O Espírito De Prata - Capítulo X

Capítulo 10

“Era Para Ser A Flauta!”

Após partilhar com Lucila a mais importante de todas as minhas recentes descobertas, senti meu coração tragado por uma profunda e indecifrável sensação de alívio. Alívio que fez despertar em minha mente uma complexa seqüência de notas. Notas que bem poderiam soar como o início de uma nova canção. Canção a cuja composição, apressei-me em dar corpo.

Lancei mão do contrabaixo, que jazia a pouquíssimos passos de mim, e, cantarolando a seqüência de notas recém-despertada, comecei a dedilhar instintivamente o instrumento à procura de acordes correspondentes aos sons que meus lábios emitiam.

As notas se encontravam misteriosamente. Misteriosamente os acordes se formavam e se encaixavam em frases que fluíam como pinceladas de um íntimo quadro sonoro.

Era assim que a canção se desenhava em mim. Estranhamente marcada por um incompreensível compasso de lembrança.

Parecia que tudo aquilo que eu estava compondo já havia sido feito por mim noutra época.

Nalgum canto distante da casa, minha benfeitora se mantinha ocupada por afazeres domésticos para os quais eu jamais consegui demonstrar o mínimo sequer de capacidade, aptidão, vocação ou competência. No entanto, a mansuetude que emergia dos seus gestos e o silêncio que se fazia ouvir dos seus lábios acendia em mim a sonora certeza de que ela, mesmo de longe, me observava, prestando a mais absoluta atenção a cada nota que se transportava da minha mente à minha voz, da minha voz às minhas mãos, das minhas mãos às cordas do contrabaixo, das cordas do contrabaixo ao extenso espaço do recinto que me guardava.

Tal certeza veio a se confirmar no exato instante em que, concluídas as atividades que compunham sua intensa agenda domiciliar, Lucila se deixou conduzir até o local em que eu me encontrava e, depois de anunciar sua presença com um suave toque em meu ombro, dirigiu-se a mim dizendo:

“Sinto muito, Sr. Graziotti! Mas, as notas que o senhor está tocando aí no seu contrabaixo não pertencem a uma composição inédita!”

“Não?” – indaguei-lhe eu, espantado.

“não! – respondeu-me ela, firme – Os acordes que o senhor está tocando pertencem à segunda parte de “Blue Angel.

A versão de “Blue Angel” que nós ouvimos juntos na edição norte-americana de “O Espírito De Prata”! Aquela que era exatamente igual à melodia que o senhor me assoviou no dia em que lhe apresentei esse contrabaixo que está tocando! É apenas a primeira parte da canção! Por falta de espaço e por ser demasiado longa, ela não coube toda no long play. Por isso, no ano da suposta morte de Elíseo Giardinni, isto é, no ano em que o senhor desapareceu, a gravadora estadunidense responsável pelo álbum lançou um compacto simples contendo a íntegra de “Blue Angel”.

Nele, a primeira parte da canção. Esta que o senhor conhece! Ficou como lado A. Enquanto a segunda parte. Esta que o senhor está tocando sem saber! Ficou como lado B.”

Por fazerem completo sentido as palavras de Lucila, pedi a ela que pusesse o compacto para tocar em sua vitrola.

Ela me atendeu prontamente. Fato que me fez deixar, por alguns instantes, o contrabaixo, sentar no confortável sofá da sala de estar e volver o máximo de minha atenção a cada médio, grave e agudo que se transmitia pelas potentes caixas acústicas daquele interessante toca-discos.

Em razão de algum desses enganos cuja causa nunca se descobre, Lucila iniciou a audição do disco pelo Lado B, o que me fez reconhecer, logo na introdução da segunda parte de “Blue Angel”, a seqüência de notas com que eu vinha trabalhando no contrabaixo e, enfim, compreender a impressão que me tomava cada vez que uma daquelas notas se transferia de mim para o instrumento.

À medida que a canção ia tocando, meus olhos se enchiam de lágrimas.

Meus lábios murmuravam a mesma frase que eu havia proferido no dia em que minha benfeitora me fizera recordar a última faixa de “Silver Soul”.

“Era para ser a flauta! Era para ser a flauta!” – diziam não só os meus lábios, mas, todas as partes do meu ser, numa voz que revelava em seu tom um misto de franca comoção e inesperado desespero.

Ao notar minha reação, Lucila não pensou duas vezes. Retirou imediatamente o disco da vitrola, guardou-o em sua capa, acondicionou-o cuidadosamente na prateleira, desligou o aparelho, sentou-se junto a mim e me endereçou as seguintes palavras:

“O que te aflige, Sr. Graziotti? Serão memórias? Mas... Memórias tão tristes para uma canção tão solar? Não entendo! Será que estas memórias que te entristecem tanto têm a ver com a musa inspiradora da canção que acabamos de ouvir? Será que a musa inspiradora de “Blue Angel” é certa moça que atende pelo nome de Heloísa Krigher? Moça que, hoje, já é uma mulher e que vem a ser, por uma dessas incríveis coincidências do destino, a minha mãe? Pode me dizer, Sr. Graziotti! Pode confiar em mim! Prometo ao senhor que não contarei a ninguém o motivo da sua aflição! Afinal, nós somos ou não somos amigos? Eim?”

Respirei fundo, a fim de estancar as lágrimas e acalmar os soluços.

