Capítulo 3

O internauta deve ter estranhado eu não ter apresentado a mulher de Benoni,Silvia Thomé, personagem desta narrativa. Benoni já é viúvo há mais ou menos 20 anos.na casa dele em Rio das Ostras, vi um retrato de Silvia.                 Era uma mulher bonita, branca, olhos verdes e estatura mediada. Bem feita de corpo como se fora torneada.

Conheci-a na Casa do Estudante Universitário (CEU).eu estudava Direito e era residente.anteriormente,a CEU ficava na Lapa, no centro histórico do Rio. Depois, foi transferida para Botafogo,no antigo prédio da Escola de Enfermagem Ana Nery. Foi nessa época, que fui admitido como morador. tinha me separado de Laurentina, que estudava comigo na mesma faculdade.

Via constantemente Silvia subindo e descendo as escadas da CEU, acompanhada de amigos que estudavam diversos cursos superiores. Ela me chamou a atenção por sempre esta com amigos mais que mulheres e percebi nela uma militante natural do movimento feminista, que então se iniciava no Brasil. Soube depois que estudava Filosofia ela, uma mulher libertária, muito rara ainda numa cidade grande.

Benoni começou a namorar com ela e em pouco tempo nasceu a primeira filha de três que tiveram. Clarissa é o nome dela, hoje jornalista da sucursal da FOLHA DE SÃO PAULO. Segundo o pai, Clarissa cobria para o jornal Paulista a guerra entre traficantes e policiais nos morros.

Silvia tornou-se jornalista por influência de Benoni.com o desemprego dele de O GLOBO, resolveram morar num distrito de Niterói e fundaram o semanário FOLHA OCEÂNICA, que dava para sustentar a família.

E os anos foram passando inexoravelmente. E mudavam de distrito para distrito como que buscando algo desconhecido. Benoni separou-se de Silvia, mas continuavam trabalhando juntos no jornal.Ela tomava conta da parte administrativa e ele, como bom vendedor que era, conseguia os anúncios para manter o empreendimento.

Eis que um certo dia, cada um para seu lado, a poeta Silvia Thomé é assassinada na praia a à noite, por dois indivíduos com quem estivera bebendo no calçadão. a notícia me pegou de surpresa através da televisão aqui em São Luis.

Numa de suas habituais visitas, aqui, a mim, Benoni me contou constrangido o caso e afirmou que se encontra-sse eles em qualquer lugar, os mataria. Um deles era filho de um coronel da Polícia Militar. Em homenagem a ela, líderes feministas ergueram uma estátua de Silvia Thomé na região distrital de Niterói

O artigo que clarissa, filha de silvia Thomé , publicou no Estado de São Paulo:

A única julgada

'Minha mãe foi morta por andar à noite, parar num quiosque e - cúmulo da provocação - ser mulher'

CLARISSA THOMÉ, O Estado de S.Paulo

06 Abril 2014 | 02h09

“Conheci o que era maldade no carnaval de 1994. Na Quarta-feira de Cinzas, um pescador resgatou o corpo de minha mãe do mar de Piratininga, na Região Oceânica de Niterói, no Grande Rio. Ela estava nua, a calcinha enrolada no pescoço. Havia sido atacada no calçadão, a 600 metros da nossa casa.

Minha mãe, a jornalista Sílvia Thomé, tinha saído para andar na praia à noite, porque tinha uma reunião de trabalho bem cedo no dia seguinte - repórter de economia, deixara a rotina do jornalismo diário para se dedicar a um sonho que ela e meu pai dividiam havia algum tempo: um jornal de bairro, que fizesse "jornalismo de verdade", e não fosse apenas "espaço para anúncios". Juntos, tocavam o Caderno Oceânico.

Aos 40 anos, tentava parar de fumar e as caminhadas a ajudavam a reduzir a ansiedade. Ela reclamou do horário marcado para a reunião - impediria o exercício matinal. Meu pai, ao deixá-la em casa (já estavam separados), sugeriu que caminhasse à noite. Seguiu o conselho. Depois de andar, parou com minha irmã num quiosque. Minha mãe tomou uma cerveja, Giovana, uma Coca-Cola. Giovana voltou mais cedo; queria ver um filme na tevê. Minha mãe não voltou mais.

Nunca saberemos o que de fato ocorreu. Quando ela foi encontrada, calçava uma das sandálias; a outra estava junto ao quiosque - o que deixa claro que a agressão começou ali. Mas numa era pré-luminol (substância química que realça vestígios de sangue, mesmo depois de o ambiente ser lavado), pré-DNA, só tínhamos evidências. Nenhuma prova.

