O Espírito De Prata - Capítulo VI

Capítulo 6

Arcanjo Ao Espelho

Desde o dia em que aportei em casa de Lucila, sair para coisas que não fossem os tão habituais quanto necessários compromissos quotidianos de trabalho, como ocorrera no episódio de Lalo e Chico, tornou-se-me uma distração rara.

Meus principais passatempos se resumiam ao vibrafone, ao contrabaixo, a longas conversas com minha protetora e a alguns registros esporádicos no “Álbum de Sensações”.

Naquele dia, porém, sairíamos. O destino, em princípio, me seria desconhecido, uma vez que Lucila a mim não o revelara. Pedira-me, apenas, que eu me arrumasse e que, depois de pronto, a fosse encontrar na sala de estar.

Razões não existiam para que eu deixasse de atender um pedido de Lucila, já que ela me acolhera tão bem em sua casa. Por isso, não a contrariei. Dirigi-me ao quarto com o objetivo de me arrumar. Entretanto, no exato instante em que meus olhos cruzaram a extensão do espelho, um fenômeno muito interessante aconteceu.

O reflexo da minha face foi, aos poucos, adquirindo contornos profundamente diversos dos que normalmente a caracterizavam.

Meus olhos, outrora pequenos e castanhos, tornaram-se grandes e vivamente azuis. Meu nariz ganhou um aspecto ligeiramente curvo. Minha barba e meu bigode, então recém-removidos, revestiram-se de uma forma espessa e branca.

A face retratada no espelho, sem dúvida, não me pertencia. Mas, muito se assemelhava à de um amigo meu. O Sr. Giovane Graziotti. Meu salvador.

Por mais incrível que possa parecer, a visão do rosto refletido do Sr. Giovane Graziotti a substituir o meu no espelho não me causou qualquer estranheza. Pelo contrário. A sensação de ter novamente, diante de mim, a acolhedora face daquela figura tão familiar fez-me tornar a ouvir o tom quase paterno com que proferia a frase com a qual costumava introduzir as carinhosas broncas que, às vezes, me dava.

“Per tutti angelli, Enzo!”

Passado o instante de recordação, cujo estado me absorvera inteiramente, tentei recobrar a razão, esforçando-me para me convencer de que a imagem do Sr. Giovane Graziotti no espelho não havia sido mais do que o vão delírio produzido pela mente perturbada de um desmemoriado de longo curso.

Foi neste momento, porém, que um evento de proporções deveras estranhas ousou pôr-me a par de uma confusa realidade.

Do espelho, uma voz ecoou, dizendo-me:

“Ciau!, Enzo!”

Sob o caótico efeito daquelas inesperadas palavras e ante o profundo impacto daquela surpreendente emanação vocal, meus pés colaram-se ao chão, como se o quisessem abrir. Meu corpo se viu tomado por um incontrolável tremor; meu rosto adquiriu uma aparência pálida; meu olhar suspendeu-se; minha respiração esvaiu-se; minha voz emudeceu.

Impressionava-me o fato de o som que do espelho ecoava ser idêntico ao da voz do Sr. Giovane Graziotti.

“ O que acontece, Enzo? Não me reconhece mais? Por que se assusta tanto, se continuo a ser o Giovane? O mesmo Giovane que te resgatou na estrada de Serrânia?” – indagou-me a voz que vinha do espelho.

A definitiva confirmação de que era mesmo o Sr. Giovane Graziotti quem comigo conversava através do espelho estancou-me a fala.

“Venho aqui, apenas, para lhe afirmar que você nunca esteve tão perto de desvendar o seu passado. Existe uma ligação muito forte entre você e a moça que hora te hospeda. Uma ligação cuja natureza somente o tempo será capaz de revelar.

Assim como você, ela não sabe. Mas, a história dela e a sua história se integram, como capítulos afins de uma mesma obra. A sua existência e a existência dela se encontram, qual lados unidos pelo vértice de uma mesma figura. A alma dela e a sua alma se cruzam, como rotas que conduzem a um mesmo destino.” – assim falou-me, com a poesia que sempre lhe fora peculiar, a voz que, indubitavelmente, pertencia ao velho italiano a quem eu devia a minha sobrevivência.

O susto, que, segundos antes, me havia paralisado os sentidos, dissipou-se gradativamente, até que, refeito de suas conseqüências, pude, enfim, me dirigir ao Sr. Giovane Graziotti nos seguintes termos:

“Ciau!, Signor Graziotti! É maravilhoso vê-lo novamente, uma vez que, se estou vivo hoje, devo isto unicamente à sua pessoa. No entanto, uma curiosidade me assalta e somente o senhor pode saciá-la. Gostaria que o senhor me contasse como foi o meu resgate. É muito importante para mim conhecer as circunstâncias em que nos fomos apresentados.”

“Pois bem. Se é tão importante para você saber a história de como foi que nos conhecemos, eu conto.

Estávamos na manhã de 14 de outubro de 1975. Era sábado. Dia então destinado à compra semanal de mantimentos para o albergue.

Costumávamos fazer nossas compras semanais em Porto Calvo. Havia lá um supermercado que nos doava uma boa parte dos mantimentos de que necessitávamos. A outra parte nos era vendida pelo mesmo estabelecimento a preço de custo.

Foi justamente no meio do trajeto entre Serrânia e Porto Calvo que te encontrei.

Seu corpo jazia a poucos metros de uma ribanceira.

Você estava estirado; imóvel; desacordado; inconsciente.

