? – Leonardo tentou fingir surpresa. Marine franziu o cenho. A memória da jovem era infalível.

- COMO QUE O RENAN TEM CORAGEM DE FAZER ISSO? – Exclamou, com raiva e iniciou a sessão de tapas. Leo tentou segurar as mãos da garota, mas sem sucesso. – VOCÊ ACHOU QUE EU NÃO ME LEMBRARIA DO QUE ME FEZ AOS 10 ANOS?

- MEU DEUS, MARINE! ÉRAMOS CRIANÇAS E FOI IDEIA DO RENAN!

- NOSSA, QUE EXCELENTE JUSTIFICATIVA! AGORA SIM EU CONSIGO VOLTAR A NADAR NUMA PISCINA!

Leo conseguiu segurá-la depois de um longo tempo sendo agredido com tapas, mas a mão livre dela foi contra seu rosto, o tapa, tão forte, assustou até mesmo a ela. O rapaz colocou a mão sob a bochecha que recebera o tapa, respirou fundo e ligou o carro.

- Acabou? – Como não houve resposta, continuou. – Espero que sim.

Marine cruzou os braços junto ao peito, com raiva. Mentalmente passou a xingar Leonardo. As vezes o olhava de canto e quando desviava, sentia que era olhada também. De tanto olha-lo, passou a reparar nas mudanças. Não que lembrasse muito da criança Leonardo, somente que era um garoto alto e desajeitado, diferente de Renan. Agora adulto tinha um charme tranquilo que transparecia no olhar castanho claro. Os cabelos eram escuros com algumas poucas mechas loiras bem antigas, de quem fizera no cabeleireiro, o corte do cabelo era médio. Tinha uma barba bem-feita, lábios carnudos e uma pinta no canto direito dos lábios. Vestia-se casual, mas algo nele fazia o restante do mundo saber que já era um rapaz maduro. E de fato, era.

- Olha... – Leo tentou falar, acordando Marine de sua análise silenciosa. – Eu sei que foi de uma idiotice sem tamanho, ok? Me desculpa. - Como uma garota mimada, Marine continuou com os braços cruzados, irredutível.

- Eu quero saber se você vai poder me levar todos os dias até a faculdade ou é só um favor ao imbecil do Renan.

- Bom, se você quiser eu posso te levar. Não tem problema algum.

- Ok. Então eu te desculpo. - Leo sorriu de canto com a espontaneidade da resposta. - Mas ainda não gosto de você.

O carro estacionou na calçada em frente a faculdade onde Marine seria mais uma nova estudante. Ela desceu em silêncio e soltou um seco “obrigada” para Leo, que se limitou a sorrir. Algo nele mexera profundamente com a prima de Renan.

(...)

Se a ida fora turbulenta, a volta fora ainda mais. Quando Marine saiu da faculdade, Leo já a esperava, mesmo sem saber o horário certo de encontrá-la.

- Eu quase perco a vaga por causa do Renan! – Ela entrou no carro batendo a porta, tremia de tanta fúria. – Nossa, mas se isso acontece eu não sei o que sou capaz de fazer!

Leo, em dúvida, optou por apenas ouvi-la. Por cerca de 20 minutos Marine esbravejou toda sua ira sobre o primo. Gesticulava nervosa, contando como era difícil viver ao lado de alguém tão “imaturo e completamente doente” como Renan. Ele percebeu logo que havia algo escondido naquele desabafo, mas não fez comentários. Parou seu carro em frente a uma pizzaria já conhecida.

- Aqui não é a minha casa. – Marine falou, o observando confusa.

- Sei que não, mas você está com fome.

- Não estou.

- Está sim. E a pizza daqui é ótima, confia em mim.

Mesmo sendo um pedido natural, Marine não conseguiu entender o giro que seu estomago deu ao ouvir tais palavras.

(...)

- Eu não estou com fome.

- Tudo bem! – Leo começou a comer sua pizza. O cheiro do frango e catupiry invadiu as narinas da garota. Ela tentou disfarçar. – Mãe de Deus! Isso aqui é muito bom.

- Você não almoça? – Perguntou, observando um faminto Leonardo se deliciar com sua pizza.

