Rendição

Rendição

I – Sílvia

Sentado em sua poltrona de couro, cobiçada por ele a primeira vista numa visita a Londres, Arthur, ou conhecido por todos como “ King Arthur”, um homem de 65 anos de idade, talentosíssimo compositor e intérprete das melhores músicas românticas dos últimos 30 anos, está a pensar, segurando numa mão seu scotch puro como é de costume, e um cigarro na outra, como o menino simples do interior de Minas, chegou ao topo, conhecido no mundo todo e adorado por centenas de milhões de pessoas.

Diferente de outros, nunca acreditou que sua trilha ao sucesso tenha sido difícil, sabia desde menino que alcançaria tudo o que o dinheiro pudesse comprar. Todos riam dele, quando verbalizava seus anseios, dizendo para deixar de sonhar e pegar o cabo da enxada. Sempre apoiado por sua mãe, mulher virtuosa, extremamente correta, que lhe aplicou severos castigos, todas as vezes que Arthur se desviava do bom caminho, e não foram poucas, devido ao caráter oscilante do nosso protagonista. Sem mudar um músculo facial, seus olhos marejam e transbordam, numa demonstração dura de remorso, mas antes disso, cientificou-se de não ser flagrado em tal ato de vulnerabilidade. Ao começar a fazer sucesso, conheceu Sílvia, moça simples, família tradicional da cidade, como todos culturalmente tratavam moças como ela, “ essa é pra casar”, numa visita que fez ao Sítio de um colega do passado, se encantou ao primeiro olhar, e como um tigre caçando um coelho, ela não teve defesas contra sua investida, visto que também lhe havia caído nas graças. Como tudo em sua vida foi metórico, Arthur em apenas 4 meses já estava casado com Sílvia, e a mesma, começou a ser além de esposa e companheira, sua fiel escudeira, cuidando de tudo em sua carreira. Moça inteligente, captava com rapidez, tudo que envolvia a rotina, as turnês, as entrevistas, as visitas, aparições…

Sílvia, mulher de muitos dons, mas ao olhos do Rei, ela não era uma leoa. Sempre pacífica, com um sorriso no rosto, submissa, pois assim a tinham ensinada, uma mulher, que para Arthur, não tinha “glamour”.

Da mesma maneira meteórica com qual se casaram, o desaparecimento do encanto de Arthur também se foi, e começou a tratá-la com grosserias e humilhações, sempre ressaltando quão ela era inferior a ele, e qual era o privilégio dela e poder desfrutar de alguém como ele.

II - Beth

Com o passar do tempo, a fama, como um câncer toma conta de um corpo sadio, foi se apropriando de sua alma. Ela, no caso de Arthur, trouxe muito dinheiro, e este trouxe poder sobre muitas pessoas que trabalhavam em torno de seu nome, e Arthur, com seu ego inflado e seu caráter oscilante, começou a tomar gosto por esmagar os “menores”. Tudo tinha que transcorrer de maneira perfeita, caso não acontecesse, alguma cabeça rolava, e como não poderia deixar de ser, foi acumulando pragas de seus desafetos. Dono de atos implacáveis, não sentia pena, remorso ou qualquer sentimento de compaixão por nada, nem ninguém. O dinheiro faz com que você fique cercado de pessoas, e não apenas por interesseiros, mas pessoas que precisam trabalhar para ganhar a vida. Algumas mulheres, antes era fãs do cantor das belas canções de amor, e compostas por ele, não entendiam, como alguém podia falar muito sobre sentimentos, mas nada sentir.

Um dia, no auge de seus 45 anos dono de uma fortuna, em uma de suas turnês, ele conheceu Beth, 22 anos, linda, uma flor desabrochada exalando seu perfume, implorando por ser colhida. Como era de costume, em virtude de sua fama, belas mulheres estavam sempre dispostas a se entregarem a ele, pois nada é mais sedutor, que uma bela voz, numa bela canção de um belo homem. E neste caso não foi diferente, Ele a cortejou e levou-a para sua suíte, onde passaram a noite toda. Quando acordou pela manhã, diferente de outras vezes, ele não queria sair daquele momento, ele a queria pra ele, e admitiu em pensamentos estar apaixonado.

