Fingindo que dormia, Maria Emília cobriu o rosto,  tentando  compreender o que pensava a amiga a respeito dos monstros  apresentados às crianças como inofensivos brinquedos. E concluiu: “Não existe monstro bonzinho. Monstros  se apresentam  como justiceiros, fazem o bem a uma pessoa e o mal a outra em nome da justiça.” Descobriu o rosto e pediu a Ravenala que contasse uma estória que lhe fizesse dormir.

— Conte carneirinhos. Conte assim: “Um carneirinho pulou a cerca;  dois carneirinhos, três carneirinhos pularam a cerca...”
— Já  contei 99 e ainda não consegui dormir.
— É porque uma desgarrou-se! Não dormirás, enquanto não encontrares a ovelha perdida.
Maria Emília andou por prados e campinas, cidades, mares e vilarejos. Viu o paraíso perdido. E lamentou: “O mundo encantado está em processo de desconstrução. Muitas bonecas foram  jogadas no lixo, porque lhes faltavam braço ou pernas; outras agonizam arrastadas por  águas turbulentas da liberdade descontrolada.”
 
Deitou. Adormeceu e dormiu profundamente.
 
Sonhou com uma fera que tinha dez chifres e sete cabeças, e nas suas cabeças, nomes blasfematórios.
 
Ouviu um estrondo como o ribombar de mil trovões, e o anjo das trevas cobriu  a terra com sua sentença de morte: “Tudo está perdido. Apagado. A  Verdade e princípio de fé; tudo está perdido. Deus está morto.” Ouviu ainda o tropel de muitos cavalos, e o tinir de espadas da corte celeste em luta contra as forças do mal. 
  Ravenala acordou em sobressalto. Sua boneca conversava só. Deve ter tido pesadelo!
Puxou a caixa de sapatos que estava debaixo da cama. Ergueu a tampa. Maria Emília  estava fria.
— Vovó, vovó!...
— Que houve, minha filha?
— Emília morreu!
— Bonecas não morrem. As meninas  crescem, e guardam suas bonecas no armário.
— Emília morreu. Quero um velório com todas as honrarias que ela merece.
A avó entendeu que era preciso penetrar no mundo das crianças, para compreender o recado que elas mandam aos adultos nas falas e diálogos estabelecidos com as bonecas.  Era hora de guardar a boneca de Ravenala, como ela, Corina,  guardara a sua quando ficara mocinha.
— Podes fazer tua Emília voltar  a viver outra vez.
— Ela está velhinha demais, vovó.  Não pode nascer de novo!
— Pode, minha filha! No fantástico mundo da imaginação tudo pode acontecer. Nele, o intangível torna-se palpável.
Não satisfeita com a mensagem que tentara passar à sua neta, Corina acrescentou: A ficção é uma realidade que ainda não aconteceu. Limitados pelo temor ao desconhecido, tornamo-nos  prisioneiros do medo e nem percebemos que a vida é um grande mistério a ser desvendado.
— Finja que está morta, senão, não terá velório! — disse Ravenala com autoridade suplicante — precisamos quebrar a monotonia, fazermos alguma coisa diferente, como o enterro de uma boneca.
— Eu morta? Fui criada para ser imortal! Nunca existiu, e jamais haverá o enterro de uma boneca.
— Finja que está morta. Então, conhecerás o deus das bonecas, e ressuscitarás no terceiro dia.
— Isto é ficção ou realidade?
Ravenala rememorou o que sua avó Corina lhe ensinara: “A ficção é uma realidade que ainda não aconteceu.”  E preocupou-se: “Será que um dia, as bonecas vão morrer?”  E mudou a proposta. ‘Não queres participar das exéquias de uma boneca, então, vamos brincar de caça ao tesouro?”
— Melhor assim – disse Maria Emília — mas será por que   há sempre um  tesouro escondido atrás da porta?
 — Para ser descoberto.
