POST IT - NA SELVA

“Com dor da gente fugia, / Antes que esta assi crecesse: / Agora já fugiria / De mim, se de mim pudesse. / Que meio espero ou que fim / Do vão trabalho que sigo, / Pois que trago a mim comigo / Tamanho imigo de mim?” (Sá de Miranda, 1545)

São 13 horas. Acabo de testemunhar o início de desmonte do restaurante A Favorita. Presencio a cena a partir da enorme porta principal entreaberta: funcionários e o proprietário, Mota, recolhendo sem nenhuma pressa o instrumental e apetrechos de trabalho. Todos em silêncio. Em silêncio também fiquei até que o Mota viesse a mim e dissesse o que estava ocorrendo, como se fosse necessário. Ouvi sem nada dizer. Falar o quê?

Apontou para os objetos, cadeiras, taças, e, sem que eu dissesse qualquer coisa, começou a falar, falar, falar: “Aquelas comprei quando abri o primeiro restaurante; aquele outro herdei de familiares; ali um presente recebido; o lustre me acompanha faz muito tempo. Agora tenho que arranjar lugar onde possa ficar. Difícil continuar: são 50 empregados, aluguel, taxas. Estava até indo bem mesmo com a crise de antes. Quando fizeram o Carnaval achei que dava para aguentar. Deu esperança. Foi bom, mas agora não dá mais.”

Olhou lentamente em volta, mirou o teto, caminhou cauteloso percorrendo o piso como a buscar algo que lá não se encontrava, colocou as mãos na cintura... e partiu para carregar mais uma cadeira.

Quando fui saindo lhe disse: “Até outro dia.” Respondeu, repetindo, sem olhar para mim: “Foi bom, mas agora não dá mais.”

Essa uma das faces visíveis da crise próxima de nós. Contudo, não é a pior. Talvez tenha relevância especial porque conta com nossa presença... e audiência. Há as invisíveis, seculares, que toleramos e da qual pouco sabemos em razão de quase nada sentirmos na pele, na carne, nos ossos. Talvez nem mesmo na alma.

Mas nem tudo está ruim. Tranquilizemo-nos. Felizmente nossas ilustres autoridades estão protegidas em bolhas onde ameaças materiais e perdas remuneratórias não penetram. E também imunizadas contra o vírus que não carece de vacinas: o da solidariedade.

É a Lei.

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(29/06/2020)