Beth acordou, levantou-se formalmente, apanhou suas roupas e começou a vesti-las, e ele desconcertado, pois não era de seu feitio tentar agradar ninguém, havia perdido o jeito, e começou a fazer perguntas sobre a vida dela. Ela respondeu de maneira formal, que era prostituta desde os 18, quando resolveu fazer faculdade, mas gostava de uma vida mais desregrada, e quando seus pais perceberam que as notas não eram condizentes com o valor pago, deixaram-na por conta própria e a mesma, não se importando e dona de uma beleza exuberante, começou a ganhar a vida, alugando seu corpo e carinhos por uma quantia razoável. Como tudo tem um preço, ele começou a negociar a exclusividade dela, e ela entendendo ter fisgado o mesmo, tratou de lhe fazer um preço pouco acessível.

III - A SEMENTE

Beth era de família abastada, mas não era dada a convenções, a famosa rebelde sem causa, e como nosso protagonista, usava tudo e a todos como degraus, para galgar a altura desejada. No fundo ela se importava apenas com uma coisa na vida, de ter muito dinheiro para sustentar Marcos, um cafetão, que bebia e jogava todos os dias. Mal caráter de nascença, Marcos já acumulava alguns crimes em sua vida, sendo roubos e homicídios, já havia sido preso algumas vezes, ou seja, era muito conhecido nos meios policiais. Sujeito violento, espancava Beth com certa frequência, e esta por sua vez, sentia uma atração avassaladora por este lado sombrio de Marcos.

Após mais um encontro tenso com Marcos, Beth lhe contou sobre a proposta de Arthur, e como não poderia de ser, os olhos de Marcos se arregalaram, vislumbrando a possibilidade de se dar bem até o fim de seus dias. Arquitetou um plano, para convencer Arthur a se casar com Beth, e lhe tornar a única herdeira de toda sua fortuna. Beth aceitou sem problemas ou escrúpulos, dizendo ainda que ele era arrogante, e merecia que alguém lhe colocasse um cabresto.

Beth começou a seguir o plano de Marcos a risca, ambos eram muito fiéis aos seus propósitos, o que os tornavam ainda mais perigosos. Em pouco tempo a semente do casamento já florescera nos pensamentos de Arthur.

Arthur começou a perseguir Sílvia, dizendo que queria o divórcio, e a mesma, triste mas conformada aceitara libertar seu amor. Tudo estava indo de acordo com o planejado por Arthur, até que o seu advogado, Dr Silva, lhe lembrou que na pressa de casar-se com Sílvia, ele não cuidou da maneira necessária o assunto da divisão dos bens. Possesso de raiva, atirou o copo de sua dose contra a parede e praguejou pela existência de Sílvia.

No outro dia, foi ter uma conversa com Sílvia, sobre a divisão dos bens, e a mesma ainda dolorida com a separação, fez algumas exigências que lhe pareciam justas, uma casa, um carro e uma quantia de pensão por um período. Ela nem terminou de falar, Arthur envolto numa onda de fúria, apanhou um peça de vidro que estava sobre a mesa e desferiu-lhe um golpe na cabeça, suficiente para derrubá-la. Sílvia caiu desacordada no chão, e Arthur acreditando ser fingimento continuou gritando palavras como, ladra, oportunista, golpista…

IV – A RAIVA

Depois de recobrar do surto, Arthur foi até Sílvia e constatou que ela não se mexia e com a ponta do pé, começou a cutucá-la para ver alguma reação. Neste instante, tomado de pavor, abaixou-se, e colocando-lhe a mão no rosto, notou que o calor não se fazia presente, ele afastou assustado e encostou-se na parede de frente para o corpo e ficou a fitá-lo, pensando sobre o erro e como resolvê-lo. Lembrou-se de Romualdo, segurança de confiança, um dos poucos funcionários que suportou por anos, trabalhar para Arthur. Ao ligar para Romualdo, Arthur convocou sua presença o mais rápido possível, por se tratar de situação urgente. O segurança chegou rápido acreditando seu patrão correr perigo, mas não era o caso, e ao ver o corpo de Sílvia com a cabeça rachada caído, entendeu a necessidade da brevidade.

