QUATRO LENDAS AFRICANAS

O ZULU UNCAMA I – 1º ABRIL 2018

De Rip Van Wilkle conta-se a aventura

que de todos é bastante conhecida:

sob uma árvore, sua figura adormecida

ficou cem anos para sua desventura...

Sem perceber que sua soneca tanto dura,

ele se ergueu da noite bem dormida

e retornou à sua casinha tão querida:

qualquer memória de um sonho lhe perdura...

Sem enxergar sua longa barba branca,

seus passos arrastados percebeu,

se endurecera por não mudar de posição!...

Chegado à aldeia, a sua memória estanca:

crescera muito e a ninguém reconheceu,

e ninguém dele se lembrou nessa ocasião!

O ZULU UNCAMA II

Esta história inspirou-se em semelhante,

muito narrada na Bretanha e pela Irlanda;

entrara um jovem na caverna de nefanda

gente, sua acolhida bem brilhante

e o entretiveram de forma interessante,

mas sem o informar que o tempo escanda

bem mais depressa ali; e então o manda,

para sua terra, a troçar dele nesse instante,

que por cem anos se afastara de seu lar...

Noutra versão um jovem vai acompanhar

dos elfos canto e dança na floresta...

que a igual castigo o vão a condenar;

parece jovem, mas breve tempo só lhe resta

após cem anos ter passado nessa festa!

O ZULU UNCAMA III

Ou tais histórias guardam algo de real

ou são ouvidas nas conversas de passagem.

Contam zulus, africana sua paisagem,

que o caçador Uncama, bom profissional,

fora induzido, por insistência conjugal,

a procurar um animal, que em sua vadiagem

a sua horta atacava; e cheio de coragem,

sem ter noção do tamanho do animal,

seguiu-lhe os rastros esse hábil caçador,

até encontrar-lhe a toca, ao rés do chão;

quando desceu, viu povoação de pigmeus,

que o trataram com respeito e até calor,

mas que o mandaram, sem lhe dar explicação:

“Retorne, Uncama, agora mesmo, para os seus!”

O ZULU UNCAMA IV

“Dê minhas lembranças para a sua mulher,”

disse-lhe o rei; era eu que de sua horta

roubava os frutos para deliciosa torta...”

Uncama despediu-se, com prazer,

porém na aldeia, sem se dar a conhecer,

ninguém mais o reconhece; e na sua porta

morava gente que com ele não se importa...

“Onde está a mulher de Uncama?” – quis saber.

“Mulher de Uncama? Deve ser o caçador,”

disse-lhe um velho. “Fazem já cinquenta anos

que foi caçar e nunca mais apareceu...”

“A sua mulher sofreu pungente dor

e hoje mora com seus filhos, sem enganos:

esta choupana há muito tempo me vendeu...”

O ZULU UNCAMA V

“Preciso vê-la. Trago recado para ela...”

Então o velho o observou com mais cuidado:

“Julgo que seja com a mulher aparentado,

Parece muito com esses netos dela...”

“Vá descendo junto ao rio, a fim de vê-la...”

Saiu Uncama dali, muito apressado;

sempre indagando a quem achava desse lado:

“Busco a mulher de Uncama: é muito bela!”

“Pode ter sido, mas agora está velhinha,

mora com um filho e dois netos ali adiante...”

Correu Uncama, sem saber o que fazer.

E finalmente a tal morada se avizinha;

chegado à horta, temeu seguir avante:

Se envelheceu, o que posso lhe dizer...?

O ZULU UNCAMA VI

“Trago um recado para a mulher de Uncama!”

Chegou a velhinha, trêmula e entrevada;

ao ver o jovem, pareceu muito abalada,

mas por seu nome o caçador a chama...

“Tenho um recado,” novamente ele proclama.

“O rei dos pigmeus, terra encantada,

mandou dizer que sua horta era roubada

por ele mesmo, para suas tortas de alta fama...”

“Você é Uncama? Ai, meu deus, não pode ser!

Sempre pensei que você havia morrido,

mas traz a cesta que eu trancei com tanto afeto!

“Mas como pôde esta coisa acontecer?

