POST IT - DO LADO DE LÁ!
“Tá vendo aquela cruz no alto do morro? Do lado de lá fica o estrangeiro. É outro mundo!” – (Ildefonso Camillo, meu Pai)
Viajar, conhecer outras cidades, a “estranja”, era desejo, um sonho de meu Pai. No contexto em que vivíamos verdadeira fantasia.
Quando criança, quatro ou cinco anos, eu o via sintonizando o velho rádio RCA Victor em emissoras estrangeiras e ficar em silêncio ouvindo aquelas línguas esquisitas com o olhar meio perdido, boca semiaberta. Mesmo sem entender, nada acho que ficava imaginando e interpretava o que diziam. E sonhava embevecido. Às vezes inventava histórias verdadeiras sobre os lugares que visitava percorrendo as longas estradas daquelas Ondas Curtas. Quando Mamãe estava por perto, e diante do entusiasmo e êxtase de meu Pai, era frequente comentar sorrindo que ele parecia um bobo alegre. E todos nós íamos dormir inundados de tanta alegria que até era custoso pegar no sono.
Meu Pai gostava muito de conversar, praticar amizades. Ficava no alpendre depois da janta tomando a fresca à espreita de alguém, algum passante, e sempre após os cumprimentos de praxe fazia alguma pergunta ou comentário sobre qualquer assunto apenas como indez de um dedo de prosa, às vezes ligeira, outras mais demoradas que até demandavam um cafezinho ou um copo d’água para molhar a palavra.
Em geral eram pessoas muito simples que queriam saber as novidades da Capital, da Política, dos Negócios, o que diziam os jornais. A todos meu Pai dedicava especial atenção e cuidado. Um dia perguntei por que mais ouvia do que falava. Disse que naquelas conversas não ensinava quase nada, mas aprendia muito.
Quando o rádio ficava liberado eu fazia o mesmo que meu Pai. Acreditava que de tanto ouvir com muita atenção para não perder nenhuma palavra, algum dia, assim do nada, passaria de repente a compreender tudo. Tal qual nas histórias em quadrinhos onde os heróis Flash Gordon, Capitão Marvel e Super-Homem resolviam suas aflições e dificuldades num átimo, sem esforços. Bastariam a insistência e muita paciência para esperar pelo momento exato da transformação mágica, encontrar a palavra-gatilho, o “Abre-te Sésamo”. Afinal, era tempo de acreditar em Papai Noël.
Aquela tênue e única conexão possível com a tal “estranja” tornou-se hábito na hora do jantar, quase vício. Colocava o prato sobre minhas pernas e ficava de orelha colada no rádio escutando e decorando o que ouvia. Por vezes algumas frases eu “traduzia” por semelhança fonética com alguma em minha Língua Pátria. E saia anunciando a novidade aos quatro ventos. Para não me decepcionar, fingiam acreditar.
Com o passar do tempo o que fôra ansiedade e perplexidade diante do desconhecido passou a ser devaneio divertido e instigante. Antes de dormir sonhava com o que ouvira e construía minhas próprias e fantásticas histórias. Descobri que não mentia quando contava a meus amigos sobre o que aprendera. Estava era inventando verdades.
Quando fui para a Escola Primária minhas fantasias foram pouco a pouco sendo esvanecidas ao deparar-me com a realidade que até então desconhecia. Descobri ser preciso mais que apenas esperar pelo dia e momento de meu “shazam” para entender aquelas palavras esquisitas. Tão triste!
Mas não desisti. Não cabia mais. Havia passado o momento de interromper minha quase doentia busca pelo desconhecido já instalada de modo irreversível. Passei a ser movido pelas curiosidades. Não conseguiria mais aceitar essas incógnitas como algo misterioso e impossível de desvendar. Quem sabe um dia, me pergunto até hoje.
Acho que minhas viagens são também encomendas de meu Pai.
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(03/01/2018)