O que sabemos é que nossa mãe lutou muito contra seu agressor. O laudo do Instituto Médico Legal mostrou que ela sofreu hemorragia interna por perfuração do baço, provocada por espancamento. Teve o braço direito quebrado; tinha um grande hematoma na testa. Por fim, o sufocamento - constrição do pescoço é o termo técnico.

Como o corpo foi jogado no mar e passou um dia inteiro na areia, sob o calor daquele fevereiro infernal, os peritos não concluíram se ela foi ou não vítima de violência sexual. E por muito tempo isso me confortou, de alguma forma. Pelo menos essa dor a mamãe não passou, eu dizia para mim mesma, como se fosse possível encontrar consolo em meio à tragédia.

Sabemos ainda que ela foi morta por ser mulher. Se meu pai tivesse decidido tomar uma cerveja no quiosque, não teria sido importunado. Não teria ouvido gracejos. Teria voltado para casa. Minha mãe era presa fácil: um metro e cinquenta e cinco, pouco mais de 40 quilos. Sozinha, num trecho escuro do calçadão - o refletor naquele ponto da praia estava quebrado havia semanas.

Restamos três meninas apavoradas - eu tinha 18 anos, Giovana, 16, Maíra, 13. Além de perder nossa mãe, perdemos nossa casa. O assassino ainda estava solto. Como caminhar naquele calçadão? Como mergulhar naquelas águas? Fomos morar com nossos avós.

Uma morte violenta como essa deixa marcas profundas - todos nos sentíamos culpados. Giovana por tê-la deixado sozinha. Meu pai por ter sugerido a caminhada noturna. Eu e Maíra porque estávamos viajando - há 20 anos não viajo no carnaval. Meu avô, que estava no início do processo de Alzheimer, desligou-se de vez da realidade. Morreu dois anos depois.

Em 2004, um suspeito foi absolvido no tribunal do júri. Na verdade, só minha mãe foi julgada naquele dia. A promotora chegou a perguntar: "Mas ela estava sem sutiã?". Estava. E ninguém tinha nada a ver com isso. E a roupa que usava não justificava agressão alguma. Minha mãe também era culpada. "Isso era hora de estar na rua? O que ela estava querendo, bebendo sozinha num quiosque na praia?", ouvimos muitas vezes.

Falar sobre esse tema é muito doloroso. Giovana e Maíra muitas vezes disseram que nossa mãe havia morrido de câncer. Encerrava o assunto. Sustava os por quês. E poupava do inevitável olhar de pena. Eu sempre escolhi a verdade. Essa é a nossa sociedade - machista, preconceituosa, em que a impunidade é regra. Temos de lidar com isso para poder transformá-la. Passei a usar uma estratégia: falo sobre o crime como quem comenta uma matéria. Como se não tivesse acontecido com a gente.

A primeira vez que menti sobre a morte de minha mãe foi para meu filho, que tinha 4 anos quando quis saber "como a vovó morreu". Assalto, filho. Mas o bandido está preso. Não sabia como explicar para uma criança que alguém pode ser morto só por ser mulher. E que quem faz uma coisa dessas escapa ileso.

Decidi escrever sobre a minha mãe ao ler o depoimento da professora Daiara Figueroa, no Facebook. Em meio a tantas fotos com cartazes "não mereço ser estuprada", o dela surgiu assustador, com o verbo no passado. Escrevi em solidariedade. Acabei descobrindo que também não estava sozinha - foram mais de 7 mil compartilhamentos, dezenas de mensagens de apoio, e o que mais me impressionou: relatos de violência sexual, alguns cometidos na própria família.

Depois de 20 anos, a memória embaralha, as lembranças se confundem, muita coisa se perde. Há algum tempo uma amiga de infância da minha mãe perguntou: "Lembra da gargalhada dela?". Eu já não lembro. Mas não vou me esquecer nunca do amor intenso que ela sentia por nós. E é por causa desse amor que ficamos inteiras, unidas, apoiadas sempre num pacto quase infantil, feito no momento em que enterramos nossa mãe - juntas somos uma. CLARISSA THOMÉ É REPÓRTER DO ESTADO NO RIO"

Na minha análise do fato, ainda sob o impacto de um crime hediondo, acho que eles mataram a mulher do meu amigo, por instintos homossexuais. Não sou psicólogo, no entanto, com a minha experiência de vida e de machista de uma sociedade patriarcal, o comportamento libertário e revolucionário de Silvia agrediu a mentalidade, doentia e mórbida deles. Tenho a impressão que ela não foi violentada sexualmente. A motivação central do crime foi ela encarnar como mulher àquilo e eles não eram sexualmente, isto é, sem quaisquer preconceitos sexuais, os criminosos viam nela uma concorrente em um gênero ao qual não pertenciam naturalmente.

samuel filho
Enviado por samuel filho em 20/07/2018
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