O Espírito De Prata - Capítulo III

Capítulo 3

E Disse O Porão

A carta, a oferta, a proposta e as prendas de Lucila encheram-me o coração de alegria e gozo. Enfim, depois de tantos anos vivendo como andarilho, eu voltaria a ter um endereço. Uma casa onde me fosse possível morar. Pelo menos, por algum tempo.

Em princípio, meu corpo temia deixar o quarto em que se encontrava instalado. Temia, sobretudo, perder-se entre os recônditos cantos da residência. No entanto, tragado por uma sensação desconhecida, à qual não tive força suficiente para resistir, surpreendi-me impelido a visitar cada um dos cômodos que compunham o imóvel.

Presa indefesa de tal sensação, pus-me a pleno passo e fui adentrando os diferentes espaços da casa, como se já os conhecesse.

Espantosamente, nenhum canto me pareceu estranho, o que me fez chegar à conclusão de que a casa que hora servia de moradia a Lucila havia sido parte integrante do meu passado esquecido.

O passado parecia espreitar-me a cada passo que eu dava. Todavia, algo me dizia que haveria, entre os recintos da residência, um lugar em que ele se mostraria de maneira mais explícita.

Foi com a mente ocupada por este pensamento que me dirigi a uma escada oculta, cujos íngremes degraus, não hesitei em descer.

Sob a escada, jazia, guardado por uma porta que dava mostras de já estar fechada há muito tempo, o vulto encoberto de um local que, outrora, devia ter sido utilizado como porão.

Chego a perder a conta das inúmeras vezes em que tentei abrir a velha porta do dito porão. Mas, acabei por desistir quando, levando em consideração a possibilidade de estar a fechadura enferrujada e desprovida de chave, notei que minhas tentativas seriam todas infrutíferas.

Pelo tempo que empreendi em minha,... digamos..., “Expedição de Reconhecimento” pela casa, supus que a hora do almoço já se apresentava próxima. Por isso, decidi esperar por Lucila e pedir-lhe que, se pudesse, me abrisse a porta do porão.

Lucila não tardou a chegar, confirmando-se minhas suspeitas quanto à proximidade da hora do almoço. Porém, mal sabia eu que, antes de almoçar e de fazer-lhe o pedido que pretendia lhe dirigir, teria de enfrentar um verdadeiro interrogatório.

“Bom dia! Sr. Graziotti!”

“Bom dia! Srta. Lucila!”

“Que tal a casa?”

“É belíssima! E bastante confortável!”

“E o café-da-manhã? O senhor gostou do café-da-manhã?”

“Gostei! Achei uma delícia!”

“E os presentes que lhe dei? Eles lhe agradaram?”

“Sim, senhorita! Agradaram-me muito!”

“O senhor já escreveu ou desenhou alguma coisa no caderno?”

“Ainda não, senhorita!”

“...”

“...”

“Gosta de lasanha, Sr. Graziotti?”

“Adoro lasanha!”

“Pois bem. É o que teremos para o almoço de hoje. Lasanha de berinjela à bolonhesa.”

Almoçamos tranqüila e silenciosamente.

Lucila fez questão de deixar claro o incômodo que lhe causavam quaisquer palavras, se proferidas durante as refeições. Em razão disso, tive de esperar que o almoço terminasse para falar-lhe a respeito do porão.

Com o término da refeição, pude, finalmente, conversar com Lucila sobre o assunto que fazia fervilharem meus neurônios.

No decorrer da conversa, ela me disse, entre outras coisas, que, embora soubesse da existência do cômodo, jamais quis abri-lo e que só o faria, naquele momento, porque era para ajudar-me.

Confesso que não consegui compreender muito bem o sentimento de indiferença que Lucila devotava ao porão. Contudo, a moça estava disposta a auxiliar-me e era isto o que mais me importava.

Descemos, juntos, a escada oculta. Juntos, chegamos ao porão.

Lucila estudou atentamente a porta do ambiente e, após concluir que sua fechadura estava, de fato, enferrujada e desprovida de chave, pediu-me que unisse aos dela os meus esforços, no intuito de arrombá-la, o que seria relativamente fácil, já que não era feita de metal, mas, em madeira rústica.

Bastou-nos um golpe único para que derribássemos a porta do porão.

O cômodo se encontrava coberto por espessas nuvens de poeira. Entretanto, ainda se podia distinguir, entre os grossos grãos de pó, uma pequena caixa de madeira com duas alças metálicas.

Também era possível ler, na parte superior da caixa, um monograma formado pelas letras “E” e “G”.

Apesar de eu não me lembrar do meu nome de batismo, a leitura do monograma provocou em mim a sensação de que o conteúdo residente no interior daquela caixa me havia pertencido.

“Acho que esta caixa foi sua. Não vê suas iniciais na tampa, Sr. Graziotti?”