Eu criei os nossos filhos sem marido

e você está ainda mais moço que seu neto!”

O LEÃO E O CHACAL I -- 2 abril 2018

Esta história é semelhante às de Renard, (*)

mas na África do Sul este animal

não existe; em seu lugar é o chacal,

cuja esperteza muitas lendas vem louvar.

Dizem que houve uma seca singular

e a sede a todos já fazia muito mal;

só restava uma lagoa e o manancial,

muito depressa, começava a se secar.

Simba, o leão, que é o rei dos animais,

convocou a seu redor toda a nação:

“Vamos cavar um poço e haverá água.”

Obedecido foi por todos os demais,

mas o chacal não quis dar cooperação:

“Pois nada beberá, para sua mágoa!”

(*) Renard, o Raposão esperto, do folclore francês.

O LEÃO E O CHACAL II

Cavado o poço, verteu água abundante:

todos puderam ali beber a se fartar,

mas de longe viram o chacal a espiar

e insistiram que ao vadio o rei espante.

“Eu me encarrego,” falou o leão, impante.

“Fico aqui perto e não o deixarei chegar;

se ele insistir, sem piedade o vou matar!”

Ficou o leão ali, forte e rampante!...

Mas depois que todos mais foram caçar

ou qualquer resto de verdura procurar,

aproximou-se o chacal, muito lampeiro...

“Não vou deixá-lo beber sequer um gole!”

“Senhor meu rei, peço que não se amole,

só vou dançar nessa umidade, bem ligeiro...”

O LEÃO E O CHACAL III

Ficou ali, só brincando, alegremente,

sem se chegar até o poço; e então, parou.

De um esconderijo uma colmeia ele tirou:

“Não tenho sede, este mel é suficiente...”

Ora, o leão já se achava descontente;

não tinha sede, mas a fome o torturou;

ninguém lhe dera qualquer migalha que caçou;

já arrependido de sua missão premente...

“Chacal, dê-me um pouco desse mel!...”

“Senhor meu rei, reparto com prazer...”

Meio de longe, lhe alcançou um favo...

“Tenho uma fome que não me dá quartel;

bebo à vontade, mas não tenho o que comer,

quero mais mel!” – afirmou, rugindo bravo.

O LEÃO E O CHACAL IV

“Tenho medo que me ataque... Então, se deite

e em sua nobre boca colocarei outro bocado...”

O Rei Leão deitou-se, então, de lado...

“Majestade, não me apraz ser o deleite

para sua fome. Se permite que eu ajeite,

com um cipó, suas garras com cuidado,

eu lhe darei todo o mel que tenho achado...”

Maugrado seu, o leão deu seu aceite...

Suas patas dianteiras o chacal bem amarrou

e outro favo de mel lhe pôs na boca...

“Deixe que prenda também as suas traseiras,

“muito chacal bem sei que devorou;

se não me cuido, uma sorte igual me toca...

Assim, não me persegue em ações traiçoeiras...”

O LEÃO E O CHACAL V

Muito guloso, o leão de novo concordou;

sem dar mais mel, foi é beber esse chacal;

notou o leão como procedera mal!...

“Excelente essa água!” – o outro zombou.

“Amanhã eu volto. O mel já acabou...

Deixo-o amarrado assim, é natural...

Que o liberte, se quiser, outro animal!”

O Rei Leão, sem mais, se apavorou...

“Senhor Chacal, por favor, não vá embora!”

“Por que? Tem medo dos abutres lá de cima?

Serão seus olhos que irão furar primeiro...”

“Meu bom chacal, não me deixe nesta hora!

Se qualquer outro de mim hoje se aproxima.

irei perder a autoridade por inteiro!...”

O LEÃO E O CHACAL VI

“Problema seu! Eu já matei minha sede...

“Até loguinho, Majestade! Bom descanso!”

“Chacal amigo,” disse o rei, em tom mais manso,

se me soltar, minha palavra a mim impede.”

“Eu lhe prometo que irá beber quanto lhe quede!”

“De sua palavra me fio e não me canso,

mas de suas garras perto não me lanço!...”