_ O que aconteceu aqui? Indagou Romualdo.

_ Esta idiota tropeçou no tapete e bateu a cabeça na quina da mesa. Respondeu friamente Arthur.

A polícia foi chamada, um inspetor muito conhecido na cidade, chegando ao local, já entendeu que a história não se sustentava. Viu ali uma oportunidade de ouro, de se dar bem.

Passado alguns dias, Arthur estava em sua casa e foi avisado que o policial estava à sua porta acompanhado de outra pessoa, e queria falar-lhe.

Ele prontamente autorizou a entrada, mas estava preocupado, diante da conversa que viria a ter. O inspetor, sentado confortavelmente na poltrona diante de Arthur, fitava-lhe os olhos, avaliando cada gesto e comportamento de seu anfitrião.

Ele não fez rodeios, e apresentou o homem que lhe acompanhava, como sendo o médico legista encarregado da autópsia de Sílvia.

_ Eu, você e o Dr Gonzaga aqui, sabemos que Sílvia não tropeçou. Disse o inspetor.

_ Como assim? Respondeu gritando Arthur.

_ O senhor deve se acalmar, pois caso contrário, vou algemá-lo e conduzi-lo a Delegacia onde será indiciado por Homicídio doloso.

Nesta altura, Arthur já extremamente nervoso, tremia de raiva e gritou:

_ O que? Você está louco. Vou chamar meu advogado. Acho que você não tem ideia de com quem está falando.

_ Eu preferia resolver sem o Advogado, pois o “rachide” seria menor. Vamos deixar de conversa fiada. Encontrei o globo de vidro que você usou para rachar a cabeça da sua esposa, o legista já constatou a veracidade, então para de fingir, e vamos aos valores. Eu quero 5 milhões de reais, e nosso amigo aqui, gosta muito do número 5 também. Mas temos um problema, na verdade, você tem um problema. Dr Gonzaga vai entregar o laudo para o Diretor ao sairmos daqui, então ele tomou a liberdade de fazer dois laudos, um favorável a sua história, e outro não. E como sabemos que ao entregarmos o laudo, não teremos mais como negociar, então estes 10 milhões devem ser pagos neste momento.

V - O COMEÇO DO RESGATE

Anos se passaram, e vou resumir a vocês, nosso policial corrupto gastou todo o dinheiro e continua procurando casos para extorquir quantias de pessoas como Arthur. O médico legista está preso por crime de sonegação de impostos. Arthur se casou com Beth, e para não correr o risco dos parentes de Sílvia pleitearem algo, ele teve a esperteza de passar tudo para o nome dela. Quando os documentos ficaram prontos, no outro dia, Beth e Marcos nunca mais foram vistos, e Arthur conheceu a falência. Sem bens para cumprir compromissos, ele teve uma decadência meteórica, como tudo em sua vida.

Arthur nunca mais foi o mesmo, envergonhado por ter sido abandonado pela mulher que jurou a todas entrevistas, ser o grande amor de sua vida, escondeu-se numa casa simples, onde voltou a compor, neste momento exato de sua vida, a obra-prima de toda sua carreira lhe foi concedida, ele voltou a ter fama, dinheiro e poder. Caros amigos leitores, adoraria dizer-lhes que ele aprendeu a lição, mas ainda não foi desta vez. Em virtude de toda humilhação que sofreu, tornou-se ainda mais severo e desalmado.

E voltando a poltrona de couro Londrina do começo, de repente o copo caiu de sua mão e levando as duas ao peito, sua vida se foi, meteoricamente.