Assim falou-me Lucila, em tom de brincadeira. Sem, sequer, suspeitar de que as palavras por ela ditas caminhavam a encontro de coisas que eu mesmo pensava.

Abrir a caixa não nos deu muito trabalho, uma vez que a madeira, de que era constituída, já se mostrava apodrecida em muitas partes.

Ver-lhe o conteúdo, porém, causou-me profunda tristeza, pois, o que a caixa guardava era um vibrafone. Instrumento musical que sempre me encantou.

Tive comigo a certeza de que aquele vibrafone havia sido meu.

“Quem teria deixado tal preciosidade ser tomada pela ferrugem e pela poeira?” – questionava meu coração, àquela altura, tão estraçalhado quanto o vibrafone que Lucila e eu acabávamos de encontrar no porão.

“Em que época teria sido eu o dono deste vibrafone?” – inquiria minha memória, enquanto minhas mãos tentavam tirar do instrumento qualquer som que se pudesse assemelhar a uma nota ou a um acorde.

A visão desoladora que se descortinava ante meus olhos postos sobre o deplorável estado do vibrafone causou-me um efeito inesperado.

De repente, uma série de palavras começou a encadear-se em minha mente. Palavras que não logrei ocultar à percepção auditiva de Lucila.

“Será que o Lalo ainda conserta instrumentos musicais? Se conserta, estou certo de que ele conseguirá restaurar este vibrafone.” – foram os vocábulos que, a esmo, deixei saltar de mim.

“Lalo? Que Lalo?” – indagou-me Lucila, desconsertada.

“O Lalo Ferrari! Pai do pianista Chico Ferrari!” – respondi-lhe eu, num assomo automático de voz.

Creio que foi este o momento mais difícil de minha amizade com Lucila. Muito me custou convencê-la de que, realmente, eu não me recordava da minha vida anterior ao dia 18 de dezembro de 1975 e de que as ocorrências do Lalo e do Chico não haviam passado de meros e esporádicos lampejos.

Para mim, Lalo Ferrari e Chico Ferrari não passavam de nomes. Nomes que Lucila, guiada pelo afã de auxiliar-me no resgate do meu passado, não ousou desprezar.

Os Ferrari eram conhecidos de Lucila, pois, tinham sido, segundo ela, amigos bem próximos de seus pais. Próximos, a ponto de as famílias se freqüentarem com relativa assiduidade.

Horas mais tarde, ainda no curso daquele mesmo dia, fui com Lucila à casa de Lalo, a fim de lhe perguntar se ele poderia consertar o vibrafone que o porão, há pouco, nos havia revelado.

Bastou avistar-nos à distância, para que o restaurador de instrumentos musicais corresse ao nosso encontro, abraçasse Lucila Efusivamente e depusesse sobre mim um par de olhos francamente embevecidos.

Contrários aos raios mortiços que se emergiam da face do homem desconhecido cujo vulto, atraído pelo som da canção executada por meu assovio, me visitara junto à calçada na tarde do dia anterior, os olhos de Lalo nada tinham de perversos. Contudo, o olhar por eles vertido exerceu, sobre meu espírito, profunda perturbação.

“Não é ele o amigo do Chico?” – questionou Lalo a Lucila, após fitar-me demoradamente e convidar-nos a entrar em sua casa.

“Que amigo?” — indagou Lucila, em estado de flagrante curiosidade.

“Aquele a quem o Chico presenteou com um vibrafone feito por mim!” – respondeu Lalo, com voz firme.

“Seria este o vibrafone?” – perguntou Lucila, enquanto lhe mostrava o instrumento que havíamos resgatado do porão.

“Sim. É ele. Mas, por que é que ele está assim? Onde foi que vocês o encontraram?” — lamentou Lalo, entre lágrimas.

“Encontramos este instrumento no porão da minha casa e gostaríamos de saber se o senhor pode consertá-lo. – disse Lucila, ao mesmo tempo em que passava, instintivamente, o vibrafone às mãos do restaurador.

“Não só posso, como vou restaurá-lo. Ficará pronto no prazo de um mês.” – afirmou Lalo, à medida que examinava o instrumento com o mesmo cuidado que se usa atribuir a um médico quando este examina uma criança.

“E quanto custará o seu serviço?” – interrogou Lucila, em tom neutro.

“Em espécie, nada. Apenas, a felicidade do dono desta preciosidade.” – falou Lalo, alternando olhares emocionados entre minha face e a do instrumento.

Devo esclarecer que, durante o diálogo travado entre Lalo e Lucila, minha voz permaneceu no mais absoluto silêncio.

Soou-me deveras estranho que Lucila não houvesse perguntado a Lalo o nome do amigo presenteado por Chico com um vibrafone. Amigo que, indubitavelmente, era eu.

Despedimo-nos do Lalo logo em seguida e regressamos à casa de Lucila munidos da certeza de que tínhamos avançado um passo no caminho que conduziria à descoberta do meu passado.

Hebane Lucácius