—Tesouro atrás da porta ou obra  inacabada? — Retrucou a boneca com voz de quem está  dentro de uma caixa de sapatos.
— Ora, Maria Emília! Devemos levantar hipóteses, sem afirmar, ou afirmar e depois negar. Por exemplo: as ondas atlânticas que sepultaram Escobar podem  ser as mesmas que engoliram Fernão.
— Nunca me falaste de Fernão!
— Ainda não é hora de conheceres Fernão. Ele foi levado em espírito ao dia de seu batismo,  e no  mergulho ao sobrenatural,  viu seu corpo assim que plasmado no ventre da mãe, curvado como beato em genuflexão. Sentiu muita   angústia porque não era desejado. O sentimento de rejeição provocou nele   um bloqueio do desenvolvimento cognitivo. O menino cresceu, mas nunca quis ser adulto. Nunca quis.
— Que é desenvolvimento cognitivo — quis saber a boneca.
—  É o processo  de passar  por estágios como o que estás nele agora: Eu falo, tu ouves; tu falas, eu escuto. Toco flauta e danças minha música, mas quando te tornares adulta, a música que toco já não será mais agradável aos teus ouvidos, porque os ouvidos perderam a sintonia com o Tocador de Flauta. E dirás que a música que toco é lavagem cerebral. Depois, na velhice, recobrarás a harmonia,   e outra vez, ouvirás a voz do vento.
 — Vi  Machado tecendo o perfil psicológico de Capitu.  Afinal, Capitu traiu  o marido, ou não?
— Muitos leitores  atiram-na do monte Capitolino, outros, acusam Bentinho pela morte de Escobar. 
Ravenala fez uma pausa, depois retomou o discurso.
Somos uma colcha de retalhos tecida de muitos sonhos, bons ou ruins temos esse pano velho plasmado nas entranhas. Dito isto, abriu o arquivo onde ficam guardadas as boas lembranças, pegou um livro e folheou algumas páginas em que  um homem de sobrancelhas fechadas dava a Emília os primeiros traços de vida. “ Olha, Emília, se  esquadrinhamos cada personagem, vamos  encontrar recortes da personalidade do criador.  Ele não se livra  de suas próprias lembranças. Mais cedo ou  mais  tarde, elas aparecem na face ou na alma de seus personagens. O autor coloca um pouco dele mesmo em cada personagem que cria. Entendeu?”
— Não consigo processar tanta informação, derramada assim de uma só vez. É justo fazer  isso com uma boneca que tem cérebro de pano?
— Bob também pensava assim. Hoje ele reconhece que devemos apenas levantar hipóteses.
— O Bob só existe em tua  imaginação, princesinha. Ele não é real.
— Claro que o Bob existe! Esteve conosco na Quinta da Boa Vista. Não te lembras?
—Aquele é Robert!
— Robert    e Bob são a mesma pessoa.
— Desta vez, pensei como boneca!
— Nem tanto! Para meu pai, Robert  é Bob. Para minha mãe, Robert é apenas o filho da quase vizinha.
— E pra ti?
— Para mim, Bobinho... Às  vezes, bobinho. (pronunciado com vogal fechada no primeiro ‘ô’.)
— Bob não é bobo! (ô)
—Bobinho (ô) é uma forma de tratar as pessoas com intimidade.  Neste caso, não tem o sentido de tolo.
— Que é ser  quase vizinha?
— É uma pessoa que mora meio perto. Quase longe. Quase longe é quase perto. Quem mora em teu coração, mesmo estando longe, está perto. Isso é quase perto.
— Entendi quase tudo.
Esperou Emília acusá-la de plágio ou pelo menos de fazer  um paralelo entre o ‘quase longe, e quase perto’ de Ravenala e o diálogo do pequeno príncipe com a raposa de Bach. Mas a boneca, a  boneca simplesmente  acrescentou: “Começas a amar uma pessoa no momento em que te aproximas do coração dela. Se nunca te aproximares, ela estará sempre longe, mesmo estando perto. Isso é quase longe. Mas se te aproximares dela, ainda que venha a se separar geograficamente, e, estando longe, estará perto. Isso é quase perto.”
