O FATOR CAOS - Introdução: Andrômeda

Miguel Carqueija



Introdução: ANDRÔMEDA


A boca do justo medita a sabedoria
e a sua língua fala o direito; no seu
coração está a lei do seu Deus, seus
passos nunca vacilam.



SL 37, 30-31




Em meio às luzes ofuscantes de candelabros e luminárias de toda sorte, que faiscavam pela amplitude do salão, circulavam sons e burburinhos de conversas e risos e inúmeras pessoas andavam, dançavam, comiam e bebiam. Algumas pessoas se singularizavam em meio à multidão, como aquele homem de rosto vermelho, alto e careca, corpulento, portando as insígnias clericais em seu casaco negro, que dialogava com uma mulher pouca coisa mais baixa, trajada com um misto de aprumo e simplicidade. Sua jaqueta, de fibra marciana de mangas azuis com faixas brancas, ostentava alamares dourados que coruscavam refletindo as fortes luzes do ambiente. O clérigo chamava atenção por sua elevada estatura, seu porte altivo e sua expressão que transmitia o fogo interior de uma forte personalidade.
— Eu tenho muito a lhe agradecer — dizia ele. — A ajuda que você deu às nossas obras de caridade foi fundamental. Você haverá de receber muitas graças da parte de Deus.
— Eu espero, porque preciso disso. Obrigada, Padre Oronte. Poucas pessoas se lembram de reconhecer.
— Como mulher de negócios, você certamente passou por muitas decepções, mas comigo não é assim. O bem que me fizerem, ou melhor, o bem que fizerem à Igreja e às ovelhas, eu não esqueço e não desprezo. Terá sempre um amigo em mim.
Ela sorriu.
— Conte sempre comigo, padre.
Ela se afastou, abrindo caminho entre as pessoas, até ser interceptada por uma mulher decotada e curvilínea, loura e super-maquiada:
— Oi, Sonia! Senti a sua proximidade pelas fulgurações dos seus alamares. Você gosta de aparecer, não é?
Sonia fitou a anfitriã, que não estava propriamente discreta:
— Depende. E você?
Arlete deu uma sonora gargalhada.
— Você acha que eu preciso aparecer, querida? Eu preciso mais é me esconder dos holofotes... olhe quanto repórter aqui.
— Bem. Está satisfeita com o comparecimento?
— Satisfeitíssima! Centenas de pessoas... ora, a elite de Lorena se encontra aqui. Até você, que é tão recatada! Veio procurar um namorado por aqui?
— Por que pergunta isso?
— Porque uma moça bonita e inteligente como você deveria ter um namorado! Um ou vários...
— Tratarei disso oportunamente — respondeu Sonia, secamente.
A outra tornou a rir, estupidamente.
— Bem, querida, fique à vontade! Olhe, vá tomar um ponche...
Arlete se afastou, já enganchando o braço num dos amigos. Sonia Maria Sagres foi caminhando com a idéia de chegar a uma varanda, sentar na frescura da noite. Um homem de terno marrom abordou-a e beijou-a:
— E aí, princesa? Quer me dar suas impressões sobre a festa da condessa?
— Por que o Pontual se interessaria pela minha opinião?
— Por que? Ora, porque você é uma das maiores milionárias do Brasil e provavelmente tem mais dinheiro que a Arlete. Ela deve ter até inveja...
— Eu não sei quanto dinheiro tenho e não quero competir com ninguém, Mário.
— Mas o que me diz da festa? Pode falar, minha lapela está gravando.
Sonia riu.
— Não sou muito chegada a ruídos, mas não poderia deixar de vir na festa de minha amiga.
— Ela era, na verdade, uma grande amiga de seus pais, não é verdade?
O olhar de Sonia ensombreceu.
— É verdade.
— Bem, desculpe se a fiz lembrar...
— Tudo bem. Eu não sou uma criança.
— Diga, Sonia, o que você acha dos últimos acontecimentos em Lorena?
— Eu já disse o que penso desse prefeito que se elegeu graças à máquina. Sei que ele está aqui, mas não quero avistá-lo.
— Você disse que se opõe aos cassinos...