Arthur acordou com o peito dolorido, não sabia exatamente onde estava, mas era um tipo de cela, escura, úmida e com cheiro de mofo. Ouvia-se uivos e lamentos ao longe, e ele apavorado, buscava meios, sendo através de gritos ou forçando as barras para se libertar, mas todo seu esforço era em vão. Depois de tanto se debater, acabou adormecendo novamente.

Os dias passavam e Arthur sentia uma fome enorme, sede, frio, e solidão. Não tinha noção exata do tempo que estava ali, mas pelo tamanho de seu cabelo e barba, meses já haviam se passado. E ele, sem entender o que havia se passado.

Durante todo tempo recluso, pensava no que estava acontecendo, não entendia porque ninguém aparecida para acusar-lhe de algo, ou porque não morria de fome ou de sede. Era uma tortura sem fim, quanto mais o tempo passava mais ele se rendia. Sem saber exatamente, Arthur levantou os olhos e achou ter tido uma ilusão. Viu claramente o senhor Valter, ele esfregou os olhos novamente e Valter continuava ali, ereto diante de suas grades, e num ato de desespero ele falou:

_ Valter?

_ Sim Sr Arthur.

_ O que faz aqui?

_ Fui intimado a comparecer diante do senhor.

_ Intimado? Por quem?

_ Não sei ao certo. As coisas por aqui não são explicadas.

_ Aqui? O que é este lugar?

_ Me pergunto também, a única coisa que entendi sobre este lugar, estamos presos a tudo que fizemos em vida, enquanto não resgatarmos algo precioso, estamos presos aqui.

_ Não estamos na Terra?

_ Não sei dizer se ainda é a terra, mas tudo aqui é diferente. Não há coisas, apenas sentimentos e emoções.

_ Bobagem. Estas grades são tão reais quanto eu e você.

_ Quais grades? Elas estão apenas em seus pensamentos.

_ E o que você faz aqui?

_ Estou pagando pela minha incompreensão junto aos seus atos.

_ Araaaa. O que lhe fiz?

_ Quando despediu-me, depois de trabalhar longos anos ao seu lado, e deixei cair uma almondega, em sua calça branca.

_ Eu deveria entender os desígnios de Deus, mas guardei uma mágoa no coração e neste instante estou aqui para resgatar a energia que despendi com o Senhor.

Conversaram alguns momentos, e sem perceber Valter desapareceu do mesmo modo como tinha surgido.

VI – Alguns passos

Arthur levantou a cabeça ainda perplexo, tudo aquilo não fazia sentido. Estava cansado, mas, mesmo assim, teve um flash back do último momento em sua poltrona, e admitiu pela primeira vez a possibilidade de estar morto. Mas não se sentia morto, não via diferença exceto o lado externo. Valter lhe disse coisas estranhas, como estar preso a maldade praticada, mas, se isso for real, como posso reverter? Pensou.

Longo tempo se passou até que um dia Valter lhe apareceu novamente.

_ Ola Valter, pensei muito em você, eis que você me aparece?

_ Sim senhor, desta vez estou aqui por vossa vontade, Graças ao bom Deus, eu estou liberto, não pertenço mais a este lugar.

_ Como assim, com quem você falou, quem lhe autorizou sair?

Risos vieram de Valter e ele prosseguiu:

_ Achava que o Senhor fosse mais esperto, ainda não entendeu depois de todo este tempo.

_ Do que você está falando?

_ Não seja morada da raiva, só estou aqui, neste momento, porque o Senhor cedeu em seus pensamentos de alguma forma e sincronizou com meu ser.

_ Eu nunca ouvi tanta bobagem, cale esta boca e me diga logo o que devo fazer…

Neste instante Valter desapareceu diante dos seus olhos.

A solidão voltou, com ela os uivos e sussurros atrás daquelas grades.

Arthur já não concatenava as ideias, e começou a desistir de sentir qualquer coisa, encostou a cabeça numa pedra do chão e pela primeira vez, chorou.