Ficou contente, porque Emília aprendeu o que lhe foi ensinado. E nunca mais pensou que não devesse dar ouvidos ao que diz uma boneca. Foi por pensar como uma pessoa adulta, que a boneca Maria Emília conquistou a credibilidade de sua amiga.
— Achas que alguém vai ler a coisas   que escrevo?
— Não há nada tão ruim que não sirva para alguma coisa.
— Lembro-me de um fato, quando meu pai estava prestes a  rasgar o dicionário de sentenças latinas, e se deparou com estas palavras que acabas de dizer.
Emília empalideceu.
— Eu não disse que cunhei a frase. Só não sabia como explicar que não era minha.
— É fácil. Se escreveres expressões ou textos de outrem, ponha aspas. Se o discurso for oral, diga: ‘Abre aspas. ’
— Então os falantes devem abrir aspas em tudo que dizem, porque ninguém é original. Nem o primeiro homem foi original! Adão  só falou depois que Deus soprou em suas narinas.
A boneca ficou satisfeita por advogar em causa própria. E retomou o assunto:
— Suponhamos, que alguém  leia teu livro. Para onde vão os livros depois de lidos?
— Ora, muitos livros nem chegam a ser lidos. As pessoas os têm como enfeite nas estantes, outras como fonte de pesquisa ou consulta. Nunca lidas ou consultadas, as páginas ficam amarelas, traças roem, e os livros são lançados fora. Os que tiverem a sorte de serem lidos sofrerão pena de morte, vão parar na lixeira, e serão triturados pelas engrenagens dentadas do caminhão da coleta.
Emília fez uma carinha de tristeza.
— Semente lançada ao pedregulho.  Meu pai age diferente. Ele dá destino aos livros que lê: esquece-os de propósito, em algum lugar público. E vigia de longe. Avalia: se a pessoa folhear algumas páginas e levar o livro. É leitor. Se antes de folhear, olhar para trás, olhar para os lados... e constatando que não vem ninguém, pegar o livro e fugir. É ladrão. Ocorrendo a segunda hipótese, senhor Monteiro resmunga: ‘A ocasião não  faz o ladrão, o ladrão se revela, quando a ocasião é favorável. ’
Ravenala pega carona num fiapo de conversa, quando  a boneca pensava  alto, e  deixa escapar conceitos aparentemente contraditórios.
— A intenção não era de que alguém pegasse o livro?
— Sim! Pegasse para ler. Ladrão não tem tempo de ler livros. São muito ocupados, trabalham demais no planejamento estratégico de seus crimes.
— Falávamos mesmo de quê?
— Dos livros que meu pai esquecia em logradouros públicos.
— Então, por que teu pai não faz a mesma coisa com os jornais lidos?
— Quem vai querer jornal de segunda mão? Se ele se esquece de ler o jornal no mesmo dia da edição, depois não o lê mais.
— Bobagem! Tanto faz jornal de ontem, de hoje ou de cinquenta anos atrás, as notícias são as mesmas. Pode pegar o jornal velho e mudar só a data. ‘Fora Vintém!’ — protesto no ano de 1949 contra o aumento da passagem do bonde no Rio de Janeiro — Podemos retroagir mais. Situemo-nos no  ano  99 depois de Cristo. Naquele tempo, a Europa entra em pânico: ‘O mundo vai acabar!...’  Já no ano de 1999 corria o boato: dois mil  anos não inteirarão.
— Ora, Ravenala! Na história da criação do homem e do universo, mil anos é cisco no olho de um gigante.
— Então  que achas deste cisco?