“Juro que não o atacarei!” O leão lhe pede.

“Somente agora me liberte deste laço!”

Pensou o chacal: Se eu não fizer, outro o fará.

Bem certamente o rei de mim se vingará!

“Dará permissão para que beba?” “Juro que faço!”

O chacal roeu os cipós... E o leão ordena:

“Deixem que beba o chacal! Fiquei com pena!...”

A VITÓRIA DO CHACAL I – 3 abril 18

Bons amigos se fizeram os dois então,

porém os demais súditos se magoaram

e conversando juntos, suspiraram,

mas contra o rei não se rebelarão,

acostumados com a antiga tradição

e por medo de sua força, abandonaram

quaisquer planos esboçados que trocaram:

Cavar o poço do rei fôra a noção!

O rei seguiu assim caçando com o chacal,

suas presas irmamente a dividir,

mas é claro que o leão comia mais.

Tal amizade já temendo acabar mal,

o chacal acabou por construir

nova choupana em condições muito especiais.

A VITÓRIA DO CHACAL II

Com muito esforço, subiu até um rochedo,

levando cordas, que depois lançou

à sua mulher, que a seguir o acompanhou,

mas da corda os chacaizinhos tinham medo;

em uma cesta os foi alçando logo cedo

e sua bela choupana ali se armou;

contudo, ao vê-la, o leão já desconfiou,

de algum truque percebendo o dedo...

“Por que você fez no penhasco casa nova?”

“Aqui de cima posso ver muito melhor

e a nossa caça a seguir localizar...”

O Rei Leão seguiu morando na sua cova,

mas com o chacal botim ainda maior

facilmente conseguiu-se então caçar...

A VITÓRIA DO CHACAL III

Ora, o leão muito bem se alimentava,

parte menor a deixar para o chacal...

Mas, tudo bem, pensava o animal,

é o suficiente... E para as crias transportava.

A chacala uma das cordas lhe lançava

e ele subia, amarrando em cipoal

a parte que levava, de fato, para a qual

contribuíra até mais que lhe tocava...

Porque o leão ficara muito preguiçoso

e numa moita se escondia de tocaia:

era o chacal que perseguia a caça.

Chegada à moita, se erguia o poderoso

e com golpe de pata, ronco e vaia,

derrubava essa presa que ali passa...

A VITÓRIA DO CHACAL IV

Assim na caça era o chacal que se cansava,

mas o leão que comia a maior parte

e algumas vezes, quase tudo e, destarte,

o chacal pouco a pouco se chateava...

Chegou o tempo em que só isso nao bastava

e o mandrião ordenou, bem malazarte:

“Caça tu e me transporta, em fiel arte,

Para minha cova, o quanto me tocava...”

E finalmente, já nem queria repartir.

“Eu sou o rei e teu tributo assim mereço,”

dizia o leão, a rugir de boca cheia...

Pensou o chacal uma forma de o iludir;

semanalmente, lhe pagava o preço,

para a seguir caçar a própria ceia...

A VITÓRIA DO CHACAL V

Já o leão começava a desconfiar;

sua preguiça, por um dia, pôs de lado;

foi ao rochedo que o chacal havia galgado

e lhe falou que desejava conversar.

“Mas não é digno a real cabeça assim alçar,

joga tua corda para que eu seja carregado

até tua casa... E então, sem mais cuidado,

poderemos nós os dois confabular...”

A mulher e as cinco crias do chacal

logo pensaram ter o rei más intenções

e não queriam que se lançasse a corda!

Mas disse o seu marido: “Não faz mal,

ele está gordo com tantas refeições,

não vai poder chegar até a borda!...”

A VITÓRIA DO CHACAL VI

Por via das dúvidas, lançou-lhe corda velha

e o leão foi, mal e mal, se segurando;

bem lentamente, contudo, foi se alçando

e a um macaco bem gordo se assemelha...

Contudo, a corda estava desparelha

e pouco a pouco, já estava se esgarçando...

Bem de repente, acabou se rebentando

e o invasor despencou dessa corbelha...

Caiu de costas, sem mais se levantar...