Não sabia o que pensar, o choro era de rendição e adormeceu. Ao acordar, assustou-se com o que viu, estava livre, as grades se foram e ele acreditou na história de Valter, e assim começou a entender a funcionalidade daquele lugar. Mentalizou como muita propriedade Valter, concentrou-se e num passe de mágica avistou vindo em sua direção, Valter.

Ao chegar, e devido ao tempo em que passou encarcerado, Arthur foi em direção a Valter e com os olhos cheios d'água abraçou-o e pediu perdão. Como num passe de mágica, a escuridão total deixou de existir, era possível, ao forçar os olhos, enxergar ao longe um esboço de horizonte.

Neste instante, Valter disse:

_ Parabéns senhor Arthur. Conseguiu se libertar de uma das coisas que o prendia, mas isso foi apenas o começo.

VII – A voz

Arthur começou a andar pelo vale, não havia claridade, mas era possível determinar as dimensões através de algumas luzes que surgiam. Então ele sentou-se e começou a organizar seus pensamentos, medos e raivas. Imaginou, se Valter, que havia guardado mágoa, viera até ele, a qualquer momento ele poderia ir até alguém. Mas quanto mais pensava, mais difícil era aceitar os erros, que dirá perdoar aos que lhe fizeram mal. Aquela prisão atual, de certa forma era pior que a anterior, pois imerso na ignorância, apenas esperava, e o mais importante, era a vítima. Este novo cenário, sabe que não adianta esperar, e toda libertação virá de um trabalho árduo interno nunca feito antes em toda sua existência. Pensava consigo, como saber ao certo, o certo, quem determinou que isso ou aquilo é verdadeiro ou falso?

O alívio de sair de trás das grades, daquele lugar insalubre, foi passageiro. Agora livre num espaço imenso, ele vaga há tempos, sem encontrar as respostas. Quando se está vivo, muitas vezes pode-se pagar todo o bem recebido, a uma outra pessoa, e suas contas se equilibram, mesmo você não tendo que encarar seu desafeto. Mas neste lugar, tudo deve ser pago exatamente a quem se deve, e a conta de Arthur não era baixa. Anos pisando em seus funcionários, ele acreditava agora, que cada mágoa que alguém tivesse dele, seria mais uma corrente prendendo-o àquele lugar.

Sílvia. Pensou ele, o tamanho da mágoa que causara àquela doce mulher, durante todo o tempo que esteve ao seu lado, ela apenas lhe serviu, nunca quis nada em troca. Mas, seu coração, havia permanecido muito tempo no elixir da vaidade, por esta razão o sofrimento levaria muito tempo para derreter o verniz corrupto, que cobria seus sentimentos, e libertar os bons sentimentos e com ele o exercício de perdoar.

Todo aquela solidão, foi dissipando a raiva. Mais uma vez, chorou, ao elevar seu pensamento a Deus, pedindo que o libertasse de si mesmo. Neste instante, um vulto enevoado, totalmente disforme, parecendo uma baforada de cigarro, apareceu diante de seus olhos. Ele em silêncio, observou, e num dado momento tentou tocá-la, mas nada havia para ser tocado. Ao virar as costas para a pequena nuvem de fumaça, ele ouviu:

_ De que precisas?

VIII – A nuvem

Durante toda sua vida, embora tenha sido criado sob uma cultura religiosa, Arthur nunca realmente se convenceu da necessidade de acreditar. Embora não debochasse, mas também não cria com importância, dai toda dificuldade em lidar com questões que não fossem meramente materiais.

Antes de virar-se, passou pela sua cabeça racional, que num mundo onde pessoas aparecem do nada e se vão da mesma maneira, uma voz, muito próxima não é nada assustador.

Ao defrontar com a pequena nuvem, ele com cara de desconfiança perguntou:

_ Tem alguém ai?

_ Sim Irmão, clamou por ajuda, e estou aqui?

_ Quem, ou o que é Você?

_ Ah humanos, presos às formas. Sempre me esqueço disso.