Cheguei a suspeitar de que estivesse morto. Entretanto, uma observação mais profunda fez-me concluir que a luz, para você, ainda não se tinha apagado por completo.

Graças aos conhecimentos que adquiri em minha experiência como enfermeiro na Itália, pude prestar-lhe os primeiros socorros, imobilizá-lo, resgatá-lo e transportá-lo, na própria perua do albergue, até o hospital mais próximo, o Santo Egídio.

Seu caso era da mais extrema urgência. O atendimento, portanto, precisava ser feito imediatamente.

Eu sequer sabia o seu nome.

Não havia, em seus bolsos, qualquer documento, pessoal ou profissional, de identificação. Por isso, no hospital, ao ser questionado sobre sua identidade, tive de lhe dar o nome de Enzo. E, como ainda me indagassem o seu sobrenome, senti-me no dever de lhe atribuir o meu.

Foi desta maneira que você recebeu a alcunha de Enzo Graziotti. Alcunha pela qual continuou a ser chamado após a constatação de que todas as lembranças anteriores ao dia da sua recuperação se tinham perdido. Inclusive, a do seu nome de batismo.

Minhas ocupações à frente do albergue impediram-me de permanecer o tempo todo ao seu lado. No entanto, não houve dia em que eu não fosse visitá-lo no Santo Egídio.

Afeiçoei-me a você logo que te encontrei na estrada. Prova disso é ter-lhe atribuído o nome de Enzo.

É um nome muito especial para mim. Era assim que eu costumava chamar um grande amigo meu. O companheiro de sonhos Vincenzo Giardinni.

Fomos amigos de infância quando residíamos na Itália. Mas, acabamos nos perdendo um do outro no Brasil.

No momento em que te avistei pela primeira vez, consegui reconhecer, entre seus traços, os do Enzo. A aflição que sempre senti ao ver alguém acidentado cresceu consideravelmente. De certa forma, tornava-se cada vez mais minha a missão de salvar você.

Felizmente, após árduos esforços, sua sobrevivência foi garantida.

Seus olhos puderam, enfim, abrir-se novamente para o mundo.

Devo a esses olhos, física e animicamente sãos, o maior presente que recebi em todo o curso da minha mais recente encarnação. Assistir, sob a forma sublime de um olhar recém-reaceso, ao milagroso renascer da chama da vida.

Durante o seu tratamento, recebi da equipe médica a informação de que, embora seu cérebro não houvesse padecido danos graves, sua fala ou sua memória sofreria prejuízos decorrentes do trauma causado pelo acidente.

Sua fala despertou perfeita, ao passo que a memória do seu passado acordou deglutida pelo Letes.

Ciente de que, finda a internação, você não teria para onde ir ou regressar, decidi acolhê-lo no albergue.

Foi assim que a Casa Luz abriu, pela primeira vez, as portas para você. Você, que, naquele distante dezembro de 1975, foi o nosso mais especial presente de Natal.

No mês posterior ao da sua recepção pela Casa Luz, fiz publicar, nos principais jornais do país, estampado pela sua fotografia, o seguinte texto:

Giovane Paolo Graziotti, brasileiro naturalizado, solteiro, proprietário e mantenedor do albergue Casa Luz, faz saber, a todos os leitores deste prestigiado veículo de comunicação, a notícia de que abriga, nas dependências da referida instituição, o homem cuja imagem se apresenta retratada na presente fotografia.

O mesmo se encontra sem memória, em decorrência do trauma causado por um acidente automobilístico, o qual teve lugar no quilômetro 11 da estrada que liga os municípios de Serrânia e Porto Calvo.

Recomenda-se a quem tiver qualquer informação sobre sua origem, sua família ou sua identidade que entre em contato com a Casa Luz através do telefone (017)259-1320 ou do endereço Rua Rodrigues Alves Quadra 4 Lote 6 Vila Rezende Serrânia – SP CEP. 87621-100.

Toda informação será bem-vinda.

Pela atenção dispensada a este comunicado, a Casa Luz, desde já, agradece a todos.

Como você bem deve se lembrar, ninguém nos contatou, o que fez com que, tanto sua identidade, quanto suas pregressas vivências, permanecessem abrigadas sob o imenso abismo do incógnito.

Também! Pudera! Um fato de grande vulto explodia nas páginas dos jornais da época – o estranho desaparecimento do corpo do músico Elíseo Giardinni, cuja morte se atribuía a um desastre de automóvel, provavelmente, muito semelhante ao seu, ocorrido na mesma região em que eu te encontrei.

Aliás, esse tal Elíseo Giardinni até se parecia bastante com você!” – Nestes termos respondeu-me o Sr. Giovane Graziotti, ressaltando, a exemplo de Brito e Lalo, as semelhanças supostamente existentes entre mim e Elíseo Giardinni, com a voz impassível de quem narra um filme.

Tentei endereçar uma nova pergunta ao italiano. Entretanto, sem que se desgrudassem do espelho, meus olhos assistiram ao tragar-se do reflexo da face do meu salvador por um belo alo de luz lilás e ao consecutivo substituir-se de tal alo pela imagem refletida do meu rosto de antes.

O misterioso diálogo que tive com o espírito do Sr. Giovane Graziotti não durou mais de 15 minutos. Mas, marcou-me, de tal modo, que me senti praticamente obrigado a registrá-lo integralmente no “Álbum de Sensações”.

Mais tarde, quando eu regressasse do passeio com Lucila, com toda a certeza, eu lhe apresentaria meus escritos sobre o episódio que me fora dado experimentar naquela tarde.

Hebane Lucácius