O Espírito De Prata - Capítulo XII

Capítulo 12

Excertos De Amor

Do dia em que senti despencarem sobre meu ser as terríveis revelações do Téo, um bom tempo já se havia passado. Tempo que não sei precisar muito bem. Talvez..., uns..., seis meses.

Lucila continuava a tratar-me com a profunda afeição que a caracterizava. Era-me como a filha que jamais pude ter.

Finos, leves e delicados, seus traços físicos lembravam bastante os da Heloísa. Sua personalidade, porém, muito se assemelhava à minha.

Nos últimos dias, em meu íntimo, certo latejar de versos começava a se fazer ouvir. Versos cuja origem eu ignorava. Versos que me sabiam a recordação.

Eram intensos versos de Amor. Versos que eu sequer sabia se eram meus. Versos que diziam:

“Prenda-me! Óh!, prenda!

Antes que eu me renda!

Antes que eu entenda!

A vida!

Como um mar!

De incertezas!

De tristezas!

A se velejar!”

Atormentado pela insistência com que tais versos me vinham à mente, decidi anotá-los cuidadosamente no “Álbum De Sensações” e submetê-los à apreciação analítica de minha benfeitora.

Ao ler os versos, Lucila quedou-se espantada. Subiu ao seu quarto a toda pressa e, ao regressar de lá, pôs-me nas mãos um caderno aberto.

Parecia-me incrível, mas, os versos ali estavam. Bem diante de mim. Exatamente como me tinham chegado e com uma caligrafia idêntica à minha.

“Teria eu escrito tais versos? Seriam eles de minha própria autoria? Como teriam ido parar nas mãos de Lucila?” — indagava, a mim mesmo, o meu pensamento.

Pedi-lhe, então, que me contasse a história do caderno.

Pacientemente, ela me disse o seguinte:

“Anos atrás, quando eu ainda não passava de uma criança, meu pai decidiu queimar uma pilha de papéis velhos que ele havia encontrado em casa.

Embora minha idade ainda fosse demasiado tenra, pude perceber que a decisão tomada por meu pai incomodava profundamente a minha mãe.

Por não gostar de ver a minha mãe triste, decidi que, de alguma forma, eu a ajudaria.

Fazer com que meu pai desistisse de queimar os papéis estava fora de cogitação. Afinal, o velho Telêmaco Barbosa de Souza Dias era um homem irredutível em suas decisões.

Sendo assim, como conseqüência da minha evidente falta de escolha ou opção, na calada da noite, examinei com cuidado os papéis. Não podia tirar muitos da pilha, pois, se o fizesse, meu pai logo perceberia. Então, interroguei minha intuição e deixei que ela me dissesse quais daqueles papéis eram os que mais fariam falta à minha mãe.

A resposta veio rapidamente, logo que meus olhos fitaram este caderno.

Feliz pela possibilidade de fazer surgir um sorriso na face de minha mãe, tirei apressadamente o caderno do meio da pilha e o substituí por um dos meus antigos cadernos escolares.

Depois, no dia seguinte, esperei que a sorte me concedesse um momento a sós com minha mãe e, assim que o referido momento chegou, entreguei-lhe o caderno e lhe contei o que havia feito para conseguir salvá-lo da queima certa.

Como forma de agradecimento, ela deixou o caderno comigo e pediu que eu o escondesse e cuidasse muito bem dele.

Daquele dia em diante, seria eu a guardiã de um tesouro cujo valor inestimável, eu só descobriria em meados da minha adolescência.

Felizmente, meu pai jamais desconfiou da minha manobra salvadora, o que permitiu a este caderno alcançar hoje as suas mãos.”

A história contada por Lucila despertou ainda mais a minha curiosidade. Quis perguntar a ela o que fazia daquele simples caderno um tesouro de valor inestimável. Mas, não pude.

Adiantando-se a mim, ela retomou a palavra e prosseguiu seu relato dizendo-me:

“Este caderno pode parecer, à primeira vista, um simples aglomerado de folhas sem importância. No entanto, quem tiver a oportunidade de lê-lo atestará que, em suas páginas, se exprime o testemunho do nascimento e da sublime ascensão de um Amor. Do Amor que, durante muito tempo, fez luzirem as então recém-despontadas existências da flautista, letrista e futura jornalista Heloísa Krigher e do já cantor, compositor, vibrafonista e contrabaixista Elíseo Giardinni.

Li este caderno pela primeira vez quando eu tinha quinze anos. Foi às escondidas, no curso de uma longa noite de insônia.

Foi através dele que consegui compreender a ausência de demonstrações de Amor entre minha mãe e meu pai.

Minha mãe não amava meu pai. O grande Amor da sua vida havia sido, e, sem dúvida, ainda era, esse tal Elíseo Giardinni. O mesmo Elíseo Giardinni cujos discos eram proibidos de serem tocados em nossa casa.

Tive uma vontade imensa de conhecer o homem que fora capaz de despertar, no coração de minha mãe, o sentimento tão intenso que figurava nas páginas do caderno.

Com certeza, ele devia ser bem diferente do meu pai.

Para meu pai, minha mãe parecia mais um bem adquirido do que uma afeição conquistada. Chego até a pensar que, se fosse exigido de meu pai apresentar uma declaração de bens a alguém, minha mãe estaria nela, entre as suas propriedades.

Quando minha mãe começou a pensar na possibilidade de se divorciar do meu pai, fui a primeira pessoa a apoiá-la e a pedir-lhe que fosse atrás do moço do caderno.

Algo dizia ao meu íntimo que Elíseo Giardinni não estava morto. Afinal, seu corpo não havia sido encontrado.

“De repente, ele pode estar por aí! Pertinho de nós! Desaparecido! Pode até ter perdido a memória!” Era o que eu costumava falar à minha mãe.