O chacal esperou. Ao ter certeza,

desceu na cesta e ao leão carneou!

“Por quase um mês vais nos alimentar,

como castigo pela tua lerdeza,

a comer tudo que teu súdito caçou!”

O BECHUANA E O LEÃO I – 4 abril 2018

Era Mwazi um agricultor Bechuana,

que na Rhodésia do Norte cultivava (*)

uma terrinha... Alguns peixes carregava,

que havia arpoado com lança de cana.

Mas um rugido seu coração conclama

a bater com mais pressa, que ali estava

um leão e dele já se aproximava:

seu corpo velho como presa ele reclama!

Ele não tinha uma lança de combate,

frágil a haste a lhe servir para pescar

e já era velho... Não poderia enfrentar

a fera fulva que sobre ele se abate;

não avistava árvores ao redor,

em que pudesse escapar do predador!

(*) Hoje alternadamente reino ou república de Zâmbia.

O BECHUANA E O LEÃO II

Mas o leão se aproximava lentamente,

a tocaiá-lo com alguma precaução,

que alguns guerreiros encontrara em ocasião,

em que enfrentado ele fôra firmemente...

Seres humanos não atacam, normalmente,

esses leões, porque abundantes são

as suas presas habituais. Por tal razão,

esse animal devia estar velho e doente...

Sabia Mwazi que não devia correr,

seria sua fuga interpretada por fraqueza

e a precaução sendo a seguir posta de lado...

Seu coração muito forte já a bater,

seu passo ele apressou, mas com leveza,

caso contrário já estaria condenado...

O BECHUANA E O LEÃO III

Sempre podia seus peixes lhe lançar,

mas isso apenas ao leão atrasaria;

em alguns minutos, tudo devoraria

e novamente o tornaria a caçar...

Estava ainda muito longe do lugar

em que ficava sua aldeia, onde acharia

nos seus guerreiros a proteção que havia:

não tinha tempo para ali chegar...

Lembrou-se então de uma certa rachadura

cortando fundo uma pedra do planalto,

o resultado de algum antigo sismo... (*)

E para lá se dirigiu, em ânsia pura,

sem apressar do predador o assalto,

tal rachadura sendo funda como abismo...

(*) Terremoto.

O BECHUANA E O LEÃO IV

Ele sabia que, logo abaixo da beirada,

se estendia plataforma bem estreita,

com sua magreza, ali ele se ajeita:

seria uma aposta, mas bem melhor que nada!

Sua aldeia já era então civilizada

e dos ingleses alguma roupa feita

eles usavam, especialmente aceita

para uma noite de inverno mais gelada...

Mwazi usava um chapéu e um casaco

sobre sua tanga, com os pés descalços:

seus sapatos só usava ao ir à igreja;

sem pressentir a presença de um buraco,

com os calçados dava passos falsos;

calos grossos em cada pé que a terra beija...

O BECHUANA E O LEÃO V

Deste modo, antes que o leão chegasse,

cravou sua lança bem fundo no chão;

no cabo os peixes amarrou nessa ocasião,

para que nela seu casaco pendurasse...

E seu chapéu lá na ponta colocasse,

pois suspeitava da velhice do leão,

provavelmente já afetando sua visão:

talvez com o espantalho se enganasse...

Decerto a fera se guiaria pelo faro

e ele estando ali na plataforma

o seu cheiro certamente sentiria...

Apertou-se então contra o anteparo,

metro e setenta abaixo da outra forma:

que atraísse ao leão esperaria...

O BECHUANA E O LEÃO VI

E dito e feito... Seu coração forte batendo,

ele encolheu-se contra a rocha fria;

sua presença o leão logo sentiria,

para caçá-lo não mais se contendo!...

Chegou a fera e o espantalho vendo

sobre ele se lançou, como fazia;

a lança se soltou e, à revelia,

leão e roupas no abismo se perdendo!

Esta história se assemelha à do chacal,

porém se afirma ter sido verdadeira,

causando Mwazi a morte do leão...

Desceu ao fundo e, como é natural,

a pele lhe esfolou, um pouco mal,

mas a levou inteirinha à povoação!...