_ Perderia muito tempo explicando algo a você sem importância, visto a urgência de sua mudança de atitude. Neste primeiro instante, apenas imagine que sou uma voz em sua consciência.

_ Este lugar é de enlouquecer, mas tenho tantas perguntas?

_ Sim, é claro. Podemos começar.

_ Onde estou?

_ Preso em seu existir, vou tentar ser mais claro. Caso você precisasse atravessar o mar, você construiria um barco. De uma maneira grosseira, o seu existir, seria o barco navegando pelo oceano.

_ Por que estou aqui?

_ Não sei dizer, não criei as regras, mas todas as dificuldades que passa aqui, estão no simples fato da não aceitação de seus erros.

_ Como saio daqui?

_ Muito simples, embora o simples, nem sempre é algo fácil de se fazer. Você teve uma vida toda para praticar o bem e promover a distribuição justa, visto que você foi alguém de destaque na sua existência, mas, como foi mandado pra cá, com certeza você não fez o trabalho de casa.

_ Nunca soube exatamente o que deveria ser feito?

_ Ha ha ha. Se você soubesse quantas vezes já ouvi esta frase. Todos sabemos o certo, uma criança sabe o certo, está tatuado nas suas ordens originais, não é algo opcional.

_ Ordens originais?

_ Toda vez que alguém, depois de uma seleção minuciosa, é escolhido a passar pela experiência da Terra, ele sai do Sistema com as ordens originais, e estas não podem ser alteradas e nem negadas, tudo que você praticou na Terra que contrariava uma ordem original, sua consciência o alertava, e você já sabe o resultado.

_ Você citou o “Sistema”, o que seria isso afinal?

_ Tudo é determinado pelo Sistema. Seria a grosso modo, novamente, como um governo na Terra.

_ Existe um presidente que cuida de tudo?

_ Não. A ideia é outra. Vou tentar dar um exemplo. Você viveu 65 anos na terra e nunca ouviu falar de alguém ter gerenciado a gravidade?

_ Não.

_ Então, este é o princípio. Não há necessidade de estar escrito em algum lugar se alguém esta faminto, você deve alimentá-lo, com frio, aquecê-lo, e assim vai.

_ Entendo.

IX – A dificuldade do aprendizado

Após horas, perguntando, Arthur se convenceu da necessidade de uma mudança.

_ Tenho mais algumas dúvidas?

_ Temos todo o tempo de que precisar.

_ Como adquiriu todo este conhecimento sobre este lugar?

_ Muito boa sua pergunta. Cada um de nós, é obrigado a evoluir, e na Terra, temos o privilégio da evolução acompanhada, ou seja, somos fruto do mesmo sistema, isso nos torna “irmãos”, e a facilidade aumenta, pois ao chegar a Terra você é agraciado conforme seu grau, com mais ou menos pessoas, mas a grande maioria é enviada com seis ajudantes diretos, e alguns indiretos.

_ Ajudantes diretos e indiretos?

Risos.

_ Diretos, pais e avós. Indiretos irmãos, tios…

_ Interessante, ao passarmos pela experiência humana, nossa maior dificuldade está em convivermos em harmonia com nossos irmãos, porque nos deixamos levar pelo orgulho, egoísmo, ganância, e por ai vai, mas quando se chega aqui, e precisa resolver tudo dentro de si, verás quão difícil fazer isso sozinho.

_ Mas você está aqui, me ajudando?

_ Sim. Porque você, depois de 30 anos vagando nesta dimensão, entendeu que precisava de ajuda e clamou com Fé.

_ Eu? Clamei com Fé? Como fiz isso.

_ Não é algo que se faça, mas que se sente.

_ Mas terminando de responder sua pergunta, o conhecimento é diretamente proporcional a sua capacidade de melhorar.

_ Então, entendo agora, quando Valter me disse que estou preso ao que fiz.

_ Sim. Mas, agora é a hora de fazer uma varredura no seu comportamento e dar seguimento a sua evolução. Todas as respostas estão em seu íntimo.