— Ele não está preocupado com o essencial. As guerras trouxeram ao mundo uma grande quantidade de miséria e doença. A um povo pobre não se oferece jogo e sim emprego e assistência.
— Mas joga quem quer, não é, Sonia?
— Querido, não vamos ficar batendo em teclas já tão batidas. Cassino sempre foi uma coisa mafiosa e eu tenho outras objeções ao Taurus. Agora, se me dá licença...
Mário, um rapaz bonito e de cabelos pretíssimos, ficou a olhá-la enquanto ela se afastava. Olhava-a com algo no olhar que sabia a contemplação ou devaneio.
Antes porém que Sonia alcançasse uma das portas-vitrais que davam para o ar livre, uma nova presença a interceptou. Um ser humanóide, de orelhas pontudas e cabelos frisados.
— Salve, Princesa dos Cabelos de Fogo — disse ele, num cumprimento levemente irônico.
Ela fitou amigavelmente o vulcaniano:
— Como está, Glikus?
— Preciso lhe falar... a sós. Vamos para uma das varandas?
— É o que eu ia fazer. Vamos.
Afastaram-se do burburinho e logo, na varanda, passeavam entre moitas de samambaias e palmeirinhas, de árvores choronas e girassóis. Havia árvores com mochos piadores. Passavam casais de namorados, fumantes e crianças, e eles procuraram um banco vazio para conversar. O vulcano recostou-se no espaldar do banco de madeira e começou:
— Eu a conheço há pouco tempo, Sonia, mas sinto coisas em você... coisas extraordinárias.
— Como assim?
— Se me permite a franqueza, você não é o que parece ser. O que eu sinto é como se na verdade você tivesse duas vidas... uma à superfície, a outra totalmente oculta. Pode admitir isto que eu lhe digo?
— Que tolice, Glikus! Todos nós temos a nossa vivência íntima... a máscara, como dizem.
— Não é a isso que me refiro. Eu tenho às vezes a impressão de que você é uma pessoa completamente diferente do que parece. Pode admitir isso?
— É claro que não. Ainda acho que eu sou eu mesma...
— Não ironize. Como você sabe nós, a raça de Vulcano, possuímos certa tendência intuitiva... mais apurada que na humanidade terrestre. É por isso que às vezes nós sabemos coisas sem saber por que sabemos...
— Também nós temos a intuição...
— Mas não no grau a que nós outros a temos. Bem, o que eu tenho a lhe dizer é que o seu caminho deverá ser árduo, difícil... mas que você não deve desanimar. Sua missão é estupenda. Algo quase inimaginável... algo para o seu “alter ego”. Seu caminho é justo e você deve segui-lo, mas não espere facilidades.
— Quem lhe disse tudo isso, Glikus?
— Ninguém. Isso está saindo de mim, nem eu mesmo sei porque. Mas sinto que é assim. Para mim você é um mistério, mas uma luz interior me diz que é isso mesmo que eu lhe falei. Como é que você pode ser duas pessoas eu não sei, e não sei quem é essa outra pessoa que você é. Não quero perturbá-la; já vou indo.
— Espere...
Ele sorriu e se levantou.
— Preciso ir. Meu tempo é curto. Mas nunca desanime: tenha fé no que faz.
Quando finalmente Sonia chegou ao seu carro, um magnífico Luxor de frisos vermelhos, tinha uma expressão muito pensativa. Entrou no veículo e pôs-se a descer pela alameda de cercas vivas.
— Você está muito pensativa. Aconteceu alguma coisa que a perturbou.
— Eu sou pensativa por natureza, Liz.
— Eu sei. Mas percebo que algo diferente aconteceu nessa festa. Você não estava assim, Andrômeda. Que foi que houve?
— Não me chame por esse nome.
— Sou de construção bastante hermética, você sabe, e ninguém pode nos ouvir.
— Eu sei.
— Então para que se preocupar, Andrômeda? Conte-me o que houve com você.
— Um sujeito de Vulcano falou coisas estranhas comigo... como se soubesse quem sou. E ao mesmo tempo como se não soubesse. Estou sendo clara?
— Como pixe. Mas continue.
