Sombras do Passado
2004. Um relógio instalado no tablier de uma velha viatura Toyota Hiace marcava cinco horas em ponto naquela manhã seca de Junho. O frio devastador aconselhava, sobretudo a solteiros, como eu, nessa época, ao uso de casaco de pele de carneiro e cachecóis ao redor do pescoço. Exactamente neste momento, Kaká Sardinha, o motorista dessa antiga viatura de serviço de táxi, de que eu era o próprio cobrador, com satisfação discreta, abria a porta e entrara. Mal me viu sozinho no interior do Hiace, pronto para mais uma jornada de trabalho, ficou entusiasmado.
Depois da rotineira inspecção – nível de óleo do motor, água no radiador e ar nos pneus, ajustou à volta de sua cintura atlética uma bolsa cinzenta que sempre o acompanha, e ligou o motor. Minutos depois, já ocupávamos uma das faixas de rodagem daquela antiga estrada, na avenida Damas Moura, em direcção ao mercado paralelo da Caponte à procura de passageiros. Mas sempre vigilantes às manobras suicidas dos *kupapatas, sem beira nem eira, mas também aos fiéis da gasosa.
Logo que terminei a minha formação secundária no Liceu de Benguela, em Dezembro do ano de 2003, houve uma desavença entre mim e a minha irmã, Rosita. Aquilo foi a última gota de água. Revoltada, minha mãe enxotou-me de casa e agora, sozinho, eu ganhava a vida penosamente como cobrador de táxi. Nestes momentos de meditação, agradeço minha mãe pela difícil decisão, pois, saindo de minha parentela, encontrei a motivação para ir atrás de meus próprios sonhos e realizações.
Por isso, não me importava com o que os outros iriam pensar ou falar, isto é, não dei atenção aos pessimistas e negativistas. E isso fez toda a diferença. “Porque, quando meu pai e minha mãe me desampararem, o Senhor me recolherá” (Salmos 27:10).
O tempo passou e graças ao Rei da Glória, o Senhor dos Exércitos, com os quatrocentos kwanzas que ganhava no final do dia, eu conseguia o mínimo possível para meu sustento e continuar minha formação de professor no então Instituto Médio Normal de Educação (ex-IMNE) de Benguela, hoje Magistério Primário Comandante Kwenha. De outro modo, o trabalho temporário como cobrador de táxi implicava um sacrifício sobre-humano todos os dias. Com efeito, eu batia às cinco horas em ponto à janela do quarto onde Kaká dormia, geralmente acalentado nos braços de sua amada mulata. Por isso acordava com sorriso nos lábios. Nesse tempo, não havia essa actual onda de criminalidade que hoje, sustentada pela fome, deixa as nossas cidades desertas e apavoradas. Por isso, eu acordava às quatro horas e trinta minutos da manhã e caminhava normalmente sem medo de ninguém do bairro da Massangarala até à penúltima rua da cidade, próximo do Colégio Elisângela Filomena. Confesso que apenas sentia medo do silêncio sepulcral da madrugada. Às vezes, numa rua escura, os cães ladravam denunciando gatunos de roupas esquecidas no varal e quiçá cazumbis. Mas a maior parte do tempo Benguela inteira dormia silenciosa. Ora, por estes dias de Junho, a clientela no serviço de táxi na rota Benguela/Lobito/Benguela minguava, o que mais tarde despertaria o meu patrão a explorar a sempre rentável faixa sul, na expectativa de lucrar uns kwanzas. E raro era o dia em que não faltava no rádio do carro azul e branco a kizomba cabo-verdiana de alento. A voz de Philip Monteiro era uma presença invariável. Por exemplo, “Alta Segurança”, “Irresistível””, Perde Tempo”, “Sara” eram as cassetes que enchiam de alegrias aquele carro e espantavam os males.
- Poeta, conheces o Cubal? – perguntou-me Kaká, sorridente, naquele seu jeito afável.
- Sim, quer dizer…um pouco. Sou mesmo natural da França! – respondi-lhe com alguma hesitação.
- França? Qual França, oh poeta! – replicou olhando para mim com ar de espanto.
-Sim, é um bairro da Ganda onde nasci – argumentei eu ao patrão.
- Ainda bem. Começa a chamar os passageiros. Vamos à tua terra! – dizia alto o meu primeiro chefe.
- Obrigado, boss! Sonhos todos os dias com a minha terra natal – comemorava com os meus olhos postos no horizonte.
Por fim, tendo lotado a viatura, conforme as ordens superiores do patrão, partimos para o destino desejado. Percorridos pacientemente cento e cinquenta quilómetros de estrada, esquivando buracos enormes e fundos, pedras ou troncos anteriormente usados como triângulo por automobilistas irresponsáveis, e uma e outra manada de bois, finalmente chegámos ao município do Cubal, de tarde. Antes, paragem obrigatória em Katengue para degustar batatas fritas e coxas de galinha assada. Ora, eu sabia que o Cubal era o regaço da família de minha mãe, mas era muito difícil reconhecer naquela tarde atabalhoada a casa deste ou daquele parente. Do que me lembro bem é do ar fresco e agradável.