 
 
O orçamento deve ser equilibrado, o Tesouro Público deve ser reposto, a dívida pública deve ser reduzida, a arrogância dos funcionários públicos deve ser moderada,  e controlada; a ajuda a outros países deve ser eliminada, para que Roma não vá à falência. As pessoas devem novamente aprender a trabalhar, em vez de viver às custas do Estado.
 
— É... este pronunciamento do senador romano tem mais de um  século.
— Um século? — contrapõe a boneca — Conte o tempo do ano 55 AC e veja se o cenário político de agora não é o mesmo da época do império romano!  Tem  mais: Ainda no  tempo do rei Jeroboão, disse o profeta:  ‘Não ficará  impune quem diminuir a medida, adulterar  balanças e dominar o pobre  com dinheiro e os humildes com um par de chinelos. Ai daquele que esmagar no pó da terra a cabeça do pobre e transviar os pequenos’.
E faz as contas: O rei Jeroboão foi contemporâneo  de Salomão, isso, quase mil anos antes de Cristo. Decorrido todo este tempo, a cordilheira dos Apeninos, ainda olha a Cidade Eterna em chamas, e  o imperador se regala com o imposto pago por  daqueles que em chama se consomem. Tudo igual ao que era antes.
— Discordo, em parte, disse Ravenala:  “O crime agora usa tecnologia de ponta, e é mostrado na TV com informações pormenorizadas, um manual perfeito para meliantes.”
 Emília não conhece o mundo do crime, mas recorda-se de ter visto imagens do brinquedo assassino e isso lhe causou grande perturbação, porque, ficou gravado em sua  alma o eco dessas más lembranças.
Parou, aguçou os ouvidos e deu sinal de alerta:
— Vem vindo alguém. Ouço o barulho de passos no soalho.
— Deve ser vovó. Finja que dorme.
A boneca cobriu-se com a tampa da caixa de sapatos. Corina se aproxima. Afere a temperatura. Ravenala está com febre.
— Coisa passageira, minha filha.
E a boneca dormiu na caixa como a menina que Ravenala fizera adormecer dentro de si mesma.  Agora estava só. Sozinha, Ravenala navega no silêncio de sua imaginação. Sabia que era preciso engolir muito papiro, para encontrar o Tesouro de Bresa.  Leu, releu e remoeu muitos livros, e era capaz de regurgitar frase por frase, ainda que lidas há  anos! Aprendeu a navegar  nas asas da imaginação, alçar voos  a bordo de uma nave espacial;  romper horizontes e ultrapassar barreiras. Temia, no entanto,  não ser compreendida  naquilo que escrevia.
Fechou o maleiro, afastou o forro da cama e se deitou. Pensou no sol se pondo atrás das asas de uma gaivota, no voo rasante de uma  águia. E permitiu que sua mente abrisse as portas para a grande aventura de viajar na imaginação. Estendeu a mão, alcançou as engrenagens do relógio, adiantou  o tempo e  situou o calendário em 1994, quando teria 15 anos. Logo, reacendeu a chama da memória, e  reabriu o arquivo de uma conversa que tivera com  o pai, há muito tempo.Devemos ler  muitos livros para escrever um.  Não vês Machado? Era um homem sábio, adquiriu conhecimento de mundo, buscando o saber na leitura e na meditação, ou aprendeu com Marília de Dirceu?  Nunca se sabe!...”