O olhar terno com que Lucila parecia me abraçar e a voz mansa com que buscava me acolher garantiram-me a calma necessária para que eu pudesse me refazer de todo aquele turbilhão de emoções explicando-lhe a causa do mesmo.

“Sabe de uma coisa, senhorita Lucila? Ouvir esta canção assim, inteira, resgata em meu ser certas sensações que eu não sei bem se vivi, se sonhei, ou se, apenas, gostaria de ter vivido.

“O Espírito De Prata” começou como um disco despretensioso. Uma iniciativa em que quase ninguém cria.

Apenas meus músicos e eu acreditávamos no projeto. Até hoje, não sei como foi que conseguimos do Produtor Executivo da gravadora permissão para irmos à diante com o álbum.

Éramos, modéstia aparte, uma grande equipe de músicos. Formávamos uma espécie de “Dream Team” musical.

Tínhamos sua mãe na flauta, Téo Dias e eu nos revezando no contrabaixo, Márcio Krigher e Maurício Fróis nos saxofones, Osmar Meniach e Mário Meniach nos demais metais, Paulo Reis na bateria, Lysias de Paula na percussão, Charles Moreno na guitarra, Renato Lucci, Mauro Couto e Thomas Kleimer nas cordas, Francisco Ferrari nos teclados, arranjos e direção musical, Amadeu Krigher e Walter Gianoto nos vocais de apoio, eu na voz principal, Lalo Ferrari na técnica de som, Vicente Waldman na engenharia de som e Cristiano Granrio na produção.

Demoramos uma semana para gravá-lo. Tempo considerado mínimo para a gravação de um long play tão complexo quanto o nosso. Entretanto, no instante em que o concluímos, tivemos conosco a certeza de que havíamos feito um excelente trabalho.

Depois de lançado, “O Espírito De Prata” superou todas as ínfimas expectativas que acerca dele se teciam.

Ganhamos discos de ouro, platina, platina duplo, diamante e diamante duplo. Além disso, recebemos um convite para gravarmos uma edição norte-americana do disco.

Diferentemente da edição brasileira do álbum, a qual contava com somente doze faixas, sua versão estadunidense teria vinte e uma canções e seria lançada como um long play duplo denominado “Silver Soul”.

Celebramos nossa conquista com um jantar no Antares.

Depois, fui com seu tio Márcio até a casa dele. Havíamos combinado passar a noite lá a fim de começarmos a trabalhar nas canções novas que acrescentaríamos ao repertório de “O Espírito De Prata” para a edição norte-americana.

Márcio me apresentou um tema que ele havia iniciado no saxofone. Somei-lhe algumas notas e, dentro de pouco mais de meia hora, tínhamos pronta uma canção. Uma irretocável canção, diga-se de passagem!

Foi minha a ideia de intitular a canção recém-composta “Blue Angel”. Também foi minha a iniciativa de acrescentar o nome de Heloísa à nossa parceria.

É bem verdade que ela não havia estado conosco no momento da composição. Todavia, tinha sido sua voz a minha fonte de inspiração.

Márcio alertou-me sobre as conseqüências que o acréscimo do nome de Heloísa à parceria que resultou em “Blue Angel” poderia ter perante o Téo, que, além de namorado de Heloísa, era um sujeito bastante ciumento.

No dia seguinte, apresentei “Blue Angel” ao Téo, identificando como autores Márcio, Heloísa e eu.

Sentindo-se, de alguma forma, traído, Téo abandonou o projeto e proibiu que procurássemos Heloísa e a convidássemos a viajar aos Estados Unidos em nossa companhia.

Márcio e eu conhecíamos muito bem o temperamento explosivo de Téo. Por isso, nos vimos na obrigação de obedecer-lhe a proibição.

A atitude de Téo desagradou-me profundamente, uma vez que minha intenção era a de que “Blue Angel” fosse executada unicamente por mim, no contrabaixo e por Heloísa, na flauta.

Foi, portanto, por falta da flauta que “Blue Angel” se converteu em uma composição escrita para contrabaixo e assovio.

Como a senhorita bem sabe, “Silver Soul” foi gravado e obteve significativo sucesso.

Quando regressamos dos Estados Unidos, sua mãe e o Téo já estavam de casamento marcado para dali a um mês.

Talvez esteja eu deixando que minhas aspirações amorosas falem por mim. Mas, acho que nalgum momento, durante esse mês, algo muito especial ocorreu entre mim e sua mãe.

Penso que traímos o Téo.

Penso também que, depois de ter-lhe contado tudo isso, a senhorita não aceitará mais a minha presença em sua casa. Afinal, que filha pode querer abrigar sob seu teto alguém que traiu seu pai?”

Lucila não me disse nada. Afagou-me o rosto, enlaçou-me e me fez adentrar um dos muitos quartos de sua casa. Um cômodo em que nada havia além de um grande espelho.

Lá, pediu-me que me pusesse ao lado dela e, após examinar demoradamente os reflexos das nossas imagens, como se procurasse em seu vulto traços que fossem meus, conduziu-me de volta à sala.

Confesso nada ter compreendido na atitude de Lucila.

O que pretendia ela, afinal?

Não pensei mais nisso. No entanto, ao ouvir dela que eu não precisava sair de sua casa e que, para ela, continuava a ser uma honra hospedar-me sob seu teto, senti-me envolvido por uma suave onda de ternura e conforto e, num inexplicável impulso, abracei-a calorosamente, beijei-lhe a fronte e lhe disse:

“Que deus te abençoe, filha amada!”

Hebane Lucácius