Lá na praça do Cubal, os olhos do patrão não me largavam. Era sinal de que devia lotar outra vez a viatura rumo à Ganda. Assim, a nossa estadia não durou uma hora, porque havia muitos passageiros com destino à Ganda. Dessa forma, seguimos a ordem do nosso patrão comum: o estômago.
O relógio do carro marcava dezoito horas. Nesse exacto momento entrei na atmosfera da Ganda. Dezoito anos depois voltava a pisar a terra que me viu nascer e naquele momento uma nostalgia invadira a minha alma. Eu tinha a sensação de que o farfalhar das árvores, o chilrear dos pássaros e o bramar dos rios anunciavam as boas-vindas da natureza a um filho que regressara à boleia da paz.
O nosso destino foi a praça da Ganda. Abri, outra vez, a porta do táxi e desceram os últimos três passageiros que foram em direcções opostas. O meu jantar foi um delicioso pão seco com gasosa, enquanto o patrão se deleitava com umas cucas para esquecer as malambas desta vida. Depois, adormeci encostado ao banco de passageiro, dentro do táxi, estacionado algures, na companhia do frio severo e da serenata dos mosquitos.
Quando amanheceu, acordei e não perdi oportunidade de caçar os primeiros passageiros para Benguela. Embora eu quisesse a rua atravessar só para perguntar onde ficava o meu humilde bairro da França, não podia fazê-lo. Passou uma hora, e a viatura estava impecavelmente lotada. Não tardou até que o patrão mandara fechar a porta. E assim voltamos para Benguela. Contudo, enquanto andávamos pelas ruas da Ganda, não resistia à emoção ao ver apenas sombras de um passado glorioso, na era colonial, quando a minha terra tinha fama no mundo, sobretudo em Portugal e na Alemanha, por causa do café e não só. Até produtos como salsichas e chouriços, na Buçaco, e bebidas fermentadas, na base do ananás, na fazenda “Prazeres”, eram transformados na localidade. Logo a fome só existia mesmo no dicionário. Mas agora meus conterrâneos estavam mergulhados na penúria e miséria, em consequência da guerra. Onde estava o brilho dessa pérola esquecida no interior de Benguela? – indagara. A falta de água e de energia eléctrica é o cancro que enferma a região, trava o relançamento da indústria e adia o sonho do desenvolvimento sustentável.
- Oh! Ganda, quem te viu, quem te vê – dissera eu bem alto, com tal indignação que não passava despercebido aos olhares dos passageiros.
Trespassou-me aquela forte sensação de tristeza, incredulidade e impotência ao voltar à Ganda e apenas encontrar sombras do desenvolvimento da região, impulsionado, porém, com a chegada do comboio, nos finais do ano de 1908, depois de atingir o Cubal.
A elevação à cidade da antiga vila Mariano Machado, nome do representante do CFB em Angola, aconteceu oficialmente no dia 24 de Junho de 1969, transformando-se nesse mesmo ano em uma Câmara Municipal, pese embora destruída pela guerra civil. Dali para a frente, a Ganda, com ruas largas e bem arborizadas, rapidamente tornou-se símbolo da prosperidade e do labor colonial. Por isso, não era de admirar que os sinais do progresso não tardaram a aparecer. Por exemplo, o primeiro Clube Recreativo da Ganda, inaugurado em 1941, e, hoje, em estado de total abandono, e as primeiras escolas para adultos e crianças surgiram, em 1964. Do mesmo modo, o Hospital Municipal e vários postos de saúde foram erguidos, principalmente nas fazendas.
E por falar em saúde, de entre os médicos estrangeiros destacados na Ganda, referência especial recai para a pessoa do Dr. Gomes Pinto. Não media seus esforços, quando o assunto era prestar assistência à população, ora em consultas, ora em operações, incluindo nos postos de saúde do antigamente.
Além disso, no ano de 1973, a economia da Ganda já dava sinais promissores, por conta da dinâmica da indústria transformadora, principalmente de salsicharia e conserva de frutas da Sociedade Agro-Pecuária do Buçaco, dos estabelecimentos comerciais e das fazendas agropecuárias que produziam a todo o vapor. Em todo o caso, um dos gigantes era a indústria da companhia de Celulose e Papel de Angola (CCPA), antes chamada “Companhia de Celulose do Ultramar Português, SARL”, uma obra dos arquitectos portugueses Bartolomeu Costa Cabral, A. Freitas e Nuno Teotónio Pereira. Esta antiga unidade fabril, da qual hoje já só restou o nome, era nesse tempo o “Ás” da Ganda no combate à fome e à pobreza. Controlava três bairros habitacionais, um clube com uma sala de cinema de 210 lugares, campo polivalente, piscina.