O próprio Jeremias fazia voos literários  e vestia sua filha com vestes que não cabiam nele. “ Somos o geógrafo de Exupéry, minha filha, cercamo-nos e vivemos no mundo que criamos em torno de nós mesmos. Ora, o homem tem dentro de si uma  gaivota buscando romper os limites de sua espécie, ou uma águia que se renova, afiando as garras, arrancando as penas e fortalecendo as asas para alçar novos  voos. Creia, não haverá uma nova aurora, novo sol  e novo dia,  se não houver um homem novo,  a sonhar com novo céu nova terra. Tudo depende da visão que temos de mundo: uma catedral pode parecer um monte de pedras; e  uma serpente, inofensiva minhoca.” E quando Ravenala pensa que o pai encerrara o discurso, ele retoma o assunto. “Livro é uma pedra. Tosca  ou polida, é uma pedra em movimento.   Toma, pois, caneta e papel e descreve o voo de uma águia ou despertar de uma gaivota. As biografias não mentem, muita gente famosa fez literatura antes dos quinze. Tens  o exemplo de Coralina que  aos quatorze anos publicou ‘Tragédia na Roça’. Ganhou o carinho do público, e alguns vinténs de cobre fazendo doces.”
— Pedra em movimento?— Ponderou Maria Emília —  Não decidiste ainda se escreves um conto, um romance ou um ensaio. Trocas nome de personagens por temer algum processo na justiça; deslocas  cenas de Campo Grande para outro campo, só por causa dos Batista.  Se ficares em Campo Grande, os batista arrogarão   direitos. Se  em Campo Geral os Guimarães vão querer um quinhão na partilha das receitas. Em tua Estrada sem fim, retire  a migração do campo para a cidade. Mostre apenas as cenas do Rio de Janeiro!
— Posso amarrar um conto na alça do intestino de outro conto. Posso cantar um canto, contar um conto, contanto  que se preste para alguma coisa.
— Cante um canto, ainda que seja de dor. Lance fora o cobertor de problemas que envolvem o coração da humanidade, mas escolha o público-alvo.
— Ora, Maria Emília! Vendo colcha de retalhos, tecida com os sonhos do povo. Vendo o  canto do galo, o ciscar da galinha... (dos outros.)  Vendo pintinhos de galinha, cruzada com o galo do vizinho. Meu galo não inicia o canto. Apenas levanta o canto que vem de outro terreiro
— Verdade. A arte está sempre em  construção. O poeta, o escritor, o artesão levanta o primeiro canto e outro galo faz a aurora de João Cabral acontecer. Seja a  aurora que  tinge a negritude com o alvorecer, e o galo que canta para acordar o cancioneiro.  Levante a voz do povo. É preciso que um galo cante, e outro galo levante o canto noutro terreiro. 
— Temos nossos momentos de apagão.  Nesses  dias de negrume, não adianta insistir, é necessário esperar que a névoa se dissipe.
—  Meu  mundo caiu! — disse ela
— Que é isso, menina?
— Não consigo mais produzir nenhuma escrita.
— Nunca falta o que escrever.  Devoraste muitos livros. É hora de passar para o outro lado.
— Quero fazer um ensaio romanceado!
—  Pois faça! Inove. Quebre estruturas e convenções fragilizadas.  Podes escrever um livro a partir da letra de uma música, de um poema ou até mesmo de um fiapo de conversar apanhado em um boteco. Só não se esqueça que escreves para  os outros. O leitor espera, não necessariamente, por um final feliz, mas, no mínimo, por um desfecho coerente. Algo que seja um caldeirão fervente de cenas, cenários e ação. As digressões são cansativas. Muitos descobrem  essa técnica e saltam as páginas que discorrem sobre um regato louro, simplesmente, não leem.
— Quem assim procede, acha que o autor quer encher linguiça. Ao contrário, a literatura acontece no regato louro, no descrever o indescritível, no segurar o vento com uma peneira. Aí a obra ganha estrutura de arranha-céu.
Fitaram-se em silêncio.
E era possível ler o pensamento de cada uma delas: “ É preciso  agarrar a sombra, perseguir o vento, levantar a aurora no bico da passarada.”
— É necessário, mas nem tão preciso, — disse uma delas — às vezes, sonhamos com um regato louro; uma Ilha, uma lagoa encantada e se não registrarmos esses sonhos, eles serão soprados pelo vento.