_ Boa sorte.

_ Obrigado.

X – O reencontro

Agora munido de informações, Arthur traça um plano de cura. Antes de sair procurando nomes e situações, ele tem a brilhante ideia de ir a raiz de tudo. Nos porquês.

Repassando seus comportamentos, identificava claramente sua arrogância, somado ao autoritarismo empregado, mais a ganância, disse a si mesmo:

_ Eu realmente mereço passar por tudo isso, não me lembro o último dia em que fui bom a alguém…

Neste momento, ele sentiu que foi arremessado contra algo e ao recobrar a consciência, estava de cara com sua mãe. Ele queria abraçá-la mas de uma maneira estranha ela não o via. Entristecido clamou por ajuda, e prontamente foi atendido. Aquela nuvem que fala acabou de chegar.

_ De que precisa?

_ Por que minha mãe não me vê, se eu posso vê-la?

_ Porque sua mãe não tem nada contra você.

_ Não tenho nada contra ela e posso vê-la?

_ Faça uma releitura de sua vida, algo ainda liga você, a ela.

_ Não sei, tenho boas lembranças de minha mãe.

Ele não queria admitir, mais trazia consigo algumas mágoas de sua mãe, coisas simples numa relação normal, mas não de mãe para filho.

Sua capacidade de perdoar, após tanto tempo preso em sua penitenciária mental, havia se multiplicado, e nosso protagonista atingiu êxito nesta tarefa. A sensação de alívio lhe tomou conta, e com mais este passo, seu conhecimento começou a aflorar, e a cada descoberta, ele identificava claramente os erros.

Muitas vezes não deixamos de fazer o certo apenas por não ter vontade, é necessário conhecer, para saber lidar. Caso seja colocado diante do painel de um avião, não será por falta de vontade de acertar que não o conduzirá.

Arthur, neste ponto, já estava muito adiantado, e entendia ele, pronto para enfrentar duas situações. Sílvia e Beth.

Beth era a paixão selvagem, era o moço vaidoso que fazia morada no corpo daquele Senhor de 65 anos, falando por ele. Ao sofrer tudo até então, Arthur entendeu que o Sistema havia encontrado uma forma de pará-lo, e ao deparar com Beth, tudo de mal que ele representava, foi direcionado a esta aquisição, e sabe, com certeza agora, que teria pago muito mais para viver tudo novamente. E através deste pensamento ele superou a traição de Beth.

Vocês devem se perguntar porque Sílvia. Ao tomar conhecimento, o remorso tomou conta de seu coração, e o pior de todos os julgadores, é a nossa própria consciência. Arthur temia invocar Sílvia e encará-la agora, despido, exposto totalmente, mas no seu íntimo sabia que era direito de Sílvia, então em meio a soluços, ele ajoelhou-se, com o rosto coberto com as mãos, tentando esconder a vergonha, ele mentalizou Sílvia. Depois de todo esforço, ainda com muito medo e arrependimento, foi abrindo os olhos vagarosamente, mas não a viu, apenas a nuvem de seu ajudante. Neste instante, procurou-a por toda parte, e não entendia porque não havia funcionado.

Virou-se para a nuvem e perguntou:

_ O que deu errado? Por que não funcionou?

_ Não deu errado. Estou aqui.

_ Neste instante ele não suportou, prostrou-se no chão e um choro inconsolável se fazia ser visto. A cada lágrima de Arthur, uma corrente dele se partia, e quanto mais sincero era o choro, menos denso seu corpo ficava. Ao recobrar o equilíbrio, olhou para onde estava a nuvem, e assustou-se com a imagem de Sílvia, e entendeu que a rendição total de seu choro, o libertara totalmente de suas correntes, e a partir dali tudo ficou muito claro, e não foi necessário falar uma palavra a Sílvia pois nem tudo no plano é explicado com palavras.

fim

RRSabioni
Enviado por RRSabioni em 04/07/2018
Reeditado em 15/08/2018
Código do texto: T6381257
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