Hoje, sei muito bem que Elíseo Giardinni realmente não morreu, que esteve, de fato, desaparecido e que, conforme eu previra, perdeu a memória. E sei ainda mais. Sei agora, mais do que nunca, que Elíseo Giardinni é o senhor e torço bastante para que a mesma força celeste que permitiu o nosso encontro faça com que minha mãe e o senhor tornem a se ver.

Estou certa de que o poder solar do Amor que uniu e ainda une as suas almas fará secar o Letes que tem encoberto o seu passado.

Os versos que o senhor, há pouco, anotou em seu “Álbum de Sensações” é uma viva prova disso. Outra prova é o fato de o senhor ter-me chamado de Heloísa na primeira vez em que nos vimos.

Não tenho dúvidas de que a presença da minha mãe será fundamental para que o senhor possa recobrar o seu passado. No entanto, como ainda não me é possível trazer minha mãe pessoalmente a esta casa, deixo consigo o caderno. Há muito de vocês nele!”

Não pude conter a emoção que senti ao receber de Lucila aquele caderno.

Abracei minha benfeitora e, em seus braços, comecei a chorar copiosamente, como se criança tivesse voltado a ser.

Vencida a emoção e passadas as lágrimas, desenlacei-me dos braços de Lucila, desejei-lhe uma boa noite e comecei a examinar atentamente o caderno.

O exame demorou alguns dias, ao término dos quais, muitas coisas acabaram por ser-me esclarecidas.

Infelizmente, Téo tinha razão. Heloísa e eu o havíamos traído. Para meu mais completo desespero, toda a traição havia sido detalhadamente registrada nas páginas daquele caderno.

“Todas as coisas, as impressões e os fatos que doravante se registram nas páginas deste caderno representam e nada mais são do que o vivo testemunho de um Amor. Do Amor que sinto por Elíseo Giardinni.

Fomos apresentados ontem pelo meu irmão Márcio e não foi necessário muito tempo para que o Amor, em sua face mais esplêndida, a nós se revelasse.

Hoje, não hesito em dizer que, se me fosse pedido para entregar minha vida toda nas mãos de alguém, não seria nas mãos do meu namorado Téo que eu a entregaria. Mas, nas de Elíseo Giardinni.”

Foi assim que Heloísa deu início ao caderno e foi esta linguagem explicitamente amorosa a tônica que, em sua totalidade. O perpassou.

“Para dizer a verdade, começo agora a achar que nunca amei o Téo. Penso que só estou com ele por uma grande insistência de sua parte.

Quando nos conhecemos, eu ainda não passava de uma menina. Frágil e insegura, como todas as meninas da minha idade.

Ele, a seu turno, era um homem cheio de atitude. Trazia-me segurança. Foi o que me bastou para que eu aceitasse o seu pedido de namoro e me acostumasse à sua ríspida companhia, às suas poucas carícias, aos seus ósculos contados.”

Eis o que declarou Heloísa mais à diante no caderno.

Entretanto, dos registros deixados por Heloísa, o que mais me impressionou foi aquele que precedeu o poema cuja recordação fiz questão de transcrever em meu “Álbum de Sensações”.

Ei-lo:

“Há dois dias do meu casamento com o Téo, sinto-me, ao mesmo tempo, confusa e em êxtase.

“Como posso me casar com o Téo depois de tudo o que vivi ontem com o Elíseo? Como poderei entregar-me ao Téo, se, em meu corpo, ainda ardem os sinais tecidos pela quente presença do Elíseo?” – são estas as indagações que soam em meu íntimo.

Tudo começou ontem à noite. Elíseo e eu nos encontramos casualmente.

Regressávamos de lugares próximos.

Ele, do estúdio. Eu, da casa do Téo.

Começamos os dois a conversar.

Decidimos esticar a conversa em minha casa.

Principiamos trocando amenidades. Depois, experiências. Depois, confidências. Depois, carícias. Depois, ósculos. Depois...

Atirei-me nos braços de Elíseo como quem se atira a um bote salva-vidas.

Pedi-lhe que me levasse para onde ele bem quisesse.

Nossos corpos quase não saíram do lugar. Contudo, nossos íntimos se lançaram a caminho de um gozo supremo, seguindo o curso natural dos amantes.

Misturamo-nos livremente um ao outro. Sem medos, pudores, ou censuras.

Despidos, nossos corpos, nossas almas, nossos íntimos, nossas essências, nossos fluidos, nossos sangues, nossos gametas, deixaram de ser dois, para tornarem-se um só.

Não era uma traição. Mas, um Amor que se consumava.

Jamais me esquecerei da noite de Amor que tive com o Elíseo.

Jamais me esquecerei de que, quando despertamos, ao ver este caderno debruçado sobre o meu criado-mudo, ele me pediu para escrever um poema em uma de suas páginas.

Consenti-lhe o favor e ele me escreveu belíssimos versos, chamando-me de prenda e pedindo-me que, para sempre, o prendesse. Desejo que, de fato, eu sentia e, ainda hoje, sinto.

É pena que, daqui a dois dias, terei de me casar com o Téo e serei obrigada a manter adormecida, no fundo de mim, a noção exata do que é o Amor. Noção que só pude vivenciar nos braços ardentes do meu eternamente amado Elíseo Giardinni.”

Jamais eu poderia imaginar que, entre Heloísa e eu, se havia celebrado uma noite de Amor tão intensa.

Não podia eu compreender as razões que levavam Lucila a tratar com tamanha afeição e a manter hospedado em sua casa o homem que semeou a infelicidade no outrora confortável relacionamento vivido por sua mãe e seu pai.

As questões eram muitas. Tantas, que me acabrunhavam o espírito.

Hebane Lucácius