— Verade! Clarice,  publicava crônicas em jornais, depois as reunia  em um conto e  assim, viveu sua felicidade clandestina. Não foi também o que fizeste? Teu livro é o resultado da compilação de fragmentos, antes, publicados em sites literários. O resto é o lado externo do coração.
— Leio livros só para falar deles. Bem ou mal. Li alguns dos quais nada pude dizer. Mas, aos dezessete anos, quando conversei com  Reika sobre vidas paralelas, não pude calar-me. Como pode uma estudante abandonar o curso de filosofia para acompanhar ciganos? Sentir prazer em acomodar-se numa pedra e conversar consigo mesma?
— Sonhos que não se materializam, ficam guardados e nos perseguem, até que  os ponhamos  em prática.
Quando Robert soube desta conversa de Ravenala com sua boneca, ele  construiu em sua mente  a imagem de uma cigana sentada numa pedra. Depois, riu sozinho: ‘Dona Leide mantinha um sapo na cozinha para comer moscas. O sapo sobre uma pedra estaria filosofando?’
— De que  ris? — Indagou Ravenala.
— Estava pensando no filósofo de dona Leide.
— Quem?
— Um sapo que ficava sentado numa  pedra, comendo moscas.
— Eu me casaria com o príncipe que fosse dono de um sapo filósofo.
Talvez Robert fosse o sapo, não o príncipe, ambos eram cria da mesma casa.  Levantou-se  e pegou  na lixeira duas laudas impressas em papel ofício e recomendou mais apreço com a obra em construção.
— Isto não pode ser descartado! Alguns leitores são atraídos pela docilidade dos personagens, outros pelo asco que elas  provocam.
— Verdade, uns torcem  para que Ramayana  morra logo; outros, que ela abandone o mundo das drogas e se case com Leonardo.  Não gosto de Ramayana, mas ela fez parte de nosso tempo de colegial!  Dividimos tempo precioso na Quinta da Boa Vista e em muitas praias do Rio de Janeiro.  
Sem mais tecer considerações a respeito de Ramayana, Robert rabiscou no  papel a palavra:  Piracema  e apresentou a Ravenala.
— Veja: retirando-se o “p” iracema salta no meio dos borbotões de espuma.
— Ora, Bob!  Alencar quis enaltecer a beleza da  América, não da índia Iracema. Não percebeste que Iracema é anagrama de América? É só trocar as letras de lugar.
— Nunca tinha reparado! Não sobra nem uma letra.
— Nem falta!
Imaginou-se conduzida por Robert a uma cabana nas margens do rio. Apanhou grossa mecha de cabelos que lhe cobria os seios, e jogou para traz. E naquele dia... Naquele dia Robert voltou pensativo: “Como seria a vida em família: casar, ter filhos... Nunca antes pensara nisso. Estaria seu  pai ainda vivo? Dona Leide falava vagamente de certo intelectual... E referia-se a ele como  o finado seu pai, sem citar o nome.
— Se me julgas digna da tua amizade, almoça em minha casa no dia dos pais — disse ela imitando gestos de uma moça elitizada do século passado.
— Claro! Posso chegar ao meio-dia?
— Pode vir às onze horas. E pensou: “ Se viesses para o   café da manhã, já à noite, ao recolher-me no leito,  contaria as horas que faltam para o dia   amanhecer.”
No dia dos pais, dona Leide acompanhou o filho  de longe, até que a portinhola da mureta da casa de Jeremias se abriu, e Robert entrou. Enquanto aguardavam a voz que anuncia:  “A mesa é  posta”, Ravenala estruturava frases como: Nunca me falaste de teu pai!... Não, esta não!... Melhor levá-lo a conhecer meu quarto. Mostrar-lhe  a Barbie que ganhei de presente na festa de quinze anos. “E se Robert perguntar: Ainda brincas  de boneca?” Ravenala correria o risco  de passar por este  vexame,  contanto que tocasse o coração do  Bob, sem machucar.
