18 - A República em Perigo - Filhos da Terra

O ano de 2005 não foi nada fácil para o governo federal, que até então vinha bem nas pesquisas de opinião. Com as denúncias do escândalo denominado pela mídia empresarial de "escândalo do mensalão", o governo ficou na defensiva. A imprensa não dava trégua, analistas de plantão emitiam opiniões sobre os rumos da república, concluindo que o caminho seria a renúncia do presidente, ou o seu impeachment. Em meio ao tiroteio, envolvendo, inclusive setores da base aliada, a desordem tomara conta do governo. Dentro do próprio partido do presidente, o clima era tenso. Indignação: "esse é o resultado da aliança com os conservadores, quando deveria ser com o povo"; "o rebaixamento do programa do partido, para acalmar o mercado só poderia dar nisso"; "o não rompimento com as políticas neoliberais tornou o governo refém do sistema financeiro e da elite dominante"; "a responsabilidade é do campo majoritário, que não faz a interlocução com o conjunto do partido e com os movimentos sociais, optou por um diálogo com um congresso atrasado, com o baixo-clero, agora não tem o apoio nem de um nem de outro, está isolado". Estas foram algumas opiniões colhidas por Elói, junto à militância do partido, ele próprio atordoado com a gravidade das denúncias. No Congresso Nacional foi instalada uma CPI do mensalão. Mas de maneira geral até mesmo dentro da oposição e na mídia empresarial, notava-se, ainda que, subliminarmente, a preocupação de preservar o presidente da república. Para alguns analistas a sua queda levaria a um descontrole social sem precedentes, colocando em risco a república. Na redação do jornal, Elói também passava por momentos difíceis. Não tinha argumentos para defender o governo, sentia-se frustrado. Para ele o governo caíra na arapuca do financiamento empresarial de campanha em que tudo pode acontecer. A distribuição de cargos e benesses, para garantir a governabilidade, tinha um preço. Elói acreditava que Paulo César Faria, ex-tesoureiro de Fernando Collor à presidência, fora assassinado porque administrava uma sobra de campanha, que tinha vários donos.

Como não queria se estressar, ao sair do trabalho foi em busca de uma companhia feminina. Queria fazer sexo a noite toda. Raramente ia a shopping, pois preferia os barzinhos do Maleta. Mas nessa noite fizera o itinerário oposto. Sabia que circulava nos shopping's garotas de programa lindíssimas, com caras de patricinhas. "Hoje é hoje", dizia enquanto se sentava na praça de alimentação, observando o movimento. Quatro garotas lindas encontravam-se numa mesa perto da sua, comendo sanduíches, bebendo refrigerantes. Saias curtíssimas, coxas bem torneadas à mostra. Uma brincava com o celular; outra contava um caso, animada. Todas jovens. Elói às observava atentamente: "Lindas, todas são lindas, a mulata então, parece não ter mais de dezessete anos, mas com um corpo de mulher experiente; as pernas da outra eu vejo a calcinha vermelha". Enquanto esperava o número da senha, liberando a pizza, bebia um shop escuro, observando ao redor, com discrição. De repente sentiu-se ridículo com aquilo tudo e decidiu ir embora após comer a pizza. Foi então que notou uma garota alta e loira, com um celular pendurado no bolso dianteiro da calça branca e justa. Ela virou as costas e seguiu em outra direção. Tinha o traseiro bem delineado, andava como quem flutua. Seguiu-a com os olhos, parecia um anjo sacudindo a longa cabeleira. O seu coração começou a pulsar forte e, sem perceber, levantou-se da cadeira e foi ao encalço da loira. Ela caminhava em direção ao estacionamento. Seguiu-a de longe e a viu conversando com o motorista de um fiat pálio. Aproximou-se, curioso em ouvir. Negociavam valores por uma noite de amor. Em seguida a garota entrou no carro e partiram. Voltou à praça de alimentação, para comer o último pedaço da pizza. Optou por embrulhá-la, para comer no café da manhã seguinte. Voltou para casa e não teve jeito. Ligou o computador e começou a escrever:

"Sempre quis saber qual seria o futuro desta juventude nesse governo, que tem como prioridade implantar projetos de inclusão social. Sei que em quatro anos não se resolvem problemas estruturais de séculos e não se rompe com esta cultura política de um dia para o outro. Mas esse governo não pode passar o tempo todo se desculpando e culpando a herança maldita. Os avanços são pequenos, diante do tamanho das demandas sociais e ambientais. Não se implementou uma reforma agrária necessária ao desenvolvimento do país, os assentados continuam sentados esperando e se permanecerem sentados não sai a reforma agrária, pois os latifundiários e o agro-negócio são poderosos. Pior agora, com o governo enfraquecido por denúncias de corrupção. É uma ironia ver velhos corruptos na televisão, pilantras que sempre dilapidaram o patrimônio público em proveito próprio, exigindo ética. Assassinos fazendo poses de defensores da vida; filhotes da ditadura exaltando valores democráticos; sonegadores de impostos reclamando de tributos elevados. A grande mídia cumpre o seu papel de guardiã de interesses de uma minoria endinheirada de dentro de de fora do país. As eleições presidenciais estão próximas. Se não houver o impedimento de Lula, possivelmente ele será batido nas urnas, e, numa suposta legitimidade, as políticas de privatizações retornarão sobre os recursos naturais, inclusive. A Petrobras será a próxima. De novo ouviremos que as questões das desigualdades sociais serão resolvidas pelo mercado. Enquanto isso o governo continua enrolado em seu próprio rabo. Não se pode culpar a imprensa por suas lambanças, principalmente por saber que ela é seletiva, tem lado. Por mais que o governo tenha cedido na política de interesse dos grandes grupos econômicos, eles não confiam, têm receios de que Lula resolva dar uma guinada à esquerda, rompendo com o neoliberalismo. Contudo seria lamentável perder a eleição presidencial de 2006, quando em quase toda a América Latina a esquerda via impondo derrotas à direita. Continuo me perguntando sobre o futuro dessa e das novas gerações, quando vejo garotas se prostituindo; o narcotráfico aliciando jovens e o trabalho escravo continua sendo praticado em pleno século 21...

