POST IT - NA PALMA DA MÃE

“Agarrado aos cabelos grossos de meu Pai,

Encarapitado nos seus ombros,

Via a ponta do Beco,

A lua rolando no alto da Serra,

Até o topo do mundo via.

Mas era minha Mãe

Quem, ao fim e ao cabo,

Proporcionava esse idílio,

Equilibrando o mundo e a família

Na palma de suas mãos.”

(Willian Santiago, 2017, para Maria Terezinha)

Ela chegou em 1918 em pequena cidade no meio da prole de quatorze irmãos. Foi a sexta a brotar naquela família de gente simples. Era Isabel.

Quando cresceu um pouquinho deslumbrou-se com as letras e as palavras logo que recebeu, em casa, as primeiras lições. Invejava das irmãs mais velhas que sabiam manipular o lápis, com eles bordar pequenas teias no papel, que depois se transformavam em símbolos riscados representando coisas, acontecidos e pensamentos, ali gravados para não escaparem da memória, não se perderem, e algum dia revelados para outras pessoas a fim soubessem o que aconteceu num momento, conhecessem o que pensou, viu, sentiu, sonhou, quem havia desenhado os entrelaces daqueles riscos mágicos.

No Grupo Escolar não desgrudava os olhos e ouvidos da Professora. Gostava mais das aulas de Língua Pátria. Era boa aluna. Desenhava flores nas bordas do caderno de capa azul-desmaiado. Tinha letra bonita, bem alinhada e ornada com muito capricho nas curvas. Arte concebida nas delicadezas pintadas sobre o papel. Em casa os cadernos eram preservados debaixo do colchão para que desamassassem e estivem bonitos no dia seguinte.

Foi assim que um dia me contou sobre a paixão pelas letras. Queria saber escrever e ler em voz alta, de carreirinha, sem tropeçar entre uma palavra e outra, reconhecer significados para poder declamar, entender as vírgulas, reticências, exclamações. Aprender com as experiências dos outros e, quem sabe, ensinar um pouquinho. Existir além das falas, que são passageiras, fugazes. Não conseguiu ultrapassar a quarta série, limite ofertado onde morava.

E os dias se seguiram, naqueles tempos tão mais lentamente quanto mais aumentava o sonho da Menina, lutando para não fosse mera fantasia um dia encontrar-se nos livros.

Nos acasos, algum tempo em outra cidade, na casa da irmã para ajudar com as crianças, cuidar dos recém-nascidos, vislumbrou oportunidades no Ginásio, Curso de Formação. E lá se casou para sempre. O portal do sonho a iluminava: ficava à vista, logo ali, naquele prédio imponente da Escola Normal. Mas a prole, o marido, os afazeres de casa, promoveram o que sonhava para o arquivo das lembranças. Cuidou, então, para que não se consumissem juntos das utopias, no domínio das fantasias, as esperanças que ainda acalentava com zelo.

A fim de proteger o legado desses devaneios que a motivaram para a vida, os transferiu aos Filhos, herdeiros privilegiados daquela Pasárgada que criara para si, onde repousavam sementes de encantos que deveriam ser bem preservados. Seriam guardiões e usufrutuários do fascinante baú que guardava as histórias humanas tecidas ponto a ponto, letra a letra, fixadas nas páginas dos livros que não conseguira ler. Eles o fariam por Ela: trazer à luz as falas que germinariam dos traços bordados por muitas mãos e mentes. Ultrapassada a fase do Ginásio, que buscassem os Filhos, em outros lugares, novas fontes de conhecimento, mais amplas, abrangentes, em todas as línguas. Mesmo que para isso Deles tivesse que se afastar criando vazios no peito.

Ao abrir um livro Ela está lá, soletrando comigo em cada página, parágrafo, palavra, letra, sinais. E nas longas pausas. O que é lembrado vive. Com a Mãe de meus três Filhos não foi diferente. Da última vez que conversamos a recomendação, repetida firme e exaustivamente, foi para que eu cuidasse Deles. Depois... adormeceu.

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(19/11/2021)