Sentimento de posse *

Tenho um quintal e é como se não o tivesse.

Ver o quintal é diferente de sentir o quintal.

Tem relva, rosas, e fruta. E tudo lá é longínquo,

e mais vivo do que eu.

Sei que ele existe,

que cresce, morre, entardece e se orvalha,

mas é um todo exterior a mim que cresce,

entardece e se orvalha longe do coração.

Sei que as rosas cheiram, e como é bom cheirá-las.

Sei que a erva pulula na madrugada, e como é bom calcorreá-la aos primeiros raios.

Sei que a fruta amadurece num cabaz de oferenda, e como é bom o gosto da natureza

a desfazer-se na boca.

Sei que as ervas daninhas fazem parte de todo o crescimento, e saber escolhe-las,

arrancar-lhes a raiz, separá-las da luz, é um bom dom.

Sei tudo, mas o coração pára-me.

Não separo a luz da escuridão com a facilidade dos jardineiros.

O meu quintal nunca deixará de ser quintal mesmo que não entre nele;

meu é apenas um sentimento de posse.

O coração está mais próximo das estrelas que do meu quintal.

Viaja mais no vazio que na terra, e alimenta-se mais de sonho que

de coisas concretas.

O meu quintal é tanto mais exterior a mim, quão mais o vazio me enche e alimenta.

Olho-o, entristeço, e recuo.

E aquilo que era vácuo encho-o agora de palavras.

Tenho a (vã?) esperança que as rosas cheiram as rosas,

que a relva escorre o orvalho entre as folhas,

que os frutos se abrem naturalmente à vista uns dos outros,

e que as ervas daninhas fazem paz com a terra.

Eu sou apenas eu, minúsculo na contemplação de tanta vida,

e a única coisa que me alegra, e sei-o do fundo do coração,

é que a beleza do meu quintal é independente

do que quer que eu seja.

*

* José Bernardes *
Enviado por Fátima Damiani em 12/09/2018
Código do texto: T6446916
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