Não conseguiu escrever mais. A lembrança da garota loira entrando no fiat ocupava os seus pensamentos. Porque sentiu o coração bater acelerado quando a vira? Contivera o ímpeto de detê-la, quando negociava o sexo com o cliente. Sentira-se diminuído ao perceber que fora fazer a mesma coisa. Não se tratava de moralismo barato, nem de pieguice. "Um país em que uma pessoa seja obrigada a vender o seu corpo para sobreviver, definitivamente não é um país justo", escreveu e leu, para sentir o efeito. E acrescentou: "Viver em um país em há crianças vendendo balas em sinais; que há exploração sexual de crianças e adolescentes ou de adultos; que tem trabalho escravo e salários aviltantes..."

Parou. Pegou a garrafa de uísque e serviu-se de uma dose, pensando em sua vida. O que fizera de concreto para mudar tal realidade? Para os padrões do país, era um privilegiado. Dava-se ao luxo de morar em um apartamento confortável; dava-se ao luxo de beber uísque doze anos! Voltou ao computador e anotou: "Não carrego na consciência nenhum sentimento de culpa, pois não sou o causador das injustiças sociais. Mas isso não me dá o direito de ficar em silêncio. Quero um país em que todos possam viver com dignidade..."

Sentou-se na poltrona e pensou em Zenaide. Quando Dona Sônia o procurara, para saber se ele era o pai de Vitória, respondera calmamente:

- Não, não sou o pai, mas poderia ter sido. Ela não quis, quando lhe propus registrar a criança em meu nome, mesmo não sendo o pai biológico.

- E porque bancou as despesas e nunca mais nos procurou?

- Vou revelar uma intimidade: não nego que desejei sua filha, mas ela era menor de idade, seria arranjar um problema. Meu sentimento por ela estava confuso, queria ajudá-la, mas ao perceber que a levaria para a cama, preferi sair de cena. Não sei se hoje sou suficientemente bom para tomar uma atitude como a que tomei naquela época. Não tenho isso por obrigação, a responsabilidade é dos governos e cabe a nós, cobrar. E se você, Sônia, desculpe-me por chamá-la assim, porque entendo, que senhor e senhora são de engenhos... Como estava dizendo, se você continuar com a ideia de que eu seja o pai, e muito simples: eu faço exame de DNA. Apesar não termos contatos há aproximadamente dois anos, saiba que trago boas recordações de nosso convívio, e espero o mesmo de vocês - concluiu Elói, dirigindo-lhe um abraço afetuoso.

- Por favor, me perdoe. Confio em você, sabe como é o coração de mãe - retribuiu o abraço, chorando.

- Não sei. Como é o coração de mãe? - perguntou sorrindo, para quebrar o constrangimento.

- Coração de mãe vê coisas. No fundo ele desejava que você fosse o pai verdadeiro - respondeu, beijando-lhe a face.

- Por favor, não me leve às lágrimas e me fale de Zenaide, da neta, enfim, de todos.

- Foi então que Elói ficara sabendo que a garota mais linda do bairro era soro-positivo e levava uma vida relativamente normal, fazendo uso do AZT. Trabalhava pegando bico aqui e acolá, para garantir o sustento de Vitória. - Você podia nos visitar um dia desses. O Marcelo largou a bebida; Edileuza me deu um neto lindo, que se chama Francisco. Tenório e Marcelo fazem planos e Zenaide continua com a cabeça no vento, um pouco menos que antes. Na medida do possível está bem - completou Dona Sônia, desculpando-se e agradecendo tudo o que ele fizera pela sua família.

Movido por um novo sentimento, Elói decidiu que iria visitá-los, assim que pudesse. O coração de manteiga se manifestava.

Próximo capítulo:

19 - A Loira Misteriosa

Rapidinho:

Filhos da Terra é uma novela dividida em vinte cinco capítulos. Narra a trajetória de Zenaide, uma ninfeta, que se envolve num mundo do sexo, droga e fúria. A história de uma garota da periferia; pobre, sensual, que sonha com o sucesso. Zenaide e sua família, num turbilhão de sentimentos. Um jornalista, como um anjo de guarda, surge em sua vida. Um amigo, um pai; um amor.

Capa: Berzé; Ilustrações do miolo: Eliana; editoração eletrônica: Fernando Estanislau; impressão: Editora O Lutador - 2009, primeira edição

Agradeço pela leitura e peço a quem encontrar algum erro de gramática ou digitação, por favor, me avise.

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#LulaLivre Doravante esta hashtag estará em minhas publicações enquanto não apresentarem as provas contra Lula