O café, outro potencial adormecido na Ganda, ainda hoje goza de prestígio internacional graças às variedades caturra, robusta e arábica, fruto da colaboração dos produtores, entre os quais o engenheiro agrónomo Mendes da Ponte, tido como o pai do café da Ganda. Paradoxalmente, o relançamento desta cultura ainda é um tímido, não obstante o esforço de pouco mais de mil produtores familiares e oito agricultores que, com suor no rosto e enxada na mão, vão transformando novamente a Chicuma num celeiro de esperança contra a fome.
Um verdadeiro ex-libris, a Ganda foi outrora um destino turístico obrigatório de muitas famílias em busca de tranquilidade e de ar puro para escapar tanto à poluição sonora, quanto ao calor insuportável do litoral benguelense. O fascínio com a arrojada arquitectura de seus edifícios, erguidos no período colonial, era tal, que muitos forasteiros acabaram por nunca mais regressar à procedência.
Na Ebanga, Chicuma, Babaera e Casseque, comunas de gente humilde, a terra é fértil e tudo produz – até uva e maçã, apesar do flagelo da fome. Como se não bastasse, o subsolo da Ganda esconde uma riqueza natural de valor incalculável: o ouro. Razão do vaivém de caçadores de tesouro, entre chineses e angolanos.
Enfim, o desenvolvimento da indústria transformadora de papel, salsicharia e conserva de frutas, principalmente a Sociedade Agro-Pecuária do Buçaco, sobretudo no ano de 1973, e os quatro bancos que funcionavam na era colonial, transformariam a Ganda num chamariz para muita gente em busca de novas oportunidades em outros tempos. Foi a guerra que devastou todo o tecido económico do município. A Companhia de Celulose e Papel de Angola, no Alto Catumbela, maior fábrica do género no país, de 1960 a 1980, a Sociedade Agro-Pecuária do Buçaco – produzia chouriço e salsicharia, a Fazenda Prazeres, na Babaera, de vinhos, sumos e concentrados de frutas, a TALIM de conservas de hortofrutícolas e a cooperativa de torrefação e empacotamento do café são apenas a ponta de um iceberg da paralisação que até hoje afecta a região, atirando ao desemprego milhares de trabalhadores, muitos dos quais forçados a sair da terra contra a sua vontade para não morrer na penúria.
Sempre que eu olhasse para o retrovisor do Hiace do Kaká, eu via uma Ganda pálida. Sem o fulgor de quando era símbolo de prosperidade e orgulho dos seus habitantes. Aliás, a maior plantação de eucaliptos do mundo de outrora, e que alimentava a imponente Celulose, o monstro adormecido, no Alto Catumbela – onde milhares de angolanos e portugueses ganhavam a vida - vai saciando o voraz apetite de angolanos e chineses, atraídos pelo garimpo de madeira, em detrimento da dignidade dos trabalhadores e da sustentabilidade ambiental.
Assim que me tornei jornalista em finais do ano de 2004, passei a ir mais vezes à Ganda a serviço. Foi assim que conheci muitos homens valentes, sobretudo camponeses que tudo fazem para voltar a colocar a região na estatística da produção nacional, como Paulino Tchiholo, 58 anos, que pratica a cafeicultura há 14 anos, na aldeia rural do Carique, comuna da Chicuma, numa área de quase um hectare, junto ao rio Kongondjo. Assim que recebeu quilo e meio de sementes do cafeeiro, arregaçou as mangas e hoje possui 750 plantas, mas ambiciona chegar a duas mil, dentro do programa “Okutiuka” (voltar – em Português).
-Foi preciso muito sacrifício. Estava impaciente. Mesmo quase a desistir ”, lembra, acrescentando que teria lançado a terra as sementes a 15 de Abril de 2012 e só em Setembro de 2016 é que apareceriam as primeiras plantas. E considera a produção de café forma de combater a pobreza, pois é a terceira riqueza mundial. De segunda a sexta-feira, desloca-se à escola de motorizada. Paulino também é professor há 26 anos. Dá aulas de Biologia na aldeia de Cassipera. -Os meus alunos percorrem por longas distâncias de casa para escola e, então, digo-lhes para não perderem a esperança. Um dia, os autocarros vão chegar aqui, com a força do café - brinca, antes de uma gargalhada.
“Por cá passaram alemães que deram testemunhos de já terem ouvido falar do Café Chicuma em lojas, na Alemanha”, lembra. E, visivelmente triste, culpa mesmo a guerra pela destruição da indústria transformadora, que colocou o produto no auge do mercado nacional e internacional, na era colonial.
Domingos Chaquinda é o soba da Babaera, uma das quatro comunas da Ganda, e manifesta alegria da população, devido, principalmente, à produção de café. Dessa forma, será possível fugir da pobreza.
“Um quilo de café tem valor ”, admite, antes de pedir para os cafeicultores oferecerem mais empregos aos jovens locais.
Com a paz e, nomeadamente, a livre circulação de pessoas e bens, campos desminados, a agricultura é, a par da indústria, o melhor caminho para tirar a Ganda do marasmo, no âmbito do desígnio nacional de que a vida faz-se nos municípios.