Meu outro lado - Prólogo

Era uma noite calma e fresca naquela sexta-feira de 12 de julho, de 2017, em Paris. Me lembro de poder contar as estrelas do céu, uma a uma, e conseguir ver a Lua de qualquer cômodo do meu apartamento, grande e encantadora como nunca estivera. Era realmente uma noite linda.

Para a maioria das pessoas, seria perfeita para um jantar com seu par romântico, uma noitada com os amigos ou mesmo ficar em casa assistindo a qualquer filme de suspense *Hitchcookiano*. Para a maioria. Não para mim.

Eu nunca fui como a maioria das pessoas. Em quase todos os aspectos da minha vida, eu sempre fui diferente. Muito diferente. A começar pelo fato de que eu tenho uma vida financeira dos sonhos, dessas que nunca precisarão trabalhar um dia sequer na vida. E não importa o quanto eu gaste, eu nunca conseguirei esgotar todo o dinheiro.

Sim, eu sei. É estranho chamar isso de ”diferente”. Mas talvez vocês entendam o porquê mais a frente ou, simplesmente, assumam de vez que eu realmente não sou muito normal.

Meu pai se chamava Louis Bernard Dechamps. Era um mega empresário sócio de algumas das maiores empresas automobilísticas da França. Era dono de milhões de ações na Renault, Citroen, Peugeot, Rhodoa e incontáveis imóveis por todo o país. Tinha uma das maiores fortunas da França e do mundo. Soa um pouco frio e insensível eu começar a descrevê- lo pelos seus triunfos empresariais, mas foi como me acostumei a ouvir falarem dele na maior parte do tempo. Como ouvia, na verdade: em 23 de janeiro de 2018, farão 9 anos desde a última vez em que pude ouvir sua voz.

Ele faleceu em 2009, aos 63 anos, por um câncer de pâncreas em estágio final. O médico disse que era uma das formas mais graves e que não havia muito o que fazer. Ele havia sido diagnosticado tardiamente e a equipe nos informou que as metástases ja lhe haviam tomado todo o corpo. Um câncer grave e incurável, que o levou depois de 2 meses do diagnóstico.

Eu tinha uma relação tranquila com meu pai. Não éramos carne e unha mas conseguíamos nos ver diariamente. Não. Quase diariamente. Semanalmente, pra ser exata. Mas eu não posso reclamar. Nunca reclamei. Eu era bem nova e já compreendia que ele tinha uma vida corrida e cheia, repleta de compromissos, como é habitual destes tubarões de negócios. No fundo, eu sabia que ele se esforçava para ser o melhor pai possível, mesmo não acertando sempre. Quando nos encontrávamos sempre perguntava sobre como havia sido a minha semana e quais eram as novidades da escola. Viajávamos para alguns países nos finais de semana em que conseguíamos ficar juntos e, sempre que possível, tentava me levar para as cidades em que teria mais uma de suas incontáveis reuniões.

Me lembro de quando ele me acordou, apressado, como se estivesse atrasado para mais um de seus intermináveis afazeres do ofício, em uma manhã no verão de 2002, e avisou que iríamos a Boston, onde ele teria uma reunião de negócios. Pediu para que eu não me atrasasse, pois era um evento muito importante. Surpreendentemente ele ordenou ao nosso piloto que mudasse a rota do jato para Orlando, logo no início da viagem. Acho que estava tentando fazer alguma espécie de surpresa, não tenho certeza. Era difícil saber exatamente o que ele pensava. Aquele foi um dos nossos passeios que mais marcaram. Passamos uma semana juntos, na Disney, longe dos negócios, longe dos problemas, longe de tudo. Só eu e meu pai.

Não sei muito a respeito da minha mãe. Ela morreu logo depois de me dar a luz, decorrente de uma tal atonia uterina, que meu pai sempre falava. Disse que era algo raro, mas que ocasionalmente ocorria nos partos normais. Foi cerca de uma hora depois. Ela começou a sangrar interminavelmente e os médicos não conseguiram reverter. Ela era bem mais nova que meu pai, tinha apenas 27 anos. Toda vez que conversávamos sobre isso ele reiterava que a tal atonia uterina não tinha nada a ver com o bebê, numa tentativa de evitar com que eu sentisse qualquer espécie de culpa pela morte da minha mãe.

Acredito que ela foi a única mulher, alem de mim, que ele amou de verdade. Depois da morte de minha mãe ele tentou engatar alguns novos relacionamentos mas a maioria não durou mais do que um ano. A última delas era uma mulher de aproximados 45 anos, ruiva, com corpo de manequim e que ostentava no mínimo 3 pares de sapatos diariamente. A Senhorita Isabelle, como era chamada, vociferou que ele era um homem muito difícil e que só fazia-se pensar no trabalho, no trabalho, novamente no trabalho, e em mim, antes de jogar a aliança no chão e sair batendo a porta do apartamento, na última vez em que a vi. O namoro deles durou apenas 5 meses.

Pois bem, eu era filha única. Herdei tudo o que ele possuía. Quando ele se foi eu ainda tinha 9 anos e estampei a capa da revista Forbes francesa como “ a pessoa mais rica do país com menos de 18 anos de idade”. Era assim que a mídia sempre nos pintou. Não ligam muito para o que se passa em nossa cabeça, se estamos bem ou mal, se estamos doentes ou saudáveis. Eu era uma jovem garota e bilionária, e isso bastava para que eu fosse colocada como uma pessoa que tinha a vida perfeita. Mas eles estavam errados. E como estavam.

Meu nome é Sophie Bernard Dechamps. Hoje tenho 23 anos e moro em uma cobertura na rua Quai d’orsay, em Paris, na companhia da minha segunda mãe (ou segundo pai), Marie Catherine. Cathe, como carinhosamente a chamo desde que me entendo por pessoa, é a mistura de todas as coisas boas que aparecem na vida de uma pessoa. Ela tem algo em torno de 50 anos (ela nunca revela sua idade) e cuidou de mim antes e depois da morte dos meus pais (costumo dizer que ela já me protegia antes mesmo do meu nascimento). Tenho um imenso carinho por ela e, se não me sinto completamente sozinha até hoje, foi por ter a sua presença em todos os momentos da minha existência.

Cathe diz todos os dias pela manhã que eu sou a menina mais bonita que ela ja vira em toda a vida, atrás somente da última recém namorada que ela arrumou há algumas semanas (e atrás também das outras incontáveis namoradas que ela arrumou ao longo da vida). Meu pai costumava sempre falar que eu era uma quase cópia da minha mãe, exceto pelos olhos verde-musgo que eu herdara dele. De resto, possuía o mesmo rosto fino, os mesmos cabelos negros e anelados nas extremidades e os lábios e bochechas avolumados que justificavam talvez, junto com minha baixa estatura, o apelido de bebê que eu tive ate os meus 15 anos de idade.

Parece difícil, exceto pela perda precoce dos meus pais, identificar qualquer infortúnio em minha vida depois deste pequeno monólogo. Eu também jamais imaginaria que qualquer coisa pudesse me atingir. Seguia a ideia de achar pura frescura essas pessoas que queixam-se demais da vida e arrumam problemas sem justificativa. Mas às vezes, e isso talvez possa acontecer com você, os contratempos surgem em nossa vida sem qualquer explicação; sem qualquer justificativa ou causa.

E é sobre isso que vou lhe contar agora. Sobre isso que costumo chamar de “meu outro lado” e sobre tudo o que me tem ocorrido nos últimos tempos.

Mederi
Enviado por Mederi em 22/01/2019
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