Quem leva as bofetadas

O pior e o melhor de ser um operário da paixão, é que os frutos dolorosos de tua pouca ou muita inteligência são teu único, teu verdadeiro salário.

Mercedes Oliver

-Escuta, o que você faz?

-Sou escritor.

-Sim, sim, já sei que você é escritor, mas em que você trabalha? Do que você vive?

Ah, de milagre, a maioria das vezes. E as menos de escrever, por exemplo: discursos políticos, horóscopos e receitas de cozinha, roteiros para foto-novelas, reportagens com o jogador da semana, monografias, textos para propagandas, anuários de psiquiatria, manuais de erotismo científico. E também, quando a fome aperta mais da conta ou quando a gente precisa fingir na frente dos sogros ou na frente dos credores que está disposto sentar cabeça, se sobrevive encalhado no papel de professor de arte dramático, ou empregado de quarta, ou de caixa de alguma tesouraria, ou de executivo júnior em qualquer multinacional, enfim, do que disponha a necessidade.

Aí está. Com razão a tia Genoveva me recomendava "melhor se dedique a outra coisa, para não morrer de anemia", me dizia, "para que você seja uma pessoa útil". Mas, como a tia Genoveva tem fama de ser uma grande humorista, nunca a levei a sério.

Por isso quando me insinuou que convinha casar-me com a Mulish, mais uma moça endinheirada do que bonita, o primeiro que fiz foi sair fugindo.

Meu pai, logo soube da minha decisão de ser escritor, me mandou deserdar na hora e ainda não deixa de reclamar com a vida por ter-lhe dado um filho idiota.

Minha mãe, por sua vez, se apressou a dizer que ela não tinha a culpa, e que estava disposta a provar que na sua família tinha tido sempre pura gente decente. Seu aborrecimento comigo foi tão definitivo que, até o momento, todas as cartas que me envia, inevitavelmente vêm em branco, para manifestar seu repúdio pelas letras.

Assim, com o tempo, a gente se transforma numa espécie de estrangeiro no mundo. E ainda que aprenda a driblar os golpes das críticas e das exigências, nunca falta uma reclamação, uma ironia, uma humilhação que não acabe batendo justo aqui, entre o fígado e o duodeno. Por exemplo, minha primeira ex esposa, quando o amor da noite anterior tinha deixado a desejar, logo saía da cama e ameaçava "Ou você se põe a trabalhar em sério ou vou embora desta casa. Nos abandonou ao menino e a mim tempo depois, claro. E os colegas de ontem e de hoje, sempre dispostos a convidar pro chopinho, mas jamais para comer, que inevitavelmente ficam maternais e prometem á toa "Não se preocupe, vou te arrumar um emprego como Deus manda. E os parentes (os que ainda suportam a vergonha de falar comigo) "Escuta, por quê em lugar de escrever você não trabalha de verdade?

Tudo isso, na verdade, quer dizer "Por quê você não tenta ganhar algum dinheiro? O dinheiro move o mundo, meu filho. Com dinheiro até o cachorro dança, meu irmão.

Me diga quanto tem e te direi quanto te amo, coraçãozinho. Mas um nada que entende e aí segue, montado a pêlo na sua vocação, estragando os rins, moendo pedra com a cabeça, secando o cérebro até fazê-lo suar a camiseta.

"Você sempre foi teimoso feito mula, desde pequenino", lembra a tia Genoveva que não me perdoa ter deixado escapar a fortuna da Mulish, que por sua vez também não me perdoa, mas por outras mais íntimas razões.

O curioso de tudo isso que pratico é que, se depois de alguns anos a gente consegue publicar um livro, a maioria desses personagens, ou seja, os parentes, os amigos e ainda os apenas conhecidos, se sentem com direito de exigir "Vai me dar um de presente, não vai?" Mesmo que eles, nunca me presentearam com um tostão pro aluguel da casa, para os remédios, para a roupa, para a comida, nem para o colégio, nem para nada.

A gente, sim parece ter a obrigação de presentear o produto de nosso trabalho, porque dá a casualidade que ninguém -ou quase ninguém- considera que escrever uma novela, um conto, um poema, seja justamente isso: trabalho.

Idealismos à parte, eu sei que ao dizer esta pobre soma de calamidades insubstanciais, o único que ganho é ser chamado de egoísta, de soberbo, de mesquinho incurável. Mas o que posso fazer, hoje acordei com o sentimento virado pelo avesso. Ou talvez me coloquei no papel de esbanjador de queixas por causa desta caninha triste. É possível. Sem dúvida é isso.

Boa noite. (Perdão, bom dia.) (Chegue mais perto, meu amor, sim, já sei que não são horas de vir te incomodar, mas...)

Agustín Monsreal.

Nascido em Mérida, Yucatán, México, em 1941. O texto pertence a seu livro ‘A banda dos anões carecas' e foi tomado da revista argentina ‘Puro Conto'.

Manilkara
Enviado por Manilkara em 25/04/2008
Código do texto: T961925
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