— Olha como é linda!
— Quem são os pais da Barbie? Por certo a mãe é você. E o pai?
— Bem, no reino das bonecas...
— Também no reino das bonecas, deve haver uma família estruturada: pai, mãe e filhos.
Riu.
Com semblante sereno, Robert  deixa transparecer que o momento é propício para uma conversa sobre família. Mormente, porque, se ele se declarasse pai da Barbie e sendo Ravenala a mãe...
— Nunca me falaste de teu pai, disse ela.
— Não o conheci. Minha mãe diz que meu pai faleceu quando eu tinha poucos meses. Mas nunca me levou para ver o túmulo dele.  Vejo em tudo isso um grande mistério. Certa vez, minha mãe   confidenciou que há muitos anos, estivera no cemitério  e sentiu uma força que vinha das entranhas da terra, tentando puxá-la para dentro do túmulo. Foi a última vez que visitou o finado, disse ela. Faz tanto tempo!  Não saberia mais localizar o túmulo. ... “Não tem um epitáfio, uma lousa, alguma coisa que identifique o morto?”  Perguntei, naquela oportunidade. Mas dona Leide desconversava: ‘Talvez nem mais uma cruz!’ — E o nome dele?  Insisti — ‘Pode chamá-lo de Chiquinho ou Francisco, José Carlos Tucunaré, ou um cisco qualquer.  Chame-o como quiseres. Pai ausente  não tem nome.’  Ela  sequer ousava pronunciar o nome do pai de seu filho. E, depois  da conversa sobre uma força estranha que tentava sugá-la para as entranhas da terra, Robert, passou a imaginar o  cemitério como sendo morada de fantasmas.
— Nunca o procuraste?
— Procuro meu pai entre os vivos. Se ele for morto, prefiro não encontrá-lo.
Ravenala acenou, afirmativamente. Ela também não queria contato com os mortos, por entender que, nunca se sabe quem goza da intimidade com Deus ou está na penúria do abismo.
— Dona Leide nunca soube que procuro meu pai. Acho que o esconde de mim, ou me esconde dele, para castigar o velho, ou mesmo apagar a história dela, que também é minha e dele.
— Vi teu nome escrito numa página amarelada  dentro de um baú de meu pai.  Ele aproximou-se e perguntou se eu tinha encontrado algum tesouro. Assustei-me. Fechei o baú e sai com cara de tacho.
Robert ficou ansioso ao vê-la abrir a gaveta da cômoda, na expectativa de que Ravenala lhe apresentasse o tal papel em que figurava o nome dele. Ela, porém,  entregou a Robert   outra coisa.  “ Leia isto:”
 
 
A
Pare
de do
mundo
é azulada,
até aonde a vista alcança O poeta vê além das
nuvens brancas uma aquarela: nuvens amarelas... pássaro
solitário refaz o ensaio de uma valsa. Tudo passa velozmente
no imaginário... Se Fernão olha
a gaivota, não vê
o sol de relembranças
que se põe
atrás
de
su
as asas
 
Desinteressadamente, Robert comentou:
 — É apenas um poema! Não leste  o que estava escrito na carta encontrada no baú de teu pai?
— Vi teu nome nela, logo nas primeiras linhas. Pareceu um pedido de desculpas.
— Muitas vezes deixamos o pé preso a uma situação, e não arredamos do lugar. Não desapegamos de um trauma, ainda que ocorrida há muito tempo.
Ravenala não compreendeu se Robert falava de si mesmo ou de outrem; da moça que teve a perna presa no vão da plataforma do trem ou das meninas que trabalham no semáforo. Afinal, muitas vezes ele fora carona de seu Jeremias no trajeto de casa para o colégio Marista e via as meninas limpando para-brisas com rodos para ganharem alguma moeda.
 Faz tanto tempo...
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..." , livro em construção.