— Ele disse que eu não sou o que pareço ser... que eu sou duas pessoas... mas ao mesmo tempo esclareceu que não sabe do que se trata, que apenas sente... compreendeu, Liz?
— É claro, Andrômeda. É a intuição que alguns sábios vulcanianos possuem em alto grau. Mas isso é considerado uma curiosidade, não ligue para isso.
— É, porque afinal... espere!
Sonia teve a sua atenção desviada para uma cena insólita. A limusine, fazendo uma curva no caminho de pedra musguenta, passava agora em frente a um pavilhão com vastos painéis de vidro à beira do precipício. Quatro homens mascarados perseguiam uma moça morena de saia curta, que foi cercada em frente a uma estátua de Apolo. Perplexa, Sonia saltou do carro, enquanto a garota, que gritava pedindo ajuda, era amordaçada e amarrada pelos assaltantes.
— Cuidado, Andrômeda — disse Liz.
— O.K.
Sonia correu, mas não foi possível alcançar os seqüestradores, que enfiaram a vítima num carro marrom e partiram por uma ruela que rodeava os pavilhões e descia para um nível mais baixo, em torno da montanha. Sonia correu como um papa-léguas. Sabia que existia uma guarita mais adiante, com sentinelas. Ultrapassou palmeiras e jacarandás e, sempre ladeando os painéis de vidro, viu-se afinal diante de guardas de libré.
— Que houve? — perguntou um deles.
— Fechem as saídas! Há um carro marrom em fuga, levando uma moça prisioneira! Não há tempo a perder.
— Como diz, moça?
A voz viera por trás. Sonia olhou, admirada, para dois homens também uniformizados que a fitavam com estranheza. Estariam atrás das árvores?
— Eu disse que não há tempo a perder. Uma pessoa está sendo sequestrada! Vocês têm os meios de fechar as saídas.
— Mas quem é a senhora?
— Eu sou Sonia Maria Sagres. Vocês sabem quem eu sou. Tratem de agir, por favor!
— Moça — disse o homenzinho de bigode, um dos dois que Sonia avistara primeiro — está muito nervosa.
— Nervosa? Que é que você quer dizer? Mande fechar as saídas, droga! Você quer que eles escapem?
— A senhora está nervosa — insistiu ele. — É melhor tomar um calmante.
— Que está dizendo? Está louco?
O homem muito alto e magro, mulato, da segunda dupla, adiantou-se:
— Por favor, moça. Não faça cenas, se acalme. Faremos tudo para ajudá-la.
— Sim — disse o bexiguento louro ao seu lado. — É melhor vir com a gente, há vários médicos na festa...
“Uma distração”, pensou Sonia. “É pura manobra de distração, mas vão querer usar de violência. Há qualquer coisa muito estranha nisso tudo.”
Eles se aproximavam, dois de cada lado, com a evidente intenção de segurá-la como se ela estivesse histérica. Olhando ao redor Sonia tomou uma rápida decisão e, protegendo o rosto e confiando na resistência do traje de fibloplastic marciana, jogou-se contra o painel, arrebentando o vidro e caindo no abismo. Dez metros abaixo, porém, conforme ela sabia, encontrava-se uma piscina. Era naquele ponto mesmo, e Sonia sabia que se encontrava cheia. Assim ela caiu naquela água fria, levantando uma grande e ruidosa onda. O carro dos raptores já se afastava e não poderia ser pego, mas Sonia ainda conseguiu disparar um projétil especial que pegou no pára-choque traseiro e ali penetrou.
Ainda estava pingando o grosso do encharcamento quando Liz apareceu e abriu-lhe uma das portas.
— Venha, Sonia, rápida! Eu vi tudo... quase tudo... e já chamei a polícia.
— Fez muito bem, Liz, obrigada.
Sonia entrou. O carro arrancou e prosseguiu:
— Pelos meus chips... você se arriscou muito, Andrômeda. Assim você pode ser descoberta.
— Ora, cale a boca — disse Sonia, irritada com o desfecho da cena.




CONTINUA...
Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 12/09/2015
Reeditado em 29/03/2020
Código do texto: T5379187
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