- Não. Eu estava viajando, voltei ontem e ainda não cheguei a ficar no escritório, fui assinar uns papéis e resolver algumas coisas.

Marine se aproveitou de uma distração do rapaz e comeu uma azeitona de sua pizza. O estomago roncou de fome, a entregando imediatamente. Leo deu um risinho que não passou despercebido por ela.

- O que?

- Experimenta. – Cortou um pedaço da pizza e ofereceu para Marine. – Você vai gostar.

Ela aceitou, mesmo relutante em ser agradável com o rapaz. O sabor da pizza fez seus olhos revirarem de prazer. Leo a observou com um sorriso e Marine fez questão de logo fechar a cara. Não daria o braço a torcer tão fácil assim.

- E aí?

- É boa. – E deu de ombros, limpando os lábios. – Você trabalha com o que?

- Trabalho com Tecnologia numa empresa multinacional.

- E gosta do que faz?

- Não me vejo fazendo outra coisa. E você? Gosta do que estuda?

- Hoje posso dizer que a única coisa que me traz paz é o que eu faço.

A resposta fez Leo observa-la em silêncio por algum tempo. A verdade é que sua opinião sobre Marine era muito vaga, nas poucas vezes em que Renan falava sobre a prima era em algum tom pejorativo, tratando-a como louca. Ele pediu mais um pedaço de pizza, dessa vez só para ela, que agora aceitou sem pestanejar. A conversa fluiu aos poucos. Ele falou sobre sua área de trabalho, e em como a profissão o tornou um homem. Marine contou de seus desenhos e inevitavelmente citou o pai.

- Cresci sem a minha mãe, perdi o meu pai recentemente e sou obrigada a conviver com uma pessoa que tem uma mãe maravilhosa, um pai vivo, o que já é algo e consegue reclamar de tudo. – Leo internamente concordava com Marine. – Bom, eu sei que é seu amigo, mas... – E deu de ombros.

- Eu concordo com você. Diversas vezes eu e Renan discutimos por causa disso. Essa forma como ele trata a tia Lana sempre me incomodou... Tanto que hoje em dia são raras as vezes em que ele reclama comigo sobre isso.

- Que bonitinho, imagino que você deva ser um filho de ouro para os seus pais. – Leo deu um meio sorriso triste que deixou Marine confusa. – O que?

- Eu acho que somos mais parecidos do que você pode imaginar.

- Acho pouco provável.

- Eu perdi a minha mãe aos 17 anos. Ela era professora e trabalhava numa área um pouco perigosa em São Paulo. Era seu aniversário. Três tiros num confronto entre polícia e bandidos. Um na cabeça e outros dois no peito, minha mãe não teve chances de sobrevivência. - O corpo inteiro de Marine congelou. Nunca imaginara que Leo também perdera alguém tão importante. Envergonhada com suas atitudes, sentiu toda a sua postura mudar. – Foi o pior dia da minha vida. E sempre que paro para pensar nisso eu sinto raiva de tudo e principalmente da minha mãe, porque eu pedi para ela não ir trabalhar, mas... – Leo balançou a cabeça diversas vezes em um não. Marine de repente se viu muito próxima dele e segurou sua mão. – Eu estava na escola, lembro com exatidão da direção vindo me chamar. A dona Neide, diretora da época chorava e eu não conseguia entender nada, até que ela disse que minha mãe fora assassinada. Foi a primeira vez que tive vontade de morrer. – Marine então o abraçou espontaneamente e Leo estava absorvido demais em suas lembranças para se dar conta do que acontecia ali. Era algo extremamente mágico e forte, quase indestrutível. Ali nascia a compreensão. A sangrada compreensão de quem sabia o que era perder alguém tão importante quanto um pai ou uma mãe.

Leo apertou Marine em seus braços e ficaram ali por um longo tempo, em silêncio. Ela precisava de alguém que compreendesse o que era perder e Leo precisava de alguém como Marine, mas nenhum sabia disso ainda.

A dor em comum fez a amizade nascer naquela pizzaria na rua 7 de Maio.

Tamiris Vitória
Enviado por Tamiris Vitória em 07/09/2018
Reeditado em 28/01/2023
